Abril de 42



 

 

ABRIL DE 1943 – Diário de Guerra

de Romano Dazzi

 

A primavera explodia naqueles dias, mais alegre e colorida do que nunca, trazendo,  na brisa nova,  muitos aromas antigos.

Mas era tempo de guerra. Faltavam produtos, escasseava a comida.

A aliança improvável da Itália com a Alemanha – tradicionalmente  avessas a compromissos mútuos – funcionava só em Berlim e em Roma; para nós, italianos do norte, era apenas um capricho passageiro.

Na guerra anterior, menos de trinta  anos antes, os pobres soldados dos dois exércitos tinham ficado frente a frente, congelando, agarrados em cada morro, em cada fresta das montanhas, ficando de tocaia como caçadores e atirando uns nos outros traiçoeiramente, durante três longos anos.

Os lamentos daqueles coitados, forçados a pegar em armas sem entender o que se passava, ecoam ainda hoje dos dois lados do front, nas tristes, dolorosas canções daqueles tempos.

 

Mas agora, surgia uma nova , uma santa Aliança, contra a plutocracia americana, o decadente socialismo francês, a rançosa democracia inglesa, e acima de tudo, contra o mais terrível inimigo – o comunismo internacional.     

Fascismo e nacional socialismo, juntos, haveriam de erradicar todos os erros da humanidade e preparar uma era de progresso e de bem estar.

Bem,. esta era a tônica da época. E deu no que deu....

 

Em evidente demonstração de boa vontade, o alto comando alemão resolveu mandar para a nossa pequena, insignificante cidadezinha, um grupo de uns sessenta militares.

Eram sem dúvida um corpo de elite; pertenciam à Luftwaffe; usavam uniformes azuis, limpos, impecáveis, bem passados; botas lustrosas, armas portáteis que nunca sonháramos que existissem.

Chegaram garbosos e educados, todos altos e bonitos, com meios blindados de transporte rápido; instalaram-se em poucas horas, executando um plano perfeito, que incluía a montagem das barracas entre um traçado de caminhos regulares e bem demarcados; cavaram valetas, levantaram proteções seguras e sebes artificiais; montaram quatro torres pré-fabricadas nos cantos do acampamento.  Tudo rigorosamente camuflado, para não ser visto do céu.

Estavam deslocados, porque não existia nenhum aeroporto no raio de cinqüenta quilômetros. O que faria uma força-tarefa daquelas na nossa cidade, permaneceu um mistério por um ano e meio, enquanto eles se amalgamavam aos poucos, vencendo a natural desconfiança da população.

Lembro-me que nos mostravam as armas, os carregadores de munições, os meios de comunicação; nós todos, apenas ingênuas crianças, babávamos com tantas novidades inesperadas e vivíamos excitados e saltitantes.

Eles foram a sensação da cidade; chegamos quase a gostar deles, que se apresentavam mais como amigos simpáticos e cooperativos, do que como a força invasora – que realmente eram, como percebemos mais tarde.

 

Entre os soldados alemães havia alguns muito sérios e rigorosos.

Esses não nos deixavam mexer nos equipamentos, nem chegar perto dos canhões, instalados em pontos estratégicos. 

Mas outros, geralmente mais jovens e efusivos, nos cativavam com sua atitude cordial. Explicavam, com as únicas quatorze palavras de italiano que conheciam, como funcionava cada um dos objetos que atiçavam nossa curiosidade.  Lembro-me de um rapaz – terá tido uns 22 ou 23 anos – que mostrava como o capacete de aço, moldado em curvas suaves, bem calculadas, faria escorregar as balas por uma tangente, em nove vezes sobre dez que fosse atingido. – E na décima?  - perguntávamos . Muita sorte do inimigo – respondia ele, resignadamente. – E azar meu....

 

Em poucas semanas, mantendo aceso nosso interesse, iniciaram um curso de alemão, ao ar livre e absolutamente de graça.     

