Fantasmas



FANTASMAS

De Romano Dazzi

 

Acredite se quiser, mas na maioria das casas antigas da minha cidade moravam fantasmas.

As casas datavam quase todas do início de 1700, porque em fins de 1699 um grande incêndio havia destruído o centro da vila, transformando as velhas habitações de madeira em ruínas fumegantes.

A cidade vivia dos produtos da lã; tosavam as ovelhas, lavavam e separavam a lã, fiavam, tingiam, teciam.

Era o único produto do lugar e sobre ele estaria fundada a economia local, durante os 200 anos seguintes.

Por um mero golpe de sorte, numa antecipação da incipiente era industrial,   os artesãos tinham organizado suas forças produtivas em barracões de madeira em uma área chamada “bairro novo” que se tornaria o grande pólo de desenvolvimento;

O incêndio no centro, portanto, não afetou as rendas dos proprietários e dos artesãos.

E a cidade – naquele tempo apenas uma vila de não mais que 3.000 almas - ressurgiu orgulhosa, com quase uma centena de casas feitas com pedras e argamassa, reduzindo o perigo de uma nova fogueira. 

Todas as casas tinham amplos porões, construídos  em plano rebaixado, com quase a metade sob o nível do solo.

Eram usados para guardar lenha e mantimentos, para  envelhecer vinhos e secar ameixas, uva, maçãs. 

Durante o outono amassavam-se as frutas, faziam-se compotas, destilavam-se preciosos licores, seguindo rigorosamente as fórmulas já não tão secretas dos frades beneditinos.

As atividades  nestas novas casas eram apenas domésticas, para prover os pequenos e confortadores vícios aos seus donos, mas desenvolviam-se de maneira febril ao longo do ano todo, sempre com renovadas matérias primas em cada estação.

A caça, por exemplo, que o Imperador da Áustria permitia somente a partir de setembro, propiciava um grande afluxo de carnes e peles que eram tratadas, curtidas e usadas pelo resto do ano.

As ervas aromáticas começavam a chegar logo no início da primavera, porque os primeiros brotinhos, os caules finos e delicados, trazem uma grande quantidade de preciosa seiva. 

Fragrâncias de melissa, menta, anis, alecrim, espalhavam-se dos porões pelas casas inteiras.

 

Essas casas possuíam também os solários,, ou sótãos,   que formavam um andar a mais, diretamente sob as espessas telhas de ardósia.

As famílias mais abastadas usavam esses locais espaçosos e confortáveis, para atividades artísticas e lúdicas.

 

A casa de n. 6 da Via Cavour (este era o nome quando a conheci -  mas a rua existia muito antes do nascimento do Conde de Cavour, artífice da unidade da Itália)  possuía um desses magníficos solários.

 

Nele havia sido montado  um teatro pequeno, mas completo,  para um público de umas trinta pessoas; o teatro podia ser iluminado à noite com tochas e luminárias,  situados a prudente distância de cortinas e  tecidos bordados; um reduzido palco, com pano de boca, cenários e bastidores, dava uma atmosfera peculiar ao local.

 

Nós éramos uma turma grande, de meninos e meninas, entre 10 e 15 anos; o teatro acendia nossa fantasia; estávamos loucos para representar soldados, reis, rainhas, monges, nobres e donzelas; alguns liam às escondidas textos encontrados em casa e armavam a idéia de representar este ou aquele personagem.

Preferíamos Shakespeare, porque sempre havia algumas (ou diversas) mortes, nas peças dele. As vezes, morriam todos.

E não eram os atores secundários, que morriam, como nas tragédias  épicas; eram os heróis, os protagonistas – que eram, no nosso grupo,  os que comandavam.

Assim, nas peças, quando finalmente algum desses malvados era transpassado por uma espada ou jogado da torre do castelo, ou  fervido em um caldeirão de óleo, aplaudíamos, amplamente vingados de nossas  submissões.

 

Os casarões, na minha época, já tinham mais de duzentos anos.

A poeira do tempo estava impregnada nas paredes, no piso, nas vigas dos telhados. Podíamos senti-la, respirá-la, vivê-la.

Ela nos impunha um clima de antiguidade, de sujeição, de respeito, do qual era impossível escapar.

 

Ouvíamos, encantados, as estórias lúgubres que a Evelina nos contava sobre os fantasmas que assolavam o teatro. Evelina era a mais velha do bando, uma garota de seus 16 anos, com uma fantasia invejável. Jurava ter visto, ouvido e vivido aquelas situações inverossímeis. 

À noite funda, dizia ela, ecoavam gritos horríveis, lamentos desesperados, um barulho ensurdecedor de ferros, sendo arrastados e batidos violentamente uns contra  os outros; e em noites sem lua, o uivo do vento, o bater furioso de venezianas e portas, o estouro de vidros quebrados.

Mas de manhã, nada restava desta movimentação, destas tempestades.

Evelina era tão convincente, tão envolvente no que contava, que acreditávamos em qualquer coisa. Principalmente,  nos fantasmas.

