O Agã-Chanagui Ofaié



O Agã-Chanaguí [1] Ofaié

Carlos Alberto dos Santos Dutra [2]

1 - O TERRITÓRIO OFAIÉ:

A noção de território para os índios Ofaié pode ser entendida a partir das palavras de Xehitâ-ha, uma de suas maiores lideranças na atualidade: Uns cem anos atrás, o meu povo Ofaié vivia sossegado, porque tinha muita caça, pesca e mel. Não tinha nenhum invasor. O Ofaié vivia na maior felicidade. Tinha a sua cultura, a sua dança, eram os Ofaié saudáveis. Onde que os Ofaié viviam era à margem do rio Paraná. Os Ofaié conheciam de palmo a palmo aquela região. Nossos aldeamentos eram sempre por alguns dias, isto porque, para não acabar com todas as caças. E as caminhadas eram sempre nas margens dos rios. Hoje, atualmente, esses rios chamam-se rio Paraná, rio Verde, rio Vacaria, rio Ivinheima, rio Taquaruçu, rio Casa Verde, e muitos outros (DUTRA, 1996: 30-31.).

O texto acima nos revela que o território Ofaié sempre foi definido em função das necessidades econômicas do grupo, ou seja, pela abundância da caça, da pesca e do mel, e pela ausência do invasor e do estranho que adentrava esse espaço apontado pelo ex-cacique como da maior felicidade. A organização espacial de uma sociedade, entretanto, é o reflexo não somente das normas de um sistema social e estilo de vida aprovado (GEERTZ, 1978: 146) pela tradição desse grupo, revela também impedimentos, imposições e interferências exógenas.

Antes da ação mediadora do Estado brasileiro, a relação entre os povos indígenas e a terra foi sempre entendida como meio básico de produção e sustentáculo de suas identidades étnicas (OLIVEIRA, 1998: 17). Mergulhar na história Ofaié é, sem dúvida, acompanha-los em suas correrias ao longo dos rios, que conheciam muito bem e os nomeavam um a um, e ajuda-los a desvendar os contextos históricos e as conjunturas políticas cujos reflexos determinaram o desterro e praticamente o extermínio desse povo.

A familiaridade com que os Ofaié se relacionavam diante do extenso território por onde perambulavam é confirmada pela toponímia utilizada por eles e que foi recolhida pelos primeiros viajantes. Vivendo em pequenos aldeamentos, para desfrutarem da caça, da coleta e da pesca sazonal, por onde passavam, davam denominações próprias a cada um desses lugares: rios Paraná (Keregawa-tá); rio Pardo (Pi-kieédn); rio Verde (Xyurú); ribeirão Ivipiranga (Xanekxí-xejekíji-fíe); rio Taquaruçu (Téxekwie-eg-fíe); rio Ivinheima (Woke-ógfíe); ribeirão Laranjalzinho (Hopár-og-fíe); rio Samambaia (Kre-óg-fíe); ribeirão Combate (Poe-korã-fíe); ribeirão Três Barras (Yakéw-og-fíe), entre outros (NIMUENDAJÚ, 1932: 567- 573; IHERING, 1912: 9-13). Se por um lado, revelam, através dos vestígios da nomenclatura geográfica, os limites de suas posses e aldeamentos, por outro, denunciam também a perseguição de que foram vítima, e que os fazia dispersarem-se em grupos distintos.

Da cabeceira dos grandes rios, classicamente habitados pelos Ofaié, --Verde, Taquaruçu e Pardo--, desde do alto Sucuriú até o vale do Ivinheima, passando pelos campos da Vacaria, Inhanduí e Brilhante, até a sua foz junto ao rio Paraná e seus tributários menores Samambaia, Boa Esperança, Três Barras, Combate e outros, toda a ocupação que se tem notícia norteou-se em direção ao Sudeste e ao longo desses rios. Orientando-se pelas variações do clima e o caráter sazonal da exploração econômica que desenvolviam, os diversos grupos Ofaié acabaram mesmo por ocupar um extenso território.

Durante a estação seca eles vivem às margens do rio ou próximos da água. Os campos são deixados de lado por causa dos mosquitos e carrapatos. É a estação da pesca e das grandes festas religiosas e sociais. Contrariamente, durante a estação das chuvas, toda a população vai caçar os animais selvagens que debandam por causa dos mosquitos nos campos. Os índios perambulam, então, sem paradeiro, construindo um abrigo provisório para passar a noite (LOUKOTKA, 1931: 121-2).

A noção de territorialidade é sempre uma construção determinada pelo modus vivendi e pelas adaptações e incorporações que dada população se submete ao longo do tempo, porém, ela não é suficiente para explicar mudanças históricas tão significativas, como as que resultaram para os Ofaié, na perda tão substancial de seu território. O confinamento desse povo a uma área tão exígua, hoje, a exemplo da história recente das demais etnias do estado de Mato Grosso do Sul (BRAND, 1993), sem dúvida, foi delineado em circunstâncias contemporâneas e concretas, dentro de um quadro sempre relativo de forças e pressões adversas (...), e que não corresponde de modo algum à livre e espontânea expressão da vontade dos membros dessa coletividade (OLIVEIRA, 1998: 9).

Grosso modo, podemos atribuir ao antigo território Ofaié os seguintes limites: ao Norte, dividiam sua terra com a nação Kaiapó que habitava o chamado Sertão de Camapuã, nos altos do rio Sucuriú e o rio Verde (NOTÍCIAS, 1842). O rio Paraná, a Leste, em quase toda a extensão da margem direita, desde a desembocadura do Tietê até o Paranapanema, os separava dos Kaingang e dos Oti (Oti Chavantes), do estado de São Paulo. Ao Sul, vizinhavam os Ofaié com diversos grupos Guarani, chamados de Caiuá (NIMUENDAJÚ, 1913), da margem direita do rio Ivinheima e do ribeirão Samambaia até sua foz com o Paraná.

A Oeste dividiam seu território com os índios Terena, na região de Aquidauana e Dois Irmãos do Buriti, nos limites e contornos da serra de Maracajú. Do lado paulista, o território Ofaié não se estendia muito além da margem do rio Paraná. Raros são os registros em que os Ofaié demonstram ter realizado suas ranchações de caçadas na margem esquerda do chamado rio Bandeirante. Uma notícia de 1801 menciona a existência de pelos menos cinco aldeias Ofaié em ambas as margens do Paraná, nas barras dos rios Tietê e Sucuriú. Outra informação, de 1908, relata que um bando de 60 a 70 Ofaié atravessou o rio Paraná, regressando, porém, dois anos depois sob a acusação de que teriam sido assaltado pelos Kaingang paulistas que lhe tomaram as crianças (BALDUS, apud FREUDT, 1947:91).

A relação que os Ofaié mantinham com as demais etnias, sem dúvida, serviu de parâmetro para este grupo definir os limites de seu território, às vezes confundindo-se com o de seus inimigos. Muito embora houvesse por parte dos Ofaié e Kaiowá incursões de ambos os lados, desde assaltos até raptos de mulheres e crianças, em algumas áreas, dada a proximidade e convivência, a influência era notória. Como no vale do Ivinheima, onde o Serviço de Proteção aos Índios-SPI observou que naquela região, os Ofaié ali já estavam guaranizados e todos os homens e mulheres falavam bem o Guarani (NIMUENDAJÚ, 1987: 124, nota 86). Para os Kaingang paulistas, os Ofaié eram considerados seus inimigos de sangue (CARVALHO apud MELATTI, 1976: 93, nota). Nos assaltos contra os fogs, isto é, contra os índios Oti, de Campos Novos e contra os Chavantes, de Mato Grosso, descreve um funcionário do SPI, os ribeirinhos do Paraná e os civilizados, as armas de tiro figuravam, mas, ainda assim, só no começo da ação, para atemorizar, desorganizar e provocar a debandada do inimigo (BARBOSA, 1947:66).

