CAMINHOS PERCORRIDOS ATÉ DESCOBRIR O PRINCÍPIO ALFABÉTICO



A imersão das crianças num mundo de referentes escritos e de interações em torno do objeto “escrita” permite-lhes fazer um conjunto de descobertas sobre a natureza e funções do código alfabético previamente ao ensino formal. Contudo a riqueza desses contactos e a freqüência das transações infantis antes da entrada para a escola é variável, fazendo com que as crianças cheguem à escola em diferentes estádios relativamente à percepção que têm da natureza do código alfabético. A massificação do ensino reflete-se em estratégias de ensino uniformes e descentradas das confusões conceptuais infantis em relação ao funcionamento do código escrito. A compreensão do princípio alfabético, ou seja, a percepção de que as letras ordenadas no espaço das palavras representam os fonemas orais das unidades lexicais, implica competências de elevada complexidade de abstração. Concorrem para esta compreensão a consciência fonológica, o conhecimento de letras e uma percepção da escrita enquanto um código que representa unidade lingüística. Cada uma das competências e concepções subjacentes poderá constituir se como um obstáculo à compreensão do princípio alfabético, condicionando o sucesso acadêmico na aprendizagem da leitura.
Palavras-chave: Aprendizagem da leitura, treino fonético, estratégias de leitura.

INTRODUÇÃO

As crianças constituem o lugar de nascimento de um futuro. Infelizmente abdica-se com facilidade de empreender todos os esforços para o nascimento desse futuro, a partir do momento em que os agentes educativos se centram nos seus processos pedagógicos, sem ter em conta as particularidades dos processos de aprendizagem das crianças. O pressuposto fundamental para o sucesso educativo confunde-se com um princípio que, já no sec. XVII foi descoberto por Galileu:

"Não se pode ensinar alguma coisa a alguém, pode-se apenas auxiliar a descobrir por si mesmo".

Esta citação contém a revolução copérnicanecessária ao ensino.

_____________________

1 - Trabalho apresentado ao Curso de Pedagogia da UNIASSELVI, na disciplina de Processos de Alfabetização no ano de 2009.

2- Graduado em Educação Física pela Universidade do Sul de Santa Catarina no ano de 2009.

Ou seja, da mesma formaque o centro do universo não é a terra também onúcleo das aprendizagens não se situa nos agenteseducativos, mas na criança aprendiz. Um ensinoeficaz terá de rodar necessariamente sobreuma dinâmica com 3 eixos: As propriedades eespecificidades do objeto de aprendizagem, omodo como a criança aprendiz a apreende e reelaboramas propriedades do objeto de aprendizagem,o modo como o docente acompanha o percursoconceptual da criança aprendiz.

Tendo em conta que no primeiro ciclo os níveis de insucesso escolar decorrem, sobretudo, de dificuldades de aprendizagem na leitura, a aplicação desta perspectiva, ao caso da aquisição da literacia, mais do que necessária é urgente.

LITERACIA

A análise e investigação no domínio da aquisição da literacia evoluiu, significativamente, a partir do momento em que se passou a discriminar os processos de ensino dos processos de aprendizagem.

Depois de muitos anos de confrontos, debates e investigações relativos à eficácia relativa dos métodos, a revolução fundamental, nesta área, aconteceu quando a investigação começou a incidir sobre os conceitos, processos e estratégias que as crianças vão desenvolvendo ao longo do seu percurso até a alfabetização. Esta distinção entre os processos ativados pela criança no percurso da aprendizagem e os processos de ensino, permitiu evidenciar como um e outro não são isomorfos, e que a eficácia dos segundos é mediada pelos conhecimentos e conceitos sobre a linguagem escrita e oral que a criança dispõe à entrada para a escola.

Uma das problemáticas fundamentais no âmbito da pesquisa sobre a aquisição da literacia é, então, a de perceber porque é que para algumas crianças é tão fácil aprender a ler, independentemente do método de ensino utilizado na escolarização formal, enquanto para outras, mesmo quando submetidas a vários tipos de estratégias pedagógicas, o domínio da leitura parece constituir um obstáculo intransponível.

As diferenças inter-individuais a este nível parecem estar relacionadas com as oportunidades que as crianças tiveram ao longo dos anos pré- -escolares de aceder a conhecimentos e conceitos relativos à linguagem escrita, à linguagem oral é relativa ao modo como a primeira transcreve asegunda (Chauveau, Rogovas-Chauveau, & AlvesMartins, 1997).

A perspectiva da literacia emergente(Sulzy & Teale, 1996) demonstrou, de formainequívoca, que as crianças desde relativamentecedo estão envolvidas num processo dedesenvolvimento em relação à aquisição da literacia,através do qual poderão ir mais ou menoslonge, em relação à reflexão sobre categorias lingüísticas– como palavra e fonema –, em relaçãoàs funções atribuídas aos atos culturais de literacia,ou em relação aos conceitos relativos à organizaçãoda escrita.