Agnese, uma menina espevitada, alegre e desinibida, que até dois meses antes participava dos nossos jogos de correr na rua, sentiu-se de repente muito interessada em aprender alemão. E encontrou um professor de muita boa vontade:o loiro soldadinho raso Franz Joseph, 23 anos, solteiro, estudante da Universidade de Leipzig, transformado de um dia para o outro, em guerreiro teutônico.  As aulas deles entravam pela noite adentro e às vezes, creio que para facilitar e melhorar o aprendizado, os dois ficavam de mãos dadas. Só bem mais tarde aprendi que devia ser uma questão de osmose.

A família de Agnese não dava muita atenção; penso até que fingiam não ver nada – não queriam ser incomodados. E tudo corria como devia.

 

Mas nada, nem ninguém, é hoje o que foi ontem; nada, nem ninguém, será amanhã o que é hoje.

Um ano depois, os altos oficiais italianos resolveram unilateralmente que estavam cansados de guerra e o governo passou-se com armas e bagagens (mais bagagens que armas, na verdade) para o outro lado, dizendo simplesmente: “não brinco mais....”.

 

O sorriso, a gentileza e as boas maneiras  dos “fardas azuis” transformaram-se imediatamente em raiva,  em ameaçadoras ordens do dia, em empurrões e maus tratos, provocando humilhação e atiçando o ódio do povo.

 

Este clima, que se deteriorou de um momento para o outro, envolveu-nos a todos. Tínhamos virado inimigos, como se cada um deles tivesse cometido os piores crimes contra nós; e cada um de nós,  contra eles. O desprezo era o sentimento mais suave que se respirava na cidade.  O resto era ódio puro. Agora, quase setenta anos depois,  vejo como todos fomos estúpidas marionetes,  empurradas de um lado para o outro, numa contenda que nunca foi nossa e da qual todos sairíamos perdedores..

 

 Agnese, surpresa e   assustada,  logo virou alvo de antipatia, por ter confraternizado com o estrangeiro; ela era atacada na rua, xingada, agredida. Por fim, ela foi escondida  pela família, que receava uma vingança pior de alguma “cabeça quente”. Lembro como se fosse hoje, os olhos de Agnese, naquele último dia em que a vi: estavam tristes, baços, assustados.  Não era mais uma garota; era uma figura perdida, estática, desligada.

Estava lutando a sua própria guerra particular, da qual não entendia as razões e os fins.  

Franz Joseph também desapareceu, retido pelos oficiais por estar “colaborando” com aquele que agora era, de repente, o seu novo e o pior  adversário. 

Voltou um mês depois, comandando um  pequeno pelotão, que se dirigia, em marcha firme, para a casa de Agnese.

Acho que estava apenas tentando encontrá-la, pela ultima vez antes de ser transferido para quem sabe onde; ou talvez quisesse protegê-la  das pessoas enfurecidas e vingativas.

Mas ele nunca  chegou lá.

O grupo foi atacado de tocaia, com uma fuzilaria cerrada, das janelas de umas vinte casas.  Um a um, todos caíram, sem poder reagir, sem saber o que acontecia.

De repente, de um portão próximo, apareceu uma figurinha delicada, magra, pálida. Correu para onde se encontrava Franz Joseph, mortalmente atingido. Agarrou-se nele, enrolou-o em um  xale branco de lã, e esperou, sem medo, um último tiro, que veio imediatamente. Ela caiu abraçada nele e parecia que, finalmente, estava de novo feliz. Sorria.

 

Os primeiro flocos de neve do inverno de 44, um dos mais rigorosos dos cem últimos  anos, começavam a cair lenta, doce, suavemente.

Em poucos minutos eles os cobriram.

Nós entendemos como a guerra é estúpida, inútil, desumana e cruel; e juramos que nunca, nunca mais,  permitiríamos que algo assim acontecesse  de novo.

Mas nada será amanhã, o que é hoje.  

 

  


Autor: Romano Dazzi


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