Perguntado, certa vez, a 15 faé (Ofaié) do rio Taquaruçu, por que motivo cruzaram o rio Paraná e ocuparam as terras da margem paulista, onde havia muito Coroado (Kaingang) de que eles tinham tanto medo, eles responderam ao tenente Vasconcellos que os Coroados estavam muito longe e que xiuié agoniê (gente brava, em Ofaié, referindo-se aos civilizados) estavam matando-os a todos do lado de cá. No Porto Tibiriçá (margem paulista do rio Paraná, município de Presidente Epitácio), o mesmo Relatório menciona ainda uma lista de 22 índios com seus respectivos apelidos indígenas todos oriundos da região do córrego Sapé (margem direita do rio Pardo, município de Bataguaçu), onde havia li um grande aldeamento.

Vestígios, portanto, da presença Ofaié ocupando diversos lugares numa mesma época tende a confirmar não somente a mobilidade desses índios, mas, por outro lado, atestar que, em um determinado momento da história, eles deviam viver todos reunidos em um mesmo local, de onde, a partir de pressões adversas, se dispersaram. A existência de elementos comuns de sua cultura material, como armas, bornais, flautas e cachimbos esculpidos em madeira (HARTMANN & DAMY, 1986: 239), bem como a presença de artefatos arqueológicos que foram recolhidos a partir de diversos pontos do Estado, nos levam a crer que os Ofaié tiveram sob seu domínio um extenso território.

2 - AS PRIMEIRAS NOTÍCIAS:

Antes do chamado Ciclo do Ouro da América Portuguesa, caracterizado por conhecidas e trilhadas bandeiras de apresamento, que no Centro Oeste se deram a partir de 1718 (BRUNO, 1966: 60), o território ocupado pelos Ofaié era vasto e aparentemente descontínuo. O convívio com a violência, a perseguição e o extermínio praticado pelas entradas ao longo dos séculos, fê-los, seguramente, dividirem-se em grupos, nunca, entretanto, distanciando-se das margens dos rios já citados. Ainda que não se possa precisar a ordem cronológica que essa dispersão tenha ocorrido, não é difícil de presumir que ela deita raízes na presença da exploração agropastoril que se impôs sobre seus territórios.

A presença Ofaié, que só começa a ser oficialmente percebida a partir do começo do século XX, com a ocupação das terras sul-mato-grossenses, é interessante notar que a grande maioria dos documentos revela sempre a existência de bandos e grupos dispersos, desconsiderando a possibilidade dos Ofaié exercerem o domínio e a soberania sobre um determinado território. Desnecessário lembrar que na sua maioria os relatórios e levantamentos realizados, a partir de 1910, com a criação do SPI provinham de regionais e indivíduos via de regra ligados à exploração econômica, principalmente da erva-mate e do gado e que teriam o maior interesse em classificar os índios como sem residência fixa, o que reforçaria a tese da necessidade de assenta-los em áreas reservadas (Cf. ALMEIDA, 2001: 21).

Ao longo dos anos, complexas e tensas foram as relações vividas entre os Ofaié e o espaço físico que ocuparam. As evidências etnohistóricas retratadas pelas expedições que adentraram o Sul do estado de Mato Grosso, a partir de 1716 (Cf. TAUNAY, 1929), nos levam a concordar com o líder Xehitâ-ha, de que Ofaié conheciam mesmo palmo a palmo essa região que compreendia os campos circunscritos à Serra de Maracajú até o alto Paraná (NIMUENDAJÚ, 1913; Cf. FIGUEIRÊDO, 1936: 113), território que lhes garantiu por longo período a autonomia e a sobrevivência.

Identificados primeiramente como índios selvagens da nação Chavante, em 1848 (LOPES, 1872: 316), os Ofaié são vistos desde o Paranapanema (ADOPTIVSOHN, 1928) até a desembocadura do rio do Peixe, afluente esquerdo do rio Paraná (no município de Ouro Verde), pelo lado paulista e ribeirão Boa Esperança, seu afluente direito (no município de Brasilândia), pelo lado sul-mato-grossense (COMISSÃO, 1913: 10), ocasião em que houve encontro armado contra os Ofaié. O fato de esses índios terem sido encontrados em 1948, ainda praticando suas tradições musicais (CAMEU, 1977: 63-4) junto a margem esquerda do ribeirão Samambaia (no município de Bataiporã) na confluência com o rio Ivinheima (no município de Taquaruçu) revela a solidez desse aldeamento e o domínio que os índios exerciam sobre esse território.

Até o ano de 1924, na região de Porto Quinze (no município de Bataguaçu), um grupo de Ofaié ainda mantinha um aldeamento de proporções consideráveis formado por uma taba construída com folha de palmeira entrecruzada. Achados arqueológicos recolhidos em 1958, na região sul de Bataguaçu, na faixa justaposta ao rio Paraná, apontam vestígios da existência de sepulcrários com urnas fúnebres Ofaié, do tipo igaçabas. Também há registros de que na Fazenda Herval, localizada a aproximadamente 50 km de Bataguaçu, foi localizado um aldeamento Ofaié, onde foi recolhido fragmentos de uma urna fúnebre, apresentando o embelezamento pela chamada técnica da unha (BLUNA,1973).

3 - NOS CAMPOS DA VACARIA:

O rio Vacaria que corre, desde as suas cabeceiras, paralelamente com o rio Brilhante, seguindo, depois, lado a lado com o Ivinheima até encontrar-se com este nos limites do município de Rio Brilhante e Angélica, banha em toda a sua extensão os chamados campos da Vacaria (NIMUENDAJÚ, 1913). Por ser a região onde a exploração agropecuária foi uma das primeiras a se firmar na região sul do antigo estado de Mato Grosso, foi também a que maior influência exerceu sobre os que ali originariamente se encontravam: os índios Ofaié.

Nessa região, os Ofaié que eram chamados de 0paié, foram encontrados em 1886, ocupando um espigão coberto de mato entre os rios Santa Luzia e Vacaria, onde era difícil de surpreendêlos, devido à vigilância que ali mantinham (Idem). Nas cabeceiras do rio Vacaria, imediações da Fazenda do Campeiro (hoje próximo ao distrito de Capão Seco, município de Sidrolândia), um índio menor, da nação Ofaié, escravizado pelos fazendeiros da Vacaria (RELATÓRIO, 1949: 102) foi identificado por Cândido Rondon. É nessa faixa de terra, na margem direita desse rio, que encontramos ainda hoje a presença de remanescentes indígenas na localidade denominada Aroeira Ofaié (hoje distrito de Prudêncio Tomaz, município de Rio Brilhante), identificado por Curt Nimuendajú e Cândido Rondon em seus mapas. Um grupo de Ofaié que disperso nessa região foi transferido para o Posto de Ivinheima em 1913, pelo etnólogo alemão, ocasião em que recolheu a grande maioria da mitologia existente sobre os Ofaié (NIMUENDAJÚ, 1987: 125-7).

O registro de um ataque que eles teriam desferido nessa região contra o pouso de João Pires não deixa dúvida que o grupo que ali vivia ofereceu séria resistência contra a ocupação de seu território.Outros dois assaltos que os Ofaié teriam realizado, um na fazenda de José Britto, em São Bento, na cabeceira do rio Vacaria e outro no engenho de Joaquim Barbosa, antigo fazendeiro da região, perto da barra do Passa-Tempo, hoje município de Rio Brilhante, são testemunhas dessa resistência.

A violência dos embates é possível perceber no relato de Curt Nimuendajú, onde, em represália a um ataque supostamente Ofaié, ocorrido na região, chefiados por um tal de capitão Ignácio (Cf. MACHADO, 1987: 8), o fazendeiro Joaquim Barbosa teria encarregado, um grupo de Caiuá, moradores dos arredores, de trazer as orelhas dos assaltantes, sob pena de serem todos degolados. Os Caiuá meteram-se no mato atrás dos Ofaié e, logo depois, entregaram ao fazendeiro os troféus exigidos (NIMUENDAJÚ, 1913).