Em contextos de práticasfamiliares e de jardim de infância investidas naliteracia, as crianças conseguirão aperceber-se deum conjunto de funções culturais do ato de ler,poderão aperceber-se das diversas estruturas associadasa diferentes suportes de escrita, compreenderque diferentes formas gráficas correspondema diferentes palavras e significados, reconhecerque é necessário identificar palavraspara se chegar ao sentido da mensagem escrita,aprender algumas letras, identificar globalmentealgumas palavras e refletir sobre a natureza docódigo escrito. No entanto, mesmo quando os contextosfamiliares e educativos incidem em interaçõesfreqüentes em torno da linguagem escrita,não fica assegurado, só por si, que a criança chegueà descoberta do princípio alfabético da escrita.

A COMPLEXIDADE DO PRINCIPIO ALFABÉTICO

A complexidade do princípio alfabético (nomeadamente, a compreensão de que na escrita alfabética todas as palavras são representadas por combinações de um número limitado de símbolos visuais, as letras, e que estas codificam os fonemas), requer da criança um nível de raciocínio conceptual bastante sofisticado. A descoberta deste princípio parece ser uma das tarefas mais complicadas que as crianças têm de enfrentar no seu percurso até a aquisição de comportamentos fluentes de leitura e escrita.

A importância que a apropriação conceptual da estrutura alfabética do código escrito tem para a aquisição da literacia é evidente a partir das abordagens cognitivistas da aprendizagem da leitura.

De acordo com estas perspectivas, a aprendizagem da leitura e da escrita implica, por parte da criança, a descoberta de conceitos relacionados, quer com as funções da linguagem escrita, quer com a natureza das correspondências entre a linguagem escrita e a linguagem oral. É a construção e a elaboração destes conceitos que vai permitir que a criança evolua de um estádio de relativa confusão cognitiva para uma progressiva compreensão (clareza cognitiva) das utilizações funcionais e das características formais da linguagem escrita (Downing & Leong, 1982).

A aquisição destes conceitos por parte da criança é determinante para o sucesso da aprendizagem, na medida em que esta resulta do fato de a criança conseguir transformar estes conceitos em procedimentos de leitura automatizados. Dito por outras palavras, a criança terá que ter uma idéia geral do que fazer para se ler e da estrutura do código escrito, para conseguir praticar, de uma forma integrada, todo o conjunto de operações inerentes à destreza da leitura. No entanto, e como já foi referido, a construção, por parte da criança, de uma representação alfabética da escrita é uma tarefa conceptual de enorme complexidade, a qual deriva do fato de a criança ter que ser capaz de articular competências relativas à análise explícita das palavras nos seus segmentos fonêmicos com conhecimentos relativos ao nomes das letras (Byrne, 1997, 1998), no quadro de uma compreensão de que a linguagem escrita constituiu um código que representa segmentos do oral. O enleio da tarefa começa, em primeiro lugar, com a dificuldade infantil em manipular os constituintes fonêmicos das palavras.

A consciência fonológica é uma competência necessária, ainda que não suficiente, para o pleno entendimento conceptual do princípio alfabético. Ou seja, para compreender que as letras constituem um sistema de notação dos fonemas, as crianças têm que desenvolver, gradualmente, a consciência de que as palavras são decomponíveis em segmentos fonêmicos.

Esta capacidade constrói-se de forma relativamente lenta nas crianças. As modalidades mais elementares da consciência fonológica abrangem a sensibilidade às sílabas, rimas e fonemas iniciais das palavras, e podem desenvolver-se mais ou menos espontaneamente, ao longo dos anos pré-escolares (Liberman et al., 1974; Treiman, 1992). As formas mais evoluídas desta competência, as quais incluem a consciência explícita da estrutura fonética das palavras e a capacidade para manipular os segmentos fonêmicos, requerem alguma modalidade de instrução expressamente orientada para esse efeito (Lundberg, Frost & Peterson, 1988; Alegria & Morais, 1989). A relação entre as competências infantis a este nível e o sucesso na aprendizagem da leitura está claramente estabelecida (Goswamy & Bryant, 1990), tal como está demonstrado que as crianças chegam à escola com graus diversos de consciência fonológica em função da estimulação que tiveram acesso. As perspectivas atuais apostam numa relação recíproca entre a consciência fonológica e a aprendizagem da leitura. Subjacente a esta posição está a idéia de que é necessário um mínimo de capacidades de reflexão sobre o oral para que a criança tenha sucesso no processo de alfabetização, e que a aquisição da literacia vai, por sua vez, permitir o desenvolvimento de competências fonológicas mais sofisticadas.

