MEMÓRIAS DE UM VELHO JORNALISTA



MEMÓRIAS DE UM VELHO JORNALISTA

 

São 05 horas da manhã. Lá está o velho jornalista em sua condução para o batente. Ao largo do trajeto, da janela do ônibus o simpático senhor capta a paisagem de concreto, lembrando que alguns anos atrás, ou melhor, muitos anos atrás, em um dos pontos que observa, havia um barzinho que freqüentava nos bons tempos de boemia. Funcionava ali seu “escritório”. Notícias fresquinhas chegavam toda hora e quantos furos lhe haviam presenteado os bem informados freqüentadores do culto botequim. Claro que antes de passar a nota para o jornal, verificava a veracidade da informação, que quase sempre conferia com o relato, à exceção dos exageros – devidamente podados - ,  natural no repasse de informações. O mesmo fato é contado de forma diferente, de acordo com a ótica do observador, obtempera o experiente jornalista. Mas, o importante eram as notícias, e estas existiam e lhe chegavam com fartura, cabendo a ele, jornalista que era, e ainda é, separar as que realmente tinham importância, merecendo destaque as que tratavam de política. Certo que hoje, e sempre, a política terá local de destaque na imprensa, pois dela dependem as nossas vidas, mas é que antes as notícias sobre política eram quase absolutas, dividindo espaço, em regra, só com o futebol, nos períodos das copas mundiais, conforme recorda o velho intelectual. Bom esclarecer que o termo “política” é aqui tratado na acepção mais ampla que se possa imaginar, incluindo ditadura, perseguições, coronelismo, currais eleitorais, eleições fraudadas, exílio, etc.

 

Ainda perdido em lembranças, o velho jornalista mantém o olhar fixo para o arranha-céu, mas enxerga apenas o seu antigo “escritório” e onde há vidraças e átrio majestoso, o boêmio intelectual vê com indefectível nitidez uma harmônica decoração de robustas mesas redondas, acompanhadas de pesadas cadeiras de madeira, dividindo a cena com um tosco balcão de cedro, que parece proteger a frágil prateleira, enfeitada com red escocês, rum e vodka russa. Mágico show room à espera do toque final: Os fregueses, time do qual, com orgulho, o nobre jornalista era titular absoluto. Após o expediente na redação, seu ponto no “escritório” era quase obrigatório. De segunda a quarta, muitas vezes só um alô para a turma, mas a partir da quinta... Sim, a partir da quintas-feiras até o sábado o  bicho pegava e era o período mais produtivo. Afinal, ali estavam colegas jornalistas, universitários, assessores de políticos e os próprios políticos, ou seja, notícias frescas, de primeira-mão, muitas delas trazidas pelos próprios atores da notícia. Problema era quem assinaria a notícia primeiro, quando presente mais de um jornalista.  Rivalidade boba, é verdade; aliás, só a mantinham a título de brincadeira. Ademais, tinha notícia para todos.

 

Após breve piscar de olhos, nosso herói parece acordar do sonho de alguns minutos, que lhe pareceu uma eternidade. Já não mais ouve o barulho das conversas nas mesas vizinhas, nem o som do violão ao fundo, nem vê o balcão, não vê mais nada, a não ser o moderno arranha-céu e seu átrio majestoso e a dura realidade de chegar à redação sem  notícia. Não que esta deixou de existir, pensa ele; ao contrário, existe em volume incomparavelmente superior a outrora; sabe o bom velho, por outro lado, que diretamente proporcional ao aumento de notícias, cresce também a velocidade das informações aos centros de jornalismo, com o precioso auxílio da internet. Qualquer um, agora, é “jornalista”. Cada vez mais vemos a figura do jornalista amador. É o cara que está no local certo, na hora certa e com um celular de última geração à mão, ou até mesmo com note book. Esse do note book, não raras vezes, também é amador, mas já se acha profissional. Está virando moda.

 

O velho jornalista, contudo, tem os pés no chão. Nada de saudosismo. Estamos em nova era, reflete, e o jornalismo precisa acompanhar a velocidade do mundo moderno, com suas guerras, globalização, novos vírus, violência urbana, corrupção institucionalizada e outras mazelas, além de algumas coisas positivas, as quais, no momento, não consegue lembrar, só ressalvando ele que jornalismo é coisa séria e mesmo o aumento das notícias e informações em progressão geométrica não justificam a banalização desse nobre mister profissional.

 

 Em meio às divagações, de súbito, lhe vem um sorriso, quase imperceptível, mas um sorriso e com ele a graça e o auto-reconhecimento do dever cumprido, bem como a certeza de sua contribuição para a informação séria, digna e também corajosa, pois quantas vezes não denunciou, em seus artigos, injustiças e abusos dos poderosos, o que lhe custou alguns desempregos  e ameaças.

 

 O sorriso se desfaz, aos poucos, mas seu semblante ainda é de felicidade. Olhos fechados, só aparentemente, pois volta a ver com nitidez o velho botequim, as mesas robustas e arredondadas, as pesadas cadeiras de madeira, o balcão tosco de cedro e a frágil prateleira, que guarda com cuidado o precioso red escocês, o rum e a vodka russa. Fecha ainda mais os olhos e quase não acredita no que vê: na mesma mesa de sempre, bem perto do balcão, lá está ele, rodeado de amigos, violão ao fundo e o precioso escocês à mão. Ah, e ainda ouve as notícias que lhe chegam fresquinhas, mas a essas não dá mais muita importância. Final do mês sai sua aposentadoria.


Autor: sander dantas cavalcante


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