4 - NO VALE DO IVINHEIMA:

Os Ofaié desse vale, seguramente, são egressos dos campos da Vacaria que, perseguidos pelos criadores de gado, seguiram o curso desse rio até o Ivinheima navegável, descendo até a sua foz. Essa região foi palco de inúmeras disputas entre fazendeiros e indígenas, sob a intervenção do SPI, que buscava instalar nas margens férteis desse rio, os primeiros postos ou reservas para a população dispersa Ofaié. Nessa região, tida como zona da mata e formada pelo desaguadouro de vários rios, como o Samambaia, Três Barras, Quiteroi e Santa Elidia, extensas faixas de cerrado se infiltram na paisagem florestal, e uma vegetação exuberante, com características das matas ciliares, orla quase toda a banda direita do Paraná e seus tributários para alargar-se ao longo do Pardo e ainda mais à altura do Ivinheima, onde a selva latifoliada parece prolongar além das águas barrentas as matas do Oeste de São Paulo (HOLANDA, 1986: 46). A vegetação e a formação do terreno, nesses moldes, assim protegia os Ofaié mais do que nos campos abertos da Vacaria.

Na margem esquerda do rio Ivinheima os Ofaié divisavam suas terras com os Kaiowá que habitavam a borda oposta desse rio e os chamavam de Iyviva (apenas pessoas). Em 1900, contra índios acusados de terem praticado um ataque que vitimou um tal de João Nogueira, que havia se estabelecido no córrego da Vaca Morta, os sertanejos seguiram, então, em perseguição dos índios, chefiados por Manoel Nogueira, irmão do defunto. Descendo pelo rio Papagaio para o lado do rio Ivinheima encontram uma aldeia Kaiowá, onde assassina 8 a 10 pessoas pacíficas e inofensivas. Dizem uns, que mataram os Kaiowá por engano, convencido de que eram Ofaié (NIMUENDAJÚ, 1913).

Ao relatar esse morticínio o etnólogo confessa: Com certeza estes bugreiros, saíram resolvidos a matar quantos índios encontrassem, fosse qual fosse a nacionalidade. Isto porque, depois deste 'engano', ainda não satisfeitos, seguiram rumo Leste do rio Samambaia e, encontrando uma aldeia Ofaié, mataram a todos que ali estavam (Idem). O ribeirão próximo à aldeia onde se deu este crime ainda hoje se chama ribeirão Combate (Poe-korãfíe), e é limítrofe dos municípios de Anaurilândia e Bataiporã. Ao lado da fazenda onde esse fato ocorreu há um monumento de alvenaria com as inscrições: Filhos e companheiros que foram infortunadamente trucidados pelos Chavantes em 19-04-1900 (RIBEIRO, 1951: 92).

5 - NA SERRA DE MARACAJU:

A presença do bando disperso de Ofaié sediado na região do Taboco, ao norte de Aquidauana (NIMUENDAJÚ, 1987: 124, nota 86), localizado, portanto, cerca de quinhentos quilômetros de distância, em direção Noroeste, do território considerado tradicional desses índios --o baixo Ivinheima--, ainda hoje é motivo de discussão. Estudos arqueológicos ulteriores, necessários à presente pesquisa, devem certificar a primitividade dessa ocupação, trazendo esclarecimentos sobre a antiguidade desse grupo, confirmando a existência ou não de um grupo primeiro, do qual todos os demais teriam tido origem.

O que se sabe é que em 1927, o SPI requereu uma área de terra para alguns índios Terena aldeados há mais de 35 anos no lugar denominado Invernada do Buriti, limites da Fazenda de Correntes, pertencente nesta época ao município de Aquidauana. Essa fazenda está localizada hoje nas margens da antiga Estrada de Ferro Noroeste do Brasil-NOB e da BR-262, no município de Dois Irmãos do Buriti, próximo ao distrito de Palmeiras.

Segundo a Inspetoria do SPI, havia uma faixa de terras devolutas nos limites dessa fazenda como sendo habitada pelos Ofaié, antecessores dos atuais, e cuja medição, realizada em 1896, não havia reservado essa área para os Terena. A permanência dos Ofaié nessa região, contudo, parece não ter se estendido muito além do ano de 1913, pois a partir desse período, intensificou-se a presença de fazendeiros e índios na nação Terena remanescentes daqueles que, durante o conflito com o Paraguai, teriam se refugiado no alto da serra do Maracajú (Cf. OLIVEIRA, 1976: 85, nota).

Seguramente até essa data, antes do surgimento da primeira aldeia Terena, na chamada Invernada do Buriti, o território junto às margens do rio Taboco, cuja cabeceira se encontra muito próxima às nascentes do ribeirão Correntes, era de ocupação Ofaié. Nimuendajú chega a registrar que eles eram chamados pelos Terena de Wahéi (tartarugas terrestres) e pelos brasileiros de Guachi e as vezes de Botocudos (NIMUNEDAJÚ, Idem). O dialeto Guachi falado pelos Ofaié nessa região teria alguma relação lingüística com os índios do Chaco paraguaio. Tudo leva a crer, entretanto, tratar-se de um aldeamento de tradição e proporções significativas, pois os estudiosos que lá tiveram se defrontaram com manifestações culturais reveladoras e consistentes: tais como a dança e o uso de instrumentos musicais (MANIZER, 1934: 303-7).

A presença Ofaié nessa região, portanto, deve ser antiga e seus domínios deviam se estender até as vizinhanças da vila Nioac. Entre 1850 e 1912 encontramos o registro de que em represália contra um assalto que os Ofaié teriam praticado na região, foi organizado uma expedição na qual tomaram parte 8 praças do Destacamento de Nioac, e que acabou com morticínio geral entre os índios desprevenidos, da primeira aldeia de Ofaié Chavante que encontraram (NIMUENDAJÚ, 1913).

6 - NA REGIÃO DO RIO TAQUARUÇU:

Um dos registros mais antigos e confiáveis sobre o território ocupado pelos Ofaié na margem direita do chamado alto Paraná aponta para a existência de pelos menos dois grupos distintos, porém, de procedência comum. Tamanha foi a importância desses aldeamentos que eles acabaram por merecer do SPI, em 1911, a preocupação no sentido de se firmar duas porções de terrenos, uma próxima ao Taquaruçu e outra nas mediações do rio Verde para a localização dos Chavantes (METELLO, 1911).

O primeiro desses aldeamentos, cujos índios, à época são descritos como semicivilizados Chavantes, foi encontrado em 1922, nas margens do rio Taquaruçu. Este rio corre em direção ao Paraná, chamado de Paranazão, entre o Pardo e o Verde, no município de Brasilândia. Na ocasião, foi estudado com bastante interesse o processo de obtenção do fogo pela fricção da madeira (LANE, 1938: 1-3, tradução nossa) que era desenvolvido pelo grupo que ali vivia.

Ora, o bastão ou pau-de-fogo usado pelos Ofaié nesse aldeamento, na descrição detalhada do pesquisador que lá esteve é, sem dúvida, uma das práticas e um dos instrumentos mais primitivos que se tem notícia o seu uso na região. O pequeno afluente do ribeirão São Pedro, tributário do rio Taquaruçu, denominado córrego da Aldeia, indica a localização mais precisa desse aldeamento, cujos limites hoje se estendiam pelas terras da Fazenda Santa Virgínia e distrito de Debrasa (Destilaria Brasilândia S.A) [3], cuja porção espacial incidia sobre o território indígena.