 

Um dia ela inventou uma “sessão da tarde” na qual, dizia, poderíamos ter uma idéia do que acontecia de noite.

Claro que a sonoplastia e os efeitos visuais não seriam assim tão convincentes como na escuridão...

Juntos em sessão solene, sentamos no chão, em volta dela, formando um grande círculo; ela nos mandou dar as mãos, nos impôs silêncio absoluto e pediu fervorosamente  que o fantasma da Senhora de Follet viesse nos visitar.

Já conhecíamos a estória; Madame de Follet, uma distinta e linda aristocrata, vivera no fim de 1600.

Morava numa das casas que o grande incêndio destruiu.

O marido, um desconhecido Barão,  muito azedo e ciumento, ficara desconfiado das atitudes de um pajem, um certo Fiorello;  matou-o sem hesitações, com um único golpe de espada no coração. Tratando-se de um crime de honra, o Barão nunca seria julgado.

Mas ainda insatisfeito -  porque o ciúme, como o amor, é um sentimento insano e não conhece limites - resolveu afastar os filhos, ainda crianças e punir severamente  a senhora, encerrando-a em um dos cômodos da casa.

Até o dia do fatídico incêndio. 

A casa desabou: nunca mais se soube nada da Madame de Follet.

O Barão, enlouquecido, morreu pouco depois.    

Pois bem, já sabíamos toda esta estória; mas trazer de volta a distinta senhora, era outro assunto, muito mais fascinante.

 

Nós seriamos,  assim,  testemunhas privilegiadas desta viagem pelo tempo: justamente nós, um bando de pentelhos desmiolados, seguramente incapazes de entender uma única vírgula, dos intrincados enredos que unem e separam as ações e os sentimentos dos homens.   

 

Sentimentos conflitantes começaram a nos agitar; o temor e a curiosidade, o desejo de fugir e de ficar, a sensação de estarmos prestes a presenciar algo de extraordinário, nos arrepiavam, aceleravam a  batida dos corações, destilando um suor frio nos rostos e nas mãos.

O grande sótão, que sempre ecoava com os nossos berros,  estava insolitamente silencioso e – poderíamos jurar – mais escuro do que de costume. Uma atmosfera estranha  andara formando-se aos poucos, sem percebermos e  era como se tivéssemos entrado por um portal invisível, em outra dimensão.

Mas, contrariamente ao que esperávamos, não ouvimos nenhum  grito, nenhum estrépito de correntes arrastadas, nenhum lamento lúgubre.

Pelo contrário, começamos a perceber – mais que escutar - uma lenta, suave melodia, apenas alguns leves acordes, só entreouvidos; e uma tênue fragrância espalhou-se no ar. 

Sentimos todos a presença invisível de nossa personagem.

Ela estava lá, conosco. 

Evelina, menina esperta e sempre alerta,  olhando para um ponto no qual,  presumivelmente, o fantasma estaria, abriu a boca – todos nós vimos – e começou a falar.

Nenhum som saiu. Nenhuma resposta; mas Evelina escutou atentamente, e respondeu; de novo, não conseguimos ouvir nada .

A esta altura, estávamos todos atônitos,  mais que assustados, paralisados.  

A conversa da Evelina com o fantasma continuou por algum tempo, e era evidente que ambas estavam muito a vontade.

Nossa frustração aumentava.  

Por fim – teriam passado uns dez minutos talvez - o encantamento se desfez.

O sótão voltou a clarear, o perfume se extinguiu, a melodia parou. 

Evelina ficou parada, como se estivesse dormindo, em transe, mas de olhos bem abertos. Não estava assustada, parecia feliz.

Quando recobrou a consciência, falou com um tom suave, que  nunca tinha usado conosco:

-“eu sou uma De Follet, sou uma De Follet!!!

- Aquele era o fantasma de minha bis, tris, tátara avó!

- Madame de Follet  é minha parente!”

Foi um reboliço. Um fantasma parente! Melhor ainda: um parente fantasma!!

Todos nós ficamos boquiabertos e tentando entender o que isto realmente queria dizer.

Sentimo-nos de repente todos mais importantes e nossa auto-estima foi ao céu. 

A partir desta tarde, por semanas a fio, a cidade só falava nisto.

Com descrença, com desdém, com pavor, com admiração, com orgulho.

Madame de Follet tornou-se parceira de todas as nossas conversas.

O seu fantasma virou nosso convidado em todos os chás da tarde.

.........

 

Há muito tempo que eu sai de lá.

Provavelmente Evelina, hoje já se tornou também um fantasma; mas não quero interromper seu sono.

Ela foi como uma chave muito especial, que nos abriu uma porta sobre outra dimensão.

 

Hoje a cidade anda tão barulhenta, de motores, de buzinas, de escapamentos, que mesmo o mais esforçado dos fantasmas não conseguiria ser escutado. 

Com certeza foram arrastar suas correntes em algum outro lugar. Mas as crianças de hoje perderam um grande, um inesquecível show!......

 


Autor: Romano Dazzi


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