Apenas um soldadinho de chumbo



195 - APENAS UM SOLDADINHO DE CHUMBO

de Romano Dazzi

 

A explosão seca de um único tiro de fuzil, espantou os pássaros que se  banqueteavam com as sementes de girassóis,  espalhadas no chão poeirento .

Naquele instante ele, deitado no chão, não percebeu nada; apenas aquela estranha sensação de calor no céu da boca, como quando, ainda garoto, enfiava pela garganta um meio copo de vinho, roubado na longa mesa, em dias de festa.

Era isso: um gosto de festa.

Logo sentiu a cabeça pesada; e isto também fazia parte daquelas mesmas lembranças.

Vinha de um mundo antigo, agora tão distante quanto as estrelas.

Ele era agora apenas um soldadinho, sem vontade própria, arrastado por fios invisíveis e confusos

Tinha sido arrancado do sul da Itália, da sua casa, da sua gente, do  trabalho, das raízes. Era assim que se sentia; como uma planta arrancada, cujas raízes secam aos poucos, antes de morrer

Viajara deitado num vagão de carga, por quatro mil quilômetros, durante um mês, comendo pão velho e bebendo água de torrentes, quando o trem parava.   

Estava só, agora, perdido dos outros, no meio do nada, num campo sem fim, numa terra desconhecida – Rússia, Ucrânia.... e mesmo assim  familiar, pelo cheiro da colheita, pelo ar pesado do fim de verão, pelo silêncio total, rompido apenas pelo zunir das cigarras  e pelo grasnar dos corvos, que lhe lembravam a sua labuta diária, na vida de antes.  .

Tinham-lhe dado apenas um fuzil e a ordem de disparar.

Para que lado, contra quem, por que, ninguém dissera.

Ele não queria, sabia que era errado, ferir ou matar quem quer que fosse  mesmo um inimigo. Tinha aprendido isso na escola, no catecismo, nas palavras da mãe.

A mãe! Quantas vezes ela viera visitá-lo, em seus sonhos agitados, na sua interminável viagem. Aquele rosto macilento, prova de sua vida dura de camponesa resignada mas orgulhosa, aparecia a cada noite mais triste, mais distante. Só seus olhos negros brilhavam ainda, iluminando um sorriso doce e triste.

A batida do seu coração foi ficando mais rápida,  e uma dor, primeiro fraca e apenas incômoda, depois aguda e quente, como um ferro em brasa enfiado no lado direito, tirou-lhe a respiração.

Não demorou mais que alguns segundos – um longo espaço para quem está morrendo – e ele sentiu que estava partindo, para sempre. 

           

Como se estivesse saindo de um corredor escuro, sentiu-se tomado por uma luz difusa, confortadora. Parecida com um grande véu branco, leve, quase transparente, que tudo envolvia.

 

Viu-se de repente lá embaixo, sozinho, estirado no campo raso, no meio das touceiras de girassol, os braços abertos, como se quisesse abraçar o azul intenso do céu.

 

Um segundo depois, estava em casa.

O velho,  casebre dos pais, com aquele cheiro azedo do pão recém saído do forno, a vinha, a horta, o monjolo preguiçoso, as galinhas estúpidas......

Percebeu claramente o beijo carinhoso da mãe a afagar-lhe o rosto, a mão áspera do pai a desarrumar-lhe os cabelos,  o olhar perdido de sua Maria.  

Fechou os olhos, respirando aquela paz, aquele carinho.  

E tudo acabou. Não sentiu mais nada, Não era mais nada.

Apenas um dos trinta mil jovens, pouco mais que garotos, deixados para trás pela vida, perdidos nas imensas estepes da Rússia, sem saber por quê.

Apenas um soldadinho de chumbo....


Autor: Romano Dazzi


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