7 - NA REGIÃO DO RIO VERDE:

Este aldeamento foi identificado em 1913, como sendo localizado na fazenda dos Norte Americanos, atual município de Brasilândia, quando um tal coronel Feijó, que se opunha aos freis Franciscanos Capuchinhos estabelecidos na barra do rio Verde, não consentia a permanência dos Ofaié nos limites da fazenda. Por diversas vezes ameaçou expulsá-los, alegando que apesar da Catequese, os Ofaié estavam incomodando o pessoal da dita fazenda, espantando os camaradas do Retiro da Boa Esperança, localizada a oito léguas acima do Taquaruçu, e fazendo trilhos no mato. A chamada fazenda dos Norte Americanos na verdade tratava-se da firma inglesa The Brazil Land Cattle and Packing Company Sociedade Anônima, proprietária de quase toda a extensão da margem direita do rio Paraná: de um espigão ao Norte do rio Verde até o espigão divisor entre os rios Taquaruçu e Pardo (NIMUENDAJÚ, 1913).

Documentos apontam que, no decorrer do tempo, ao grupo do rio Verde se somaram outros Ofaié emigrados das margens do Ivinheima. Os apontamentos do tenente Vicente de Paulo Vasconcellos, de 1911, quando incumbido de prestar assistência aos Chavantes que viviam no riacho Três Barras, já registrava as longínquas excursões que estes índios faziam até o rio Verde, onde encontravam mais recursos e proteção.

O cemitério Ofaié ainda hoje localizado junto ao córrego Puladouro (margem direita do rio Verde) próximo à rodovia MS-395, no município de Brasilândia, confirma essas migrações e aponta a identificação da aldeia (realizada pelos próprios Ofaié em 1988 ao autor) que ali existiu. Entre os nomes dos índios ali viviam e que foram arrolados pelo SPI em 1953 pelo funcionário Francisco Ibiapina Fonseca, encontra-se a presença de nomes de diversos Ofaié que constam de uma relação primeira, elaborada por Curt Nimuendajú em 1913, como pertencente ao grupo do Laranjalzinho (afluente do Samambaia), região do Ivinheima.

Nesse aldeamento das margens do rio Verde, escreve o funcionário do SPI, falei com o chefe da tribo Caetano Coimbra, informando-me que seus pais e avós sempre viveram, tendo diversas moradas, nos lugares chamados: Barreiro, Cachoeirinha, encosta do Rio Paraná, e outros lugares dentro da fazenda Boa Esperança, e que há anos que os que querem ser donos da fazenda, não querem mais eles naquelas terras, e por isso vieram na cidade de Três Lagoas se queixarem (FONSECA, 1953).

Ao visitar o sítio dos Freis Franciscanos Capuchinhos, localizado nas margens do Paraná, Curt Nimuendajú, em 1911, relata que, na barra do rio Verde, observou na beira de uma lagoa, a existência de uma dúzia de ranchinhos que serviam de abrigo para os índios Ofaié. Alerta o etnólogo que qualquer plano de atrair os índios para aquele ponto, onde a maioria dos habitantes já estava acometida pela febre, consistia um crime. Disseram-lhe os frades que às vezes chegavam até 30 índios naquele local. No dia em que etnólogo lá se encontrava havia somente oito índios, alguns deles sofrendo de maleita.

O Provincial dessa Ordem, em 1912, chegou a solicitar ao Congresso Estadual de São Paulo a cessão gratuita de uma área de duas léguas quadradas, ou sejam 14.400 hectares, das terras devolutas situadas à margem esquerda do Paraná, no vale do Ribeirão das Marrecas, para a Catequese, das atuais aldeias dos diversos grupos indígenas que viviam ao longo do rio Paraná (Coroados, Guarani, Chavantes e Cayuá). O Ribeirão das Marrecas desemboca no rio Paraná entre os municípios de Panorama e Paulicéia, confrontante com a desembocadura do rio Verde, no município de Brasilândia, do lado sul-mato-grossense.

Preocupado com os Ofaié, Nimuendajú, ainda durante um mês, percorre vários rios, iniciando pelo rio Verde, a fim de achar os trilhos dos Ofaié e de entrar em contatos com eles, mas já não os encontra mais aí. Parece-lhe, também, que os Ofaié não freqüentam mais as margens do Taquaruçu. Lamentando a falta de recursos, e ao mesmo tempo ainda achando necessário visitar aquele local (fazenda dos Norte Americanos) para ver a situação e aconselhar os moradores de não matar os índios, o etnólogo prossegue descendo o rio Paraná, encontrando vestígios de aldeias em todo o correr do rio até a Orelha de Onça (que os Ofaié chamam de Texekuiê-og-fíe, que quer dizer água de uma certa qualidade de abelha).

Três dias antes de falecer, no dia 10 de dezembro de 1945, Nimuendajú escreve ao Professor Aryon Dall'Igna Rodrigues: O habitat dos Ofaié, tanto no tempo da sua maior expressão como no ano de 1908 em que visitei uma tribo pela primeira vez, o Sr. pode ver no mapa que acompanha o trabalho de Herman von Ihering (...). O rio Verde é um afluente do rio Paraná e creio que hoje, restam dos Ofaié, quando muito alguns indivíduos avulsos (...) (NIMUENDAJÚ & GUÉRIOS, 1948: 241).

8 - A INTERVENÇÃO DO ESTADO:

A partir de 1830, a crescente ocupação econômica do tipo pastoril, cada vez mais se interessa por novos pastos para seus rebanhos, e isso acaba agindo de maneira decisiva sobre a economia e os povos indígenas do sul do Estado. A região é praticamente tomada de assalto, resultando para os Ofaié verdadeiro ciclo de forçadas migrações. Sobretudo com o surgimento das fazendas, já com feições modernas e constituídas de pastos delimitados por cerca de arame farpado. Cercas que, se por um lado se tornavam indispensáveis à contenção dos rebanhos, por outro, eram o maior impedimento ao livre trânsito dos índios e motivo para persegui-los (DUTRA, 1996: 94).

A mão de obra indígena, por outro lado, se vê definitivamente incorporada à economia regional do Mato Grosso já a partir do final do século XIX. Se antes havia servido como produtora de bens agrícolas para um comércio irregular de cereais e da erva mate, aos poucos sua vinculação à ordem social e econômica da região passa a institucionalizar-se, relegando ao índio cada vez mais a condição de peão (Cf. OLIVEIRA, 1968: 41).

É por iniciativa de Cândido Rondon, em 1903, que se realiza o que se pode chamar de primeiro contato pacífico com os Ofaié, quando eles foram estimados em 2.000 indivíduos. Dez anos depois, segundo informações, já seriam pouco mais de 900. Na década de 1950 eram 200 e hoje pouco mais de 60 indivíduos. A invasão sistemática dos criadores de gado, que praticamente os dizimou, por abaterem suas rezes como se fossem veados ou porcos selvagens (RIBEIRO, 1977: 85), foi a razão maior que fê-los dividirem-se cada vez mais em bandos, sem contudo desvincularem-se dos costumes e da linguagem.

Uma das primeiras referências oficiais dos esforços realizados pelo Governo, através do SPI, em favor dos Ofaié, dirige-se justamente ao grupo de indígenas mais antigo e ameaçado, que se encontrava nas cabeceiras dos rios Negro e Taboco, nas terras altas do Aquidauana: É necessário proteger a segurança pessoal e a vida desses índios. Tratava-se de salvar o que ainda restava da tribo de Ofaié, reclama Cândido Rondon, pois esses índios estavam sendo sistematicamente caçados e exterminados a tiros de carabina pelo Coronel José Alves Ribeiro, sob o pretexto de que matavam, para comer, as rezes de suas fazendas (MISSÃO, 1916: 58).

Porém, foi somente com a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil-NOB e os trabalhos de ligação entre Bauru (estado de São Paulo) e Porto Esperança (estado de Mato Grosso), iniciados em 1905 e concluídos em 1914, e com a criação do SPI, em 1910, que as áreas ocupadas por indígenas começaram a ser reservadas através de Decretos e Atos firmados pelos Presidentes de Estado, ou através de Resoluções expedidas por Câmaras Municipais (OLIVEIRA, 1968: 42-3).