Assim, e na medida em que esta competência é considerada uma competência necessária para a compreensão do princípio alfabético, tornam se pertinentes, no pré-escolar e nas fases iniciais da aprendizagem da leitura, programas de treino que incluam jogos de análise e manipulação dos componentes orais das palavras.

Por outro lado, a conjugação estratégica das letras com a análise das palavras nos seus segmentos sonoros só poderá acontecer a partir do momento em que a criança ultrapassa concepções mais primitivas sobre o código escrito, nas quais a linguagem escrita é associada, por exemplo, a uma representação das propriedades semânticas das palavras (Ferreiro & Teberosky, 1986).

De fato, uma multiplicidade de trabalhos (Ferreiro, 1988; Pontecorvo & Orsollini, 1996; Sulsby, 1989) têm demonstrado que a compreensão das regras abstratas subjacentes à organização dos sistemas alfabéticos é um processo que se inicia precocemente, através dos contactos informais que as crianças vão fazendo com a linguagem escrita.

Nos seus esforços para compreender os significados das marcas gráficas, e através de interações com os outros (pares e adultos), as crianças vão-se interrogando sobre as correspondências entre os objetos e a escrita, e sobre as relações entre o oral e o escrito. Deste modo, constroem idéias não convencionais sobre as propriedades da escrita e sobre o que esta representa, construindo uma série de hipóteses conceptuais que podem estar mais próximas ou mais afastadas da realidade alfabética.

O trabalho de Ferreiro (1988), no qual se procede à análise das produções escritas infantis antes do ensino formal, sugere que os conhecimentos das crianças, em relação à linguagem escrita, evoluem ao longo de um percurso que se traduz em três níveis essenciais de conceitualização.

Um primeiro nível, que pode ser caracterizado pela procura de critérios que permitam diferenciar os elementos icônicos (que pertencem aos desenhos), e os elementos da escrita, e pela gradual percepção de que uma seqüência de letras constitui objeto substituto da realidade. A par desta diferenciação, a criança elabora, igualmente, critérios que tornam uma série de letras passíveis de transmitir uma mensagem. São eles, a quantidade mínima de letras e a variedade intra- figural. Este último critério remete para a não utilização de uma mesma seqüência de letras em diferentes palavras.

Um segundo nível, traduz-se por um refinamento nos modos de diferenciação qualitativo (diversificação das ordens das letras conhecidas nas tentativas infantis de escrita) e quantitativo (número mínimo de letras para que um escrito seja interpretável) entre os encadeamentos de letras, de modo a assegurar diferenças na representação de diferentes palavras.

Um terceiro nível corresponde à fonetização da escrita que se inicia com a pesquisa das correspondências entre os elementos letras e os segmentos silábicos das palavras (hipótese silábica).

Através deste tipo de relação, a criança começa a resolver o problema da correspondência entre a totalidade da palavra e as suas partes constituintes.

Este nível conceptual culmina com a compreensão da natureza alfabética da linguagem escrita, sendo precedido por uma fase intermédia relativa às escritas silábico-alfabéticas, na qual nem todos os fonemas das palavras são ainda representados.

A partir do momento em que as crianças começam informalmente a proceder a correspondências qualitativas entre os segmentos orais e as letras convencionais, a própria atividade de escrita poderá favorecer análises que vão para além da sílaba, ou seja, para escritos do tipo silábico alfabético e alfabético. Conseqüentemente, a estimulação das escritas inventadas infantis e a reflexão partilhada sobre os produtos escritos realizados poderá constituir uma via para a compreensão da estrutura alfabética da escrita. São vários os autores que apontam os benefícios das escritas infantis inventadas enquanto uma via para aquisição do princípio alfabético.

Adams (1998), por exemplo, refere que: "

"A evidência que as atividades de escrita inventada desenvolvem, simultaneamente, a consciência fonêmica e promovem a compreensão do princípio alfabético é extremamente promissora, especialmente se tivermos em conta a dificuldade que as crianças têm em adquirir este tipo de "insight" através dos métodos de ensino formais".

Também Treiman (1998), sugere que é mais fácil as crianças apreenderem o princípio alfabético através da incorporação de atividades de escrita inventada no ensino, do que através da instrução formal da leitura. A mesma autora considera, ainda, que a atividade de escrita pode estimular o desenvolvimento da consciência fonêmica e defende que a qualidade das escritas infantis constitui um excelente indicador das suas habilidades fonológicas e um bom preditor do posterior sucesso infantil no processo de alfabetização.

Assim, através das práticas de escrita inventada as crianças poderão começar a discernir unidades fonológicas mais abstratas do que as sílabas, e, conseqüentemente, a efetuar as primeiras análises fonêmicas decorrentes da gradual compreensão de que a escrita codifica a linguagem, e a utilizar letras convencionais ao nível silábico.

