A escalada



A ESCALADA

De Romano Dazzi

 

Nasci à sombra dos Alpes; todos os dias, ao acordar,  via as “minhas” montanhas.

Conhecia o perfil de cada pico, de cada canal, de cada desfiladeiro;  e de cada um sabia o nome e o apelido, como se fossem pessoas conhecidas, amigas.

Voltava todos os anos, no domingos de verão e subia sozinho, movido pelo atrevimento e pelo despreparo dos jovens, jogando com a sorte o com o destino.

Nove vezes em dez, ele nos ajuda. Na décima, é morte certa.

Mas quando amadureci um pouco, descobri como escalar em grupo é mais bonito e gratificante.

A “cordata”, como é chamada por lá,  a escalada  com todos amarrados por umas grossa corda um ao outro, é um rito antigo, de significado profundo.

Começa semanas antes: reunimo-nos em oito ou dez e resolvemos juntar forças para um grande desafio. Discutimos longamente para escolher o nosso objetivo.

A partir daí, analisamos com cuidado  todos os detalhes do percurso.  

Fazemos pequenos mapas, traçamos desenhos, estudamos caminhos  e passagens de maior dificuldade.

Cada um traz sua experiência, os velhos falam,  os jovens escutam.

Dependendo do caminho escolhido, o material necessário será diferente; ele é preparado e conferido cuidadosamente;  grandes rolos de cordas grossas, firmemente trançadas, sem fios soltos, sem defeitos; e  cunhas de aço, mosquetões, martelos, curtas picaretas com asas, cantis, gazes.

Os menos experientes fazem e refazem, centenas de vezes, os nós nas cordas, dos quais dependerá a vida de todos e de cada um.

Separamos luvas, sapatos especiais para escalar, meias grossas, casacos e malhas; porque lá em cima, no sol, faz um calor insuportável; mas quando o tempo vira, a temperatura baixa de repente, o frio fustiga-nos   e a umidade penetra até os ossos.

Sabemos já, de antemão, a ordem dos participantes; ninguém escolhe, ninguém é escolhido. O mais experiente na frente, o segundo por último; no meio, os novatos.

Da base da montanha ao início da escalada, umas duas horas de caminhada nos aquecem e nos preparam .

Sob o peso que carregamos, os passos são lentos, pausados, regulares como o dobre de um grande sino.

E finalmente o declive acaba abruptamente e o paredão quase vertical, está lá,  imperturbável,  imenso,  desafiando nossa coragem.

Não somos  mais dez seres isolados. Estamos fundidos em um bloco só, uma só vontade,  uma única força vital. Nada, agora, pode deter-nos.

O primeiro, o chefe de escalada,  começa a tatear a rocha, ensaiando os primeiros passos; a corda passa de mão em mão, atravessa os mosquetões na cintura e se estende por oito, dez metros, de um a outro.

O experiente chefe sabe aproveitar as ressaltos, as irregularidades, as cavidades que o gelo,  sol, o vento rasgaram na rocha. 

Quando não há mais apoio, planta uma cunha, martelando-a e encaixando-a profundamente, o mais firme possível.  Fecha um mosquetão, passa a corda nele e sobe mais um pouco. Somos todos ligados, agora, a um destino comum. Um único erro de um de nós representa o perigo de todos nós.

Quando  o primeiro encontra alguma pedra meio solta, pouco confiável, escava em volta e a deixa cair, para que outro escalador não perca o equilíbrio, ao se apoiar nela. se apóie nela;  lá vem o grito: “Pedra!!” e todos se encolhem, com o rosto o mais perto possível do paredão, rezando para que as pedras que descem voando, passem o mais longe possível.

Escolher o ponto de apoio certo, torna-se mais que  uma ciência,  uma arte delicada , um refinado conjunto de capacidades, que põem em ação todos os sentidos, todos os instintos, todo o conhecimento adquirido em anos de experiência.    

Por isso, todos repetimos religiosamente os mesmos passos de quem está na nossa frente, ou melhor, acima de nós.  Pisamos no mesmo ponto, levantamo-nos na mesma pedra, traçamos no ar os mesmos gestos controlados. 

Passo a passo, centímetro a centímetro, a escalada vai lentamente conquistando a altura. Suamos pelo esforço, pelo medo, pela tensão, pela concentração.

Não há sons; salvo, raramente, o grasnido  agudo e irritado de um falcão, incomodado com  a presença dos estranhos no seu reino. 

Uma parada de poucos minutos, um gole de água e adiante, para uma nova etapa.

Não olhamos para cima, ou para baixo, ou para trás. Nosso único panorama é aquele quadradinho de rocha de 30 x 30, que está diante dos nossos olhos, e sobre o qual nossos braços, os cotovelos, os pulsos, os dedos, exercem uma força que jamais imaginávamos possuir.  Esta é uma vingança da montanha. Ela não nos permitirá virar o rosto e ter o gosto de apreciar nossa conquista, enquanto não a tivermos dominado e vencido completamente, enquanto não tivermos  chegado ao cume. 

E  finalmente chegamos lá.

Sem  perceber, de repente, não há mais parede para olhar.

Apenas um estreito descampado horizontal, com alguns fios de grama sofrida, umas pedras soltas, uma cruz e as inscrições  modestas de quem conseguiu chegar aqui antes; nomes e datas, corroídas pelo tempo, alguns já ilegíveis.

O panorama é indescritível. Reconhecemos as vilas, os lugarejos, as trilhas; uma parte da vista é coberta por nuvens leves, esgarçadas, que se espalham abaixo de nós.

A solidão é total, assustadora e maravilhosa.

Todos os nossos sentidos são levados à sublimação.

Respiramos uma atmosfera diferente, vemos cores que nunca tínhamos visto antes; o vento produz sons estranhos, como os sopros de um órgão, a  saudar nossa vitória.

Mas a gente não grita, não se agita, não comemora.

Não há senso de orgulho, ou a noção de termos cumprido um dever.

Apenas um reverente e comedido agradecimento; um suspiro de alívio, um relaxamento da tensão acumulada.

Logo vem a hora de partir, antes que o cansaço se insinue nos músculos e os faça distender-se e adormecer.

A conquista do cume é apenas  metade da tarefa.

Agora, é descer; e uma falha na descida pode ser mais trágica que ao subir.

Descemos como subimos; com o rosto colado na montanha, pagando-lhe um tributo de humildade, tentando adivinhar qual o melhor ponto para colocar o bico da bota, testando, arriscando, voltando e procurando até encontrar algo sólido.

A corda, que nos atrapalha os movimentos, é agora, mais do que nunca, o nosso cordão umbilical, a salvação pronta, mesmo que precária.

Só quando ganhamos o declive, quando o paredão se interrompe, extravasando na ampla campina verde, a tensão se alivia.

Rimos,  um pouco de satisfação, um pouco de nervoso.

A adrenalina retoma aos poucos ao normal.

A experiência acabou.

Não é que a gente se sinta melhor ou pior.

Simplesmente,  sentimos.  Somos.  Existimos.  Vivemos.

A experiência inesquecível incorpora-se às nossas fibras e nunca mais nos deixará; nunca mais seremos os mesmos. 

 


Autor: Romano Dazzi


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