Para a concretização de muitas dessas áreas, os Relatórios da Comissão das Linhas Telegráficas, do Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon e os Relatórios de Curt Nimuendajú foram decisivos para a efetivação dos limites dos territórios de muitos povos indígenas. No caso dos Ofaié, entretanto, eles não se revestiram da força jurídica e política necessária para garantir uma área de terra para um grupo tão duramente perseguido. A região que ocuparam ao longo dos anos nunca chegou a ser efetivamente reservada, apesar dos reiterados alertas que a documentação manifestou em favor desse povo que se extinguia rapidamente.

Embarcações da Companhia de Viação de São Paulo-Mato Grosso que, descendo os rios Iguatemy, Amambay, Ivinheima e Pardo, subiam o rio Paraná em busca do Porto Epitácio, ponta dos trilhos da estrada de ferro Sorocabana (FIGUEIRÊDO, 1936: 114) conduzindo erva mate e também gado para Guairá e para a capital paulista, muito ajudaram os Chavantes da barra do rio Taquaruçu (orelha de Onça) com alimentação, presentes e roupas.

Os esforços do tenente Vasconcellos à época, que chegou a excursionar por este rio com a finalidade de reunir os Ofaié com seus naturais na região do ribeirão Três Barras, porém, não surtiu qualquer efeito e a reserva que propunha implantar no Porto XV, nunca não se realizou.

Uma iniciativa que aparentemente resultou segurança para os Ofaié deu-se por intermédio do criador de gado Ramón Coimbra, um boliviano natural de Santa Cruz de la Sierra, que veio para a região da Vacaria em 1896 e iniciou suas atividades como empregado do cidadão Manoel da Costa Lima, fazendeiro de Inhanduí. Mudando-se em 1903 para o lugar chamado Aroeira [4], antigo Porto da Aroeira, na margem esquerda do Vacaria (Cf. DUTRA, 1996: 106, nota 97), hoje distrito do município de Rio Brilhante, ele fez roças e entrou em contato direto com os Ofaié que habitavam aquela região.

Interessante notar que a estratégia adotada na pacificação --escreve o coronel Luiz Bueno Horta Barbosa--, consistia principalmente na abertura de estradas e no plantio de roças, postas à disposição dos silvícolas, que ali iam pilhar a vontade o milho verde, abóbora e favas, que muito apreciam, encontrando também úteis e valiosos presentes (MORAES, 1951: 60). Desta forma, grandes acampamentos eram construídos e ao seu lado, roças eram plantadas, para cevar bugre, imprimindo assim a pacificação de tribos hostis ou simplesmente arredias, a fim de garantir uma ocupação tranqüila de zonas pioneiras (PRÉZIA & HOORNAERT, 1989: 145).

Grande número de criadores de gado, nessa época, valeram-se desse expediente para atrair índios, não com o propósito de mata-los --se bem que o fazendeiro Octaviano Pinto, do ribeirão Laranjal (município de Nova Andradina), chegou a revelar que só uma vez sentiu vontade de matar índios. Muitos proprietários, revela Nimuendajú, atraíam índios para o seu lado tão-somente para serem nomeados devedor deles. Um tal de Pedro Lopes (do retiro Santa Angélica), estava cobiçando o cargo de Diretor dos Índios (...) chegando a requere-lo ao governo estadual. Tamanho foi o interesse na época, que o Presidente do Estado, Cel. Antônio Paes de Barros chegou a negar uma oferta do proprietário Domingos Pires (vulgo Gato Preto) que queria ceder uma légua em quadra para o aldeamento dos Ofaié (NIMUENDAJÚ, 1913) em troca do cargo.

Nomeado inicialmente como Diretor dos Índios Chavantes aldeados em Nioac, D. Ramón Coimbra reúne 30 camaradas: cinco homens e 13 mulheres e crianças Ofaié (Idem), retirando-os logicamente de seus espaços tradicionais para assenta-los em áreas que seriam reservadas mais tarde pelo Estado. Tais áreas, entretanto, nunca chegaram a ser definidas: o agrimensor nomeado para medir uma dessas áreas (a do Posto Ivinheima), por exemplo, mal iniciou o trabalho e já havia se dedicado a uma medição particular, vindo logo a abandonar o serviço. Ainda assim, os índios do Laranjalzinho (que foram catalogados por Curt Nimuendajú) e, depois levados para o Posto de Ivinheima, na margem esquerda deste rio, vinte léguas abaixo de sua confluência com o Vacaria, ali permaneceram por muitos anos.

Nas palavras oficiais: cerca de 200 índios Ofaié recentemente saídos das matas, mas já entregues a trabalhos de agricultura (EXPOSIÇÃO, 1913: 41). Sob a proteção do SPI, tratou a Inspetoria de colocar esses Chavantes do rio Negro também no Posto de Ivinheima, ao lado dos seus irmãos de tribo (Idem). O Posto de Ivinheima, parece ter sido um dos últimos redutos que reuniu índios que ofereceu relativa segurança aos Ofaié.

9 - UMA ÁREA PARA OS OFAIÉ:

Entre as iniciativas de maior consistência, com o objetivo de garantir aos Ofaié uma área de terra foi, sem dúvida, o Decreto nº 683, de 20 de novembro de 1924 (GAZETA, 1924), onde o 1º Vice-Presidente em exercício de Mato Grosso, Dr. Estevão Alves Corrêa, atendendo à solicitação do SPI, reservou duas áreas de terras devolutas de 3.600 hectares, sendo uma para os Ofaié e outra para o Kaiowá. Essa reserva surge como que uma resposta aos reiterados apelos de comissões científicas e funcionários do SPI que em seus relatórios denunciavam os estragos da maleita, varíola e as armas dos bugreiros (NIMUENDAJÚ, 1913), que estava dizimando os Ofaié. Ora, o chamado Posto do Ivinheima já existia oficialmente desde 1911, portanto, 13 anos antes da assinatura desse Decreto, há registros de que lá existiam cerca de 210 índios sobreviventes da tuberculose e da gripe espanhola (BALDUS apud FREUDT, 1947: 5, introdução).

Ao reunir neste local índios Chavantes e Guaranis, o SPI cumpria, tão-somente, diretivas de sua administração que se propunham simplificar as relações tensas que estes índios travavam com a elite rural que se estabelecia no sul do estado de Mato Grosso: Por toda parte, estabelecida a pacificação, os índios são atraídos aos postos pelo espetáculo dos recursos de que dispõe nossa civilização industrial, e, depois de terem modificado suficientemente os seus hábitos, reunidos em povoações indígenas, onde lhes são fornecidos todos os meios de que carecem para um conveniente desenvolvimento de seus hábitos agrícolas (RÁPIDO, 1913: 15).

Um documento de 1921 informa, entretanto, que o Posto de Ivinheima, não mais era mantido pelo SPI nesta data, pois devido à falta de verbas orçamentárias, lamenta o tenente Vicente Vasconcellos, o órgão teve de abandonar essa tribo dócil e pacífica (MAGALHÃES, 1921: 271). Três anos após a assinatura deste Decreto, em 29 de abril de 1927, foi lavrado no município de Campo Grande, os Autos da Demarcação da área de terras reservadas pelo Governo do Estado, pelo Decreto nº 683, de vinte de novembro de 1924, para o patrimônio dos índios Chavantes, realizado sob a responsabilidade do Engenheiro Agrimensor Waldomiro de Souza. A julgar, entretanto, pela quantidade de carimbos que o citado documento apresenta, deve-se concluir que ele percorreu diversas repartições públicas antes de representar alguma possibilidade de garantia de terra para os Ofaié: Em 1927, o carimbo do SPI; em 1961, o carimbo da Delegacia Especial de Terras e Colonização; em 1987, o carimbo do Terrasul, e em data ilegível o carimbo da Funai.

Sem qualquer efeito prático para os Ofaié, após esse período, desde a sua assinatura até a sua revogação 28 anos depois, ocorrida em 8 de maio de 1952, através do Decreto nº 1.302, do Governador Fernando Corrêa da Costa, a informações se diluem em meio a dificuldades práticas, que vão desde a nossa escassa e nem sempre disponível historiografia, às cinzas de documentos oficiais, inadvertida ou criminosamente destruídos. Com um atraso de 64 anos a partir da assinatura e após 36 anos da revogação desse documento, eis que em abril de 1988, a desenhista Bete Araújo, do Terrasul de Campo Grande, ainda elabora, a partir daqueles Autos, em escala 1:100.000, um intempestivo mapa do Patrimônio dos Índios Chavantes.

Uma remessa de 1949, do Conselho Nacional de Proteção aos Índios, com informações sobre as terras dos índios Ofaiés (DUTRA, 1996: 117) chegou a contestar a tal reserva que teria sido demarcada para os Ofaié. A propriedade dessas terras, segundo o Coronel Nicolau Bueno Horta Barbosa, era equivocadamente atribuída a um tal Coronel Quincas Nogueira, morto por volta de 1938, e que seus herdeiros jamais obtiveram o reconhecimento legal da ocupação. Segundo ele as terras estavam livres e ao alcance de quem as requeresse. Ainda que existissem relatórios e desenhos, que poderiam ser encontrados na sede da 6ª Inspetoria Regional de Cuiabá, referindo-se favoravelmente ao trabalho do prestimoso auxiliar Pimenta Barbosa, que demarcou o território para os Ofaié, sua habilitação profissional também foi contestada pelo coronel.

As razões de toda essa resistência, entretanto, não deve causar estranheza. A área do Decreto fazia limites com propriedades de figuras ilustres da agropecuária sul-mato-grossens nessa época: D. Ramón Coimbra, Joaquim Nogueira, Ladislau Pereira, Raimundo Martins, abrangendo igualmente terras da Fazenda Primavera, de Antônio Joaquim de Moura Andrade (Cf. GUIMARÃES, 1968: 154), hoje no município de Bataiporã. Como sabemos, o processo natural da expansão da sociedade brasileira deu-se às custas dos territórios indígenas: Desenvolveu-se mesmo, uma série de técnicas parajurídicas, à margem da legislação, para coonestar estas alienações. Uma delas (...) era a promoção nominal da aldeia indígena, à vila, passando, assim, suas terras a constituírem patrimônio coletivo, cuja posse podia ser concedida a particulares pelas autoridades da nova comuna (RIBEIRO, 1977: 199).

Cumpre registrar, com relação ao Decreto 683, dois meses antes de sua revogação, o ex-Chefe da IR-5 declara a um fazendeiro da região que essas terras em questão, não interessam aos índios, que aliás não se encontram mais nelas; são devolutas e por nenhum título a cargo do Serviço de Proteção aos Índios. Encontram-se desimpedidas e podem ser requeridas por qualquer a quem interessarem. Sua pretensão não fere os interesses do SPI (DUTRA, 1996: 179, nota 80).

Alegando não possuir a IR-5 nenhum documento relativo às terras onde estiveram umas poucas famílias indígenas sob a vigilância espontânea do Sr. Ramón desculpa-se dizendo que aquelas terras nunca foram demarcadas para aqueles infelizes. E como eles constituirão um grupo caminhando para a extinção (...), jamais fui impulsionado a visitá-los.

Uma última referência a essa terra decretada para os Ofaié, consta do levantamento cadastral das terras indígenas do Estado de Mato Grosso, apresentadas em outubro de 1965 ao Major Aviador Diretor do SPI, de Brasília, sob o título: Patrimônio dos Índios Chavantes: o processo foi remetido para Cuiabá em 06-03-56.

10 - O ÚLTIMO ALDEAMENTO OFAIÉ:

Por volta de 1930, o restante da população Ofaié que ainda permanecia nas margens do rio Samambaia e Ivinheima emigram (NIMUENDAJÚ, 1913) [5], em sua grande maioria, a montante do rio Paraná em direção aos aldeamentos do Rio Verde e Taquaruçu. A indígena Ofaié, Eugênia da Silva, falecida em 1982, tem registrado seu nascimento em 28 de março de 1889, já na localidade de Boa Esperança, hoje município de Brasilândia [6]. Fixaram suas aldeias provavelmente por toda essa região, notadamente em terras que mais tardepassaram a integrar o território que foi arrematado em leilão pela Fazenda Boa Esperança (antiga The Brazil Land Cattle and Packing Company) que iria prosseguir com a cantilena de perseguição aos índios.

Entre tratores e linques, poeira e fumaça das queimadas, o projeto colonizador se impõe, povoando os campos com seu gado e cana de açúcar, e transformando-se em pouco tempo, em senhores da vida e da morte, ceifando da terra plantas e bichos, árvores e gente.

Um ano após a compra da área, em 1952, os Ofaié são expulsos das margens do ribeirão Boa Esperança. Esta expulsão leva a Inspetoria do SPI, de Campo Grande, a proferir uma diligência chefiada por Francisco Ibiapina da Fonseca com a missão de percorrer as margens dos rios Samambaia e Paraná à procura de aldeamentos Ofaié e Kaiowá.

O funcionário do SPI, Francisco Ibiapina os encontra, nesta época, aldeados nas proximidades da ponte do rio Verde e promete tomar providências junto à Diretoria no sentido à criação de um posto para atender esses índios, no próximo ano, assim como está providenciando sobre a legalização de uma área de terras para esse fim. O índio Alfredo Coimbra, falecido em 1988, em entrevista ao autor, lembra muito bem o nome e o abandono dos que ali se encontram enterrados.

Vivendo ainda no interior dos 120 mil hectares da fazenda Boa Esperança, que abrangia o córrego Boa Esperança, rio Taquaruçu, margem direita do rio Paraná, córrego dos Índios, córrego das Onças, córrego do Bugre, córrego da Aldeia, e muito mais, de tudo aquilo que os Ofaié podiam imaginar [7], permanecem os Ofaié aí por mais de dois anos. Em 1953 a IR-5 de Campo Grande promete inclusive a construir uma casinha em Rio Verde, na Aldeia dos Xavantes para melhor lhes dar assistência [8].

O surgimento da Funai, em 1967, pouco iria acrescentar à esperança dos Ofaié em ver uma parte de seu território garantido. A cantilena de conflitos gerados pela mentalidade visivelmente antiindígena dos oligarcas da terra e da sociedade liberal que emerge, inexoravelmente, impediria também a Funai de agir em favor dos Ofaié. Grande parte do grupo, relativamente integrado à vida das fazendas, é brutalmente explorado no trabalho, determinando um ciclo de vida cada vez mais curto para seus descendentes. A desativação da Posto de Ivinheima e a penetração colonizadora que invade esta região de forma imperiosa, não devem ter deixado muita escolha aos Ofaié, senão a de juntar-se a seus antigos patrícios residentes mais ao norte, acima da linha do rio Pardo.

Perdido o controle físico do grupo por parte do órgão oficial, por um período de 20 (vinte) anos não se ouve mais falar em Ofaié. Convivendo com essa idéia, a sociedade civil mais esclarecida, acaba também por esquecê-los. A anônima resistência de um pequeno grupo que se soergueu das cinzas, entretanto, os mantêm unidos na língua e nos costumes. Desafiam de maneira admirável a imposição cultural que lhes é imposta, preservando um mínimo de seu modus vivendi. Historiadores e cientistas sociais, em vão, buscaram divulga-los em suas teses de extermínio, chegando a considera-los extintos (RIBEIRO, 1977: 252, nota). Também o órgão tutor, cômoda e desintessadamente sugerem o extermínio como solução para o secular problema da expropriação das terras Ofaié.

