CARLA



203 - CARLA 

De Romano Dazzi

 

Conheci Carla em casa de amigos, numa festa de aniversário, nem me lembro de quem. Teria ela, naquela ocasião, uns 17 anos – aninhos, dizia-se então..

Olhar manso, traços delicados e suaves,  cabelos esvoaçantes de um tom de cobre, que pareciam tingidos; e, pensando bem, talvez fossem..

Alta, longos braços finos, com uma expressão tranqüila, que passava a impressão de estar realizada, em paz com a vida  Lembro-me que estranhei isso, porque nessa idade, as meninas são inquietas e inseguras. 

-" Quero conhecer tudo da vida” – dizia-me ela numa rápida conversa, na porta do jardim – “mas ao mesmo tempo alimento temores e incertezas a meu respeito“.

- Do que tem medo? A vida é toda sua, basta vive-la! “

“ Aí é que você se engana, tio” – dizia ela sorrindo – tenho nas mãos duas grandes incógnitas que mal comecei a conhecer    o mundo e eu mesma – e sei que não tenho ainda  a capacidade de resolver a equação. “

-“ Bem, não se incomode tanto assim” - argumentava eu – “pelo que sei, muitos, entre nós, passam a vida inteira correndo atrás de uma solução que não conseguem. É uma das brigas mais difíceis da vida, porque diante de um inimigo conhecido, você usa táