Escola: Massificação e Sustentabilidade



Introdução

A massificação da escola tornou-se necessária pelo menos a partir da II ou III Revolução Industrial, dada a crescente complexidade técnica e organizacional de quase toda a produção, em paralelo à nova representação da infância como outro estádio que não o da miniatura do adulto (Vieira, 2005); senão desde o fim do Antigo Regime, dada a igualização dos cidadãos perante um Estado ao serviço deles (Fournier, 2001) – desenvolvendo de resto o legado da Reforma Protestante, com o requisito da leitura por qualquer crente, e mesmo do Cristianismo, com a igualdade dos seres humanos enquanto criaturas de um Criador que, por as transcender a todas, as deixa iguais perante Ele (Russ, 1997). E como os autores apontam, tal massificação tornou-se particularmente urgente com o grande crescimento económico, e as aspirações sociais, após a II Guerra Mundial.

A referida complexificação da produção, mais a aspiração de uma escola universal, porém, constituem-se como termos de um possível problema: por um lado, a primeira exige conhecimentos e competências evoluídos, ou quando muito uma crescente capacidade de aprendizagem numa aldeia global cujo tempo é muito rápido. Pelo outro lado, a segunda impede que se furte o ensino a todos aqueles que porventura não adquiram o melhor e mais rapidamente possível esses conhecimentos e competências. Mas, se os objectivos educacionais forem ajustados às capacidades mais básicas, arrisca-se o incumprimento de uma massa crítica de cidadãos trabalhadores que corresponda à sociedade globalizada, e assim sustente, cívica e economicamente, a implementação de qualquer ideologia… como a da massificação da escola. Ou seja, esta última tornar-se-á autofágica abaixo de algum grau de mediocratização dos objectivos educacionais efectivos.

No caso português esse problema tem sido verificado – veja-se o debate sobre a relação entre educação e produtividade económica[1]. Mas a sua resolução, por sua vez, abre a um problema de retaguarda: o reconhecimento e uma resolução do problema da escola de massas implicam instrumentos ou estruturas teóricas, todavia o pensamento científico tem vindo a evoluir de um paradigma estruturalista e determinista para um outro que reconhece a complexidade e contingência dos processos. O objectivo deste texto é tão simplesmente o de balizar o reconhecimento do actual problema da escola de massas, e a evolução de um seu quadro explicativo.

  1. A escola de massas e os seus limites.

Segundo Aaron Benavot (2004), praticamente todos os países industrializados tornaram o ensino obrigatório pelo menos até aos 15 ou 16 anos de idade; distinguiram os níveis básico e secundário; diversificaram este último anulando o seu anterior elitismo; acentuaram o ensino da matemática e ciências em detrimento das línguas clássicas; construíram sistemas de avaliação do desempenho dos estudantes; e profissionalizaram os professores. Os diversos sistemas educativos europeus, em particular, têm tentado articular duas funções: a integração social dos estudantes mediante os conhecimentos hoje indispensáveis, e a diferenciação dos mesmos estudantes em ordem às diversas funções económicas especializadas (Crahay; Delhaxhe, 2003). Assim um modelo articulador – implementado, significativamente como veremos, na Escandinávia e em Portugal – circunscreve-se à primeira função educacional até aos 15/16 anos, quase não retendo os estudantes durante esse período. Nos países germânicos e alguns outros, em oposição, a função diferenciadora é exercida logo aos 10/12 anos, sendo os estudantes orientados para diversos tipos de ensino em conformidade a provas dadas, e a progressão não é automática. Entre esses dois modelos, a maioria dos países latinos faz depender a progressão dos estudantes da avaliação pelos professores, mas mantém um tronco comum de aprendizagens até aos 15/16 anos.

O caso português é particularmente significativo nesse contexto.Com efeito, a diversidade de modelos coloca a questão do reconhecimento do mais eficaz na articulação das funções integradora e diferenciadora. Como porém o Relatório PISA – 2006[2] bem revela, enquanto os resultados escandinavos são bons (excelente o finlandês) os portugueses são preocupantes. As componentes desses modelos – determinação curricular, organização e administração escolar, etc. – não são portanto suficientes para garantir a respectiva eficácia. Ou seja, a escolha de uma intervenção resolutiva não se lhes pode circunscrever.

Alinhando aliás culturalmente com congéneres latinos, como a França (Barreau, 2008), Portugal nem sequer teve propriamente sucesso na igualização das oportunidades após duas décadas de ênfase integradora. Segundo Joaquim Azevedo (2002, p. 15), o objectivo de escolarizar todos os portugueses até aos 15 anos "está prestes a ser concretizado" – assim se no início da década de 1980' 66% da população activa portuguesa tinha no máximo 4 anos de escolarização, e 78% tinha no máximo 6 anos, no início da década seguinte estes indicadores tinham já baixado respectivamente para 50% e 69%. Aliás, enquanto em 1985/6 a taxa de escolarização dos portugueses de 15-17 anos seria de 46%, no espaço de uma década essa taxa duplicou (1997/8: 88%). Já o objectivo "de conseguir que a escola as [às crianças] recebesse a todas de modo igual, democratizando o acesso e o sucesso escolar (…) está longe de ser alcançado (…) e é provável que nunca o venha a ser" (ibid.).

Entretanto a diferenciação económica afigura-se a que se poderia esperar dos resultados apresentados no referido Relatório PISA: "seja em matéria de literacia, seja no que respeita a conhecimentos de matemática e de ciências, os nossos jovens situam-se, por via de regra, na cauda dos países. (…) Constatam-se manifestas disfunções entre as novas necessidades do mercado de trabalho e as ofertas tradicionais de diplomados" – Roberto Carneiro, O Futuro da Educação em Portugal: tendências e oportunidades (Barroso, 2002, p. 11).

Este desajuste entre a escola e o que se espera dela está longe porém de ser exclusivo português, nem se circunscreve ao que de imediato se joga nas referidas funções integradora e diferenciadora. Autores como Marcel Gauchet alertam para uma dupla tensão na escola ocidental (v. Chapelle, 2004): primeiro, entre a autoridade didáctica que normalmente é necessária ao cumprimento de objectivos exigentes, de um lado, e a actual hipervalorização do indivíduo, aos quais passaram a ser relativos quaisquer critérios de verdadeou bem, do outro. Depois, ainda nas práticas pedagógicas mas estendendo-se para além da escola, entre essa valorização social do indivíduo, e a sugestão simultânea de que ninguém se chega a afirmar, ultrapassando um anonimato tido por alienante, que não seja pela inscrição e portanto quase dissolução nessa sociedade que proclama valorizá-lo. Em todo o caso o facto é que se acusa hoje a educação, centrada nos estudantes, dos mesmos maus resultados que a instrução, centrada na tradição e autoridade do professor, vinha conseguindo de tal modo que precisamente foi substituída pela anterior (Brighelli, 2005). A última Palma d'oiro em Cannes ilustra bem quer esta acusação mais aquela primeira tensão entre autoridade e relativismo individualista, quer a preocupação internacional que este fenómeno está a gerar[3].

Por sinal referindo-se a A Turma, um conhecido filósofo e político português trouxe recentemente ao grande público o esboço de uma análise desse processo[4]. Restringindo-nos todavia à situação do nosso país, Azevedo (2002, p. 15) sustenta que são quatro os limites à democratização e ao sucesso escolar: i) diferenças culturais e económicas entre os cidadãos à entrada na escola; ii) um modelo escolar homogéneo que lida mal com as diferenças individuais; iii) a subordinação das escolas ao paradigma da emissão de diplomas, que legitimam formas tradicionais de estratificação social; e iv) escolas, professores,… centrados sobre si mesmos, tão alheados quantos lhes é possível do contexto geral em que se inserem.