Desde 1956, quando os Ofaié deixam as margens do rio Verde e voltam para a cabeceira dos córregos Sete e São Paulo, afluentes do ribeirão Boa Esperança, a área de aproximadamente 700 hectares que ocupam é constantemente invadida. Em 1965 essa área é vendida e os Ofaié, que vivem espremidos entre dois cemitérios e quase sem nenhum espaço para plantar e caçar, passam a viver situação de grande tensão com os novos proprietários que toleram a permanência dos índios por uma década, utilizando-se deles como subempregados.

As nossas terras --escreve o líder Xehitâ-ha--, foram invadidas por pessoas estranhas que chegaram de outro estado. Os mesmos que usaram os Ofaié como escravos. Os mesmos, onde os Ofaié trabalharam sem ganhar nada, somente a cachaça. Mal alimentados, os Ofaié foram vencidos. Os invasores custearam a destruição bem barato, porque usaram os Ofaié e a mão-de-obra ficou barata (DUTRA, 1996: 40). Isso até o ano de 1976, quando o jornalista Luiz Carlos Lopes, do jornal O Estado de São Paulo, põe os esquecidos Ofaié na ordem do dia.

Localizada nas terras que integram hoje a Fazenda Boa Esperança, no município de Brasilândia, essa aldeia foi descrita como apenas um ponto isolado de uma gleba com mais de 10 mil alqueires, onde o homem civilizado só começou a chegar há alguns anos, para mudar os costumes (DOENÇAS, 1976). A aldeia Esperança, como era conhecida, nessa época era formada apenas por seis casebres cobertos de sapé têm as paredes revestidas de barro e em seu interior, apenas uma cama de varas. De resto, apenas algumas roupas pessoais e alguns vasilhames de água. Ninguém jamais havia ouvido em Funai ou em qualquer outro órgão de assistência aos índios. Na verdade, poucos acreditavam que a Funai conhecesse a existência daquela tribo.

Distante a cinco quilômetros da estrada que liga Brasilândia ao antigo distrito de Xavantina (hoje município de Santa Rira do Pardo), e a 17 km da cidade, o retrato da aldeia é de decadência e abandono: A falta de terras e de qualquer apoio oficial (.,.). Naquela aldeia não há rezes ou cavalos (...). As crianças não têm leite (...). Quando a fome é forte, os mais velhos ainda saem para a caça, mas o máximo que conseguem são alguns tatus e tamanduás. Às vezes conseguem mel. Até a pesca é limitada. O único córrego onde tentam apanhar peixes é o que passa próximo a aldeia (ribeirão Boa Esperança) e onde a piscicultura é cada vez mais difícil. Só quando a fome é demais é que alguns mais corajosos se atrevem a sair à noite para tentar a sorte nos açudes das fazendas próximas, onde o peixe é farto, mas a pesca é proibida. Chega-se a ponto de terem de aproveitar como alimento a carne de animais que encontram mortos, ainda que estragados (Idem).

O chefe do grupo, José Táa, de 62 anos foi catalogado por Curt Nimuendajú como pertencente ao antigo grupo que vivia no Laranjalzinho, em 1913, o que prova a origem e a rota de migração que esse grupo empreendeu ao longo da margem do rio Paraná. O cacique lamenta que seus conselhos não são mais seguidos pelos jovens que se recusam de fabricar suas próprias armas -arcos e flechas. Antes -conta- quando tínhamos nossa própria terra, o chefe era respeitado e seu desejo era a lei. Agora nossos homens não obedecem e até as jovens se casam sem pedir nosso consentimento.

Dois anos após a denúncia do jornalista, eis que a Funai, pela primeira vez visita os Ofaié. Promete aos índios uma terra espaçosa, caça e pesca e moradias de alvenaria para todos numa área distante e estranha aos índios. Xehitâ-ha conta que o funcionário de nome Jamiro ao visitá-los disse: --Vocês precisam sair daqui, vocês vão morrer juntos dessas vacas. Vamos para uma reserva que só tem índio. E nós fiquemos animados pra sair de lá, confessa o ex-Cacique. O índios Eduardo é levado pelo órgão tutor para verificar a nova área. Passados sete meses, o índio não volta e a Funai, sob o comando do Administrador Joel de Oliveira, faz a transferência dos índios para a serra da Bodoquena, jogando os Ofaié na área de conflito da reserva dos índios Kadiwéu.

Assim escreveu o líder Xehitâ-ha sobre esse episódio: Sem dúvida alguma os fazendeiros fizeram festa e soltaram foguetes com a decisão de seus companheiros invasores, principalmente os que tiveram a coragem de roubar o último palmo de nosso chão. Tudo na base da injustiça, ato de irresponsabilidade. Esta região e este município estava condenando esses bugres para serem extintos. E então deixamos a nossa terra e os enterros dos nossos antepassados (DUTRA, 1996: 48).

Quando retornaram da região de Bodoquena, em 1986, os Ofaié somam-se aos demais que haviam permanecido na região. Recebido com estranheza, são considerados forasteiros em sua própria terra. Acampados ao longo das estradas, confundidos com sem-terra, em barracos de lonas, restavam apenas 27 pessoas. Alguns dos que negaram de ir para Bodoquena haviam se refugiado em fazendas, dispersos, escondendo a identidade. A princípio tentam ocupar novamente a área de sua antiga aldeia nas margens do córrego Sete, mas encontram o território totalmente descaracterizado e logo são convidados a deixar a área.

Em maio de 1987, dois representantes Ofaié viajam a Brasília, ocasião em que entregam à Funai um amplo relatório fornecendo subsídios para que o órgão tutor desse início a um GT (Grupo de Trabalho Interministerial), objetivando recuperar pelo menos uma parte do território desses índios. Ao final do encontro com o Superintendente de Assuntos Fundiários, Daniel de Souza Marques e com o Presidente da Funai, Romero Jucá Filho, os Ofaié obtém tão-somente promessas. Depois de passar por diversos convênios envolvendo o Terrasul, do estado de Mato Grosso do Sul e o Ministério do Interior/Funai, que prometia em 1988 regularizar todas a terás indígenas do Estado, os Ofaié permaneciam acampados em barracos de lona na margem da estrada no Porto João André (rio Paraná). A considerar a imemorialidade da vasta região que ocuparam é fácil de entender as palavras de Xehitâ-ha ao jornalista Luiz Carlos Lopes da Agência Estado: nós temos vergonha de dizer, mas a verdade é que estamos morando de favor nas terras que nos pertenciam (DUTRA, 1989: 39).

Uma campanha lançada por diversas entidades em favor dos Ofaié mobiliza a opinião pública nacional e internacionalmente, o que obriga o Governo a se manifestar. O Superintendente da 2ª Regional da Funai, Nilson Campos, chega a reconhecer que os Ofaié tem direito adquirido sobre mais de dois mil hectares que lhes foi sonegado. Contando com o apoio da Imprensa e de diversos setores da sociedade civil, os Ofaié conseguem que a Funai ultime os estudos antropológicos sobre o território reivindicado por eles. A Portaria 264 de 1992 garante finalmente aos Ofaié 1.937 hectares nas margens do córrego Sete. Logo em seguida os fazendeiros que ocupam a área ingressam na Justiça obtendo através de liminar a suspensão dos efeitos dessa Portaria.

Foi, porém, através da iniciativa do servidor da Funai, Silbene de Almeida, cedido temporariamente à Eletronorte, que a história dos Ofaié tomou rumo diverso do abandono. A Companhia Energética de São Paulo-Cesp havia manifestado interesse em viabilizar uma área de terra definitiva para os Ofaié, uma vez que alguns de seus projetos de hidrelétrica afetariam terras tradicionais desses índios.