CONCLUSÃO

Este trabalho procurou mostrar, por meio de uma fundamentação teórica consistente, que as perspectivas apresentadas sugerem a necessidade de uma evolução concomitante, baseada na reflexão sobre o oral e sobre o escrito, para a compreensão do princípio alfabético.

Programas de treino que promovam a consciência das entidades fonêmicas favorecem a apreensão da estrutura fonológica das palavras, mas só a conjugação deste tipo de competências com o conhecimento das letras, no quadro de uma representação do funcionamento da escrita, que, reenviando para uma forma de codificação das unidades orais, permite a compreensão do princípio alfabético (Byrne, 1998).

O incentivo das escritas inventadas e a reflexão sobre a escrita poderá facilitar a transição para hipóteses conceptuais mais evoluídas, onde, gradualmente, as crianças começam a compreender que a escrita codifica unidades do oral e que essas unidades deverão ser representadas por letras com valor sonoro convencional.

Sistematicamente, as nossas escolas negligenciam a importância de se proporcionarem às crianças atividades orientadas para a apropriação conceptual da lógica alfabética, antes e no decurso do ensino formal da leitura e da escrita.

Este fator é, provavelmente, responsável por muitos dos casos referenciados como apresentando dificuldades de aprendizagem no domínio da leitura e da escrita.

REFERÊNCIAS

Adams, M. (1998). Beginning to read: Thinking and learning about print (10th ed.). Cambridge: MITPress.

ALEGRIA, J., & MORAIS, J. (1989). Analyse Segmentale et acquisiton de la lecture. In L. RIEBEN, & C. PERFETTI (Eds.), L'apprentti lecteur. Recherches empiriques et implications pédagógiques (pp. 173-196). Neuchâtel-Paris: Delachaux et Niestlé.

BYRNE, B. (1997). The learnability of the alphabetic principle: children´s initial hypotheses about how print represents spoken language. Applied Psycholinguistics, 17. Hove: Psychology Press.

OUZOULIAS, A. (2001). L'emergence de la conscience phonémique: apprentissage sensoriel ou development conceptuel. In G. Chauveau (Ed.), Comprendre l'enfant lecteur (pp. 101-127). Paris: Editions Retz.

CHAUVEAU, G. ROGOVAS, E. & ALVES, Martins, M. (1997). Comment l'enfant devient lecteur. Paris: Editions Retz.

DOWNING, J. & LEONG, C. K. (1982). Psychology of reading. New York: Macmillan.

FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. (1986). Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas.

FERREIRO, E. (1988). L'écriture avant la lettre. In H. Sinclair (Ed.), La produtions des notations chez le jeune enfant (pp. 18-69). Paris: Presses Universitaires de France.

GOSWAMI, U., & BRYANT, P. (1992). Rhyme, analogy and children's reading. In P. GOUGH, L. Ehri, & R. TREIMAN (Eds.), Reading acquisition (pp. 49-64). New Jersey: Lawrence Erlbaum.

LIBERMAN, I. Y., SHANKWEILER, D., FISCHER, F. W., & CARTER, B. (1974). Reading and the awareness of linguistic segments. Journal of Experimental Child Psychology, 18, 201-212.

LUNDBERG, I. FROST, J. & PETERSON, O.P. (1988). Efffects of an extensive program for stimulating phonological awareness in preschool children. Reading Research Quarterly, 23 (3), 8-17.

PONTECORVO, C., & ORSOLINI, M. (1996). Writing and written language in children´s development. In C. PONTECORVO, M. ORSOLINI, B. BURGE, & L. RESNICK (Eds.), Children´s early text construction (pp. 3 23). New Jersey: Lawrence Erlbaum.

SULZBY, E. (1989). Assessment of emergent writing and children´s language while writing. In L. MORROW, & J. SMITH (Eds.), Writing in real time: Modelling production processes (pp. 83-109). New York: Longman.

TREIMAN, R. (1998). Why spelling? The benefits of incorporating spelling into beginning to reading instruction. In J. L. METSALA, & L. C. EHRI (Eds.), Word recognition in beginning literacy (pp. 289-313). London: Lawrence Erlbaum.


Autor: VAMILSON SOUZA D`ESPÍNDOLA


Artigos Relacionados


A Perspectiva Construtivista De Ensino

A Inserção Do Inglês Como Um Segundo Idioma No Processo De Alfabetização

A Importância Do Lúdico No Desenvolvimento Da Criança

Os Jogos Na Clínica Psicopedagógica

O Papel Do Professor De Educação Infantil

A Função Da Escola E Da Educação

ReflexÃo Sobre O Ensino Da Linguagem Oral E Escrita Com CrianÇas De AtÉ Cinco Anos.