Não parecendo civilizacionalmente possível desistir da escola de massas – pelas razões avançadas logo no início da introdução – urge pois encontrar, no seio dessa cultura ocidental, estruturas ou instrumentos teóricos que facultem um diagnóstico deste incumprimento da escola de massas, e por consequência alguma intervenção resolutiva, tanto em geral quanto particularmente em Portugal.

  1. Da explicação estruturalista a uma explicação sob o paradigma da acção.

O insucesso da instrução, socialização e estimulação escolares tem sido explicado por diversas teorias, como a dos dotes individuais, que o remete para a inteligência, personalidade… do estudante; a teoria do handicap sócio-cultural, que remete para a educação familiar, etc.; ou ainda a teoria sócio-institucional, a qual, ao invés das anteriores, não reduz o comportamento dos estudantes a quaisquer elementos ou factores singulares ou colectivos, antes realça a interacção entre os agentes escolares, a própria escola, e o respectivo meio. "A grande clivagem surge entre uns autores que defendem um paradigma de determinação total dos indivíduos pela sociedade ou pela classe social dominante e outros que consideram incontornável a tomada em consideração das acções nos contextos em que elas são levadas a cabo" (Pinto, 1995a, p. 92).

Relativamente ao primeiro paradigma, o autor esclarece que não se circunscreve ao plano macrossocial, o que o distingue é que "explica os comportamentos dos indivíduos por referência exclusiva a elementos anteriores aos actos que pretende explicar" (ibid.). É o caso das teorias de reprodução social consensual, inspiradas em É. Durkheim e destacando-se o funcionalismo estrutural de T. Parsons; bem como das teorias de reprodução conflitual, desde a de K. Marx centrada na posse do capital à de P. Bourdieu centrada antes na reprodução da cultura; ou ainda uma sociobiologia que procure explicar os comportamentos sociais em conformidade à síntese neo-darwinista sobre a evolução das espécies. Como porém Molénat (1006; 2007)dá conta, os determinismos têm dificuldade de enquadrar a irrupção da novidade em relação aos tais elementos anteriores. Novidade essa que se verificará particularmente no seio do actual mundo dinâmico da globalização que cruza permanentemente não só bens e serviços económicos mas também sugestões culturais.

À novidade como tal responderá melhor o segundo paradigma teórico atrás mencionado, visto considerar os comportamentos intencionais que originam os fenómenos sociais – as acções – como propôs M. Weber. Deixando para o parágrafo 3 uma sua primeira análise, direi apenas que penso ser este paradigma emergentista epistemicamente mais exigente do que o reducionista. Pois enquanto as explicações deste último se constituíam como representações directas da realidade, postas as quais restaria agir em conformidade para que se alcançassem os resultados esperados, as explicações emergentistas constituir-se-ão antes como meros modelos – cf. "ideais-tipo" (Pinto, 1995a, p. 86) – que distinguem probabilisticamente alternativas, exigindo a quem os use, além desse conhecimento teórico, ainda a capacidade de interpretar cada situação para escolher o modelo mais apropriado, e de acompanhar o respectivo uso de uma reflexão que permita ajustá-lo ou abandoná-lo quando assim convier. Além disso, é de considerar a questão da validade epistemológica de um método que implementa a explicação causal na base da compreensão empática, e antes ainda da interpretação selectiva do que será relevante (id., p. 83)… Em todo o caso este é o paradigma que hoje se tende a reconhecer como menos insuficiente – particularmente sobre a evolução teórica em sociologia da educação v. sinopse de Nóvoa (1992, pp. 18, 19). Valerá assim a pena esclarecer um pouco melhor a respectiva abordagem à escola de massas e os seus limites.

  1. "A escola e o paradigma sociológico da acção".

A aplicação desse segundo paradigma varia com o objecto assumido, a saber, fenómenos macro-, meso-, ou microssociais. Os primeiros têm sido concebidos como sistemas de interacção – sejam de trocas sociais (directas), sejam de interdependência (trocas indirectas), na esteira de R. Boudon (Pinto, 1995a, p. 102) – bem como segundo a teoria do conflito de R. Collins – em conformidade à qual os estatutos sociais vão sendo negociados e disputados pelos diversos agentes sociais. Neste segundo contexto teórico, "as organizações [ex. escolas] são, na sociedade actual, o lugar por excelência onde se desenrola a luta por poder, prestígio e riqueza" (id., p. 103); juízo que parece conforme aos dados empíricos recolhidos por A. Petitat na sua abordagem diacrónica (histórico-sociológica) à escola europeia (id., pp. 104-106). Sobre essa luta nas escolas, a abordagem microssociológica destaca a relação entre professor e alunos na sala de aulas. Distinguindo-se entre as intencionalidades sobre "os processos através dos quais as pessoas constroem as suas acções" – interaccionismo simbólico (id., p. 107) – sobre a "forma como as pessoas dão a definição da realidade em que vivem – sociologia fenomenológica (id., p. 108) – implementando teorias de índoles respectivamente pragmática e idealista (no sentido epistemológico), além da intencionalidade empiricista da etnometodologia (id., p. 109).

Entretanto, como salienta o autor que tenho vindo a citar, "a maioria das investigações feitas em torno do efeito da escola (…) apontam para a relevância da dimensão organizacional da escola nos efeitos que a escola pode ter sobre os alunos" (Pinto, 1995a, p. 109). Requer-se assim a abordagem mesossociológica, que a atrás mencionada sinopse de A. Nóvoa atribui às décadas de 1980/90' – após as ênfases microssociológica na década anterior, e macrossociológica nos anos 1960/70'. Sinopse à qual, numa abordagem à sustentabilidade da escola de massas, importará acrescentar a que o mesmo autor faz sobre a evolução do movimento das escolas eficazes (Nóvoa, 1992, pp. 22-24): 1ª fase – identificação do problema (Relatório Coleman, 1966); 2ª – descrição de instituições escolares, distinguindo as eficazes das não eficazes (anos 1970'); 3ª – intervenções nessas escolas (anos 1980'); 4ª esforço de contextualização política, económica… das escolas; e 5ª – exigência de uma eficácia educacional que torne afinal a escola um factor da sociedade que possa manter alguma escola de massas. Exactamente a fase, pois, em que o presente texto se enquadra.

Como pista para um futuro desenvolvimento deste último, termino este parágrafo assinalando a análise mesossociológica da escola por C. A. Pinto (1995b), e em particular a abordagem estratégica segundo a teoria da racionalidade limitada no processo de tomada de decisão (id., pp. 155-161). No contexto teórico que resulta da evolução atrás apontada, creio que essa abordagem faculta instrumentos valiosos para uma intervenção resolutiva dos reconhecidos problemas da escola de massas, nomeadamente nas áreas escolar, pedagógica e profissional, que A. Nóvoa (1992, pp. 33-36) realça além do sistema educativo e administração escolar em geral.

Reflexão final

A despeito de quaisquer dificuldades pontuais, penso que o principal limite do que aqui alinhavei é teórico: alguns traços foram já apontados – qual é o valor epistemológico de teorias que apelam a qualquer coisa como "empatia"? Outros terão ficado implícitos – como se treina, e se avalia, a reflexão crítica que orienta, pragmaticamente, o uso de quaisquer modelos teóricos, além pois do treino e avaliação da compreensão noética dessas teorias? Mas principalmente faltará uma teoria que enquadre, e oriente as diversas acções sobre organizações que, segundo o paradigma da acção, autores como John Holland (1997) concebem como sistemas adaptáveis complexos, teoria que nomeadamente faculte o reconhecimento daqueles pontos sensíveis nos quais uma certa acção poderá desencadear um efeito desmultiplicador. No caso da organização escolar, mas também nos sistemas de interacção macrossocial ou nas trocas microssociais na sala de aulas, essa teoria deverá potenciar as investigações particulares da sociologia da educação.

Referências Bibliográficas

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Autor: Miguel S. Albergaria


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