11 - O TERRITÓRIO OFAIÉ, HOJE:

Desesperançosos com a morosidade do Governo em lhes garantir um território, e, depois de presenciarem uma perícia judicial que lhes foi desfavorável, a ponto da Procuradoria da União ter de requerer uma outra, os Ofaié continuaram ocupando uma área de 110 hectares que a Funai lhes arrenda em regime de comodato nas margens do rio Verde, afluente do Paraná (município de Brasilândia). Isso até 1997, quando o grupo é transferidos pela Cesp (Companhia Energética de São Paulo) para uma área de 484 hectares em função da inundação da Barragem de Sérgio Mota (ex-Porto Primavera) em construção no rio Paraná, entre os estados de Mato Grosso do Sul e São Paulo.

Por força do Convênio 04/94 firmado entre a concessionária elétrica paulista e a Funai, em abril de 1994, os Ofaié obtém a promessa de diversas benfeitorias e projetos de subsistência. A área onde atualmente se encontram as 18 famílias que compõem o grupo é contígua ao território imemorial dos Ofaié, porém a mesma não dispõe de curso natural de água, o que tem dificultado em muito o plantio de roças e a criação de animais. Desde a assinatura deste convênio, entretanto, oito anos se passaram, sem a concretização da grande maioria dos projetos prometidos pela Cesp, entre eles o da liberação de recursos para a indenização das benfeitorias dos fazendeiros que ocupam a área de 1.937 hectares, imemorial Ofaié, declarada pela Portaria 264/92 e que se encontra atualmente sub judice.

Apesar das dificuldades vividas pelos índios que têm convivido na mesma área, sob a anuência da Funai, com elementos da etnia Guarani e Kaiowá, graças à pressão e a mobilização que eles conseguiram sensibilizar a Procuradora da República em MS, Drª Danilce Vanessa Arte Ortiz Camy a sair em defesa dos Ofaié fazendo-a ajuizar uma Ação Civil Pública perante a 3ª Vara Federal de Campo Grande-MS contra a Cesp, de modo a impedir o fechamento do restante das comportas da hidrelétrica Sérgio Motta enquanto não se cumprisse as cláusulas do Convênio 04/94 em favor dos Ofaié.

Fruto desse trabalho, depois de inúmeras reuniões, propostas e contrapropostas, eis que no mês de março de 2002 é assinado o TAC-Termo de Ajustamento de Conduta, firmado entre o Ministério Público Federal, Comunidade Indígena Ofaié, Cesp, Funai e Governador do Estado de MS, que pôs fim à lide proposta contra a Cesp em troca do cumprimento de obrigações junto à comunidade Ofaié, figurando o Estado de MS como co-obrigado.

O acordo obrigou a Cesp a depositar em juízo 1,641 milhão que será utilizado pela Associação Indígena Ofaié Xavante para o pagamento das benfeitorias dos fazendeiros ocupantes de seu território, de modo que os mesmos desocupem a área liberando-a para os índios. Receberão os Ofaié, por força desse convênio, rede elétrica nas casas, construção de 18 novas casas de alvenarias, reforma da Escola Ofaié E-Iniecheki, bem como projetos de criação de gado leite, aves, plantio de roças, projeto de piscicultura, compra de veículo, trator e maquinários. Para cada dia de atraso no cronograma das obras, prevê o TAC, uma multa ao Estado de MS, de três mil reais.

Animados com a possibilidade de voltarem para as margens do córrego Sete, os Ofaié mais antigos (apenas 16 ainda falam a língua ofaié hoje), teimam em querer construir suas casas no mesmo local onde existia o antigo aldeamento, destruído em 1978, nas margens do córrego Sete. A noção de território, para os órgãos de Governo, nunca foi sociológica; sempre foi entendia e descrita como categoria jurídica. Em nenhum momento interessou ao SPI, e depois Funai, resguardar o local de moradia ou de significação simbólica dos Ofaié, tais como antigos aldeamentos, cemitérios, lugares míticos de lembrança e que os identificava como povo. O Estatuto do Índio, já em 1973, deixava claro o desejo de garantir aos índios a terra como meio de produção necessário, reduzindo-lhes o seu habitat, a meros limites de uma reserva (Cf. OLIVEIRA, 1998: 18).

Depois de possuírem mais de 40 aldeamentos distribuídos ao longo dos rios e interior de fazendas, hoje os últimos caçadores e coletores da margem direita do rio Paraná, o chamado povo do mel finalmente poderá dizer Aga-chô-e (esta é a nossa casa). Depois de terem sido donos de mais de 140 mil hectares, eis que lhe o resta: um pedaço de terra, em troca da vida de uma nação. Todo o olhar Ofaié se ilumina quando nos mostram os campos, as pindaíbas e as águas já escassas do córrego Sete, numa sentença por demais profunda ao historiador: Xe-he-guí (aqui é o lugar que eu quero morrer).

Porque eles conheciam palmo a palmo essa região: rios Santo Anastácio (aldeamento em 1864); barra do Pardo (aldeamento em 1905); margem esquerda do Samambaia (aldeamento em 1905); Fazenda Campeiro (aldeamento em 1905); Vacaria (aldeamento em 1905), cabeceiras do Negro (aldeamento em 1907); margens do Taboco (aldeamento em 1911); barra do Taquaruçu (aldeamento em 1911); no Porto Tibiriçá (aldeamento em 1911); margem esquerda do Ivinheima (aldeamento em 1911); Verde (solicitação de área em 1911); no Ribeirão das Marrecas (solicitação de área em 1912); margem direita do Paraná (solicitação de área em 1912); Laranjalzinho (Posto em 1913); Ivipiranga (aldeamento em 1913); córrego Água do Coqueiro Grande (local de festa em 1913); Orelha de Onça (aldeamento em 1913); Verde (aldeamento em 1913); ribeirão Santa Bárbara (aldeamento em 1924); Porto XV (aldeamento em 1924); córrego Sant'Ana (aldeamento em 1942); Fazenda Água Limpa (aldeamento em 1948); Fazenda Boa Esperança (aldeamento em 1948 e expulsão em 1953); Samambaia (reserva em 1952); Fazenda Herval (achados arqueológicos em 1954); Fazenda Primavera (aldeamento em 1958) e tantos outros lugares, onde em volta do cocho cheio de kauim, circulava somente a felicidade (Xehitâ-ha).

12 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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[1] - Lugar onde nascemos, no idioma Ofaié.

[2] - Texto escrito em 11 de outubro de 2002 pelo Especialista em História do Brasil (UFMS-Três Lagoas) e então Mestrando em História (UFMS-Dourados) apresentado inicialmente à UCDB-Campo Grande-MS para a preciação do NEPPI.

[3] -A área desse distrito atualmente integra os antigos domínios da Fazenda Boa Esperança, cujos proprietários ainda hoje demandam judicialmente contra os Ofaié que reivindicam parte de seu território.

[4] --No Mapa organizado por Cândido RONDON, está escrito: "Aroeira dos Ofaié"; no mapa de Curt NIMUENDAJÚ o lugaré chamado de "Aroeira Ofaié".

[5] - A desativação da Posto de Ivinheima e a penetração colonizadora que invade esta região de forma imperiosa, não devem ter deixado muita escolha aos Ofaié, senão a de juntar-se a seus antigos patrícios residentes mais ao norte, acima da linha do rio Pardo.

[6] - Registro Administrativo de Nascimento de Índio fornecido pela FUNAI. 9ª Delegacia Regional. Posto Indígena de Bodoquena., Fls 115, Livro 5, nº 366 fornecido à índia Ofaié Eugênia da Silva, em 05.08.80.

[7] - Transcrição nº 13.790, Livro nº 2, Fls. 01, do Cartório do 1º Ofício.

[8] - 8- Ofício nº 289, de 03-11-53 e Ofício nº 81, de 01-04-54.


Autor: Carlito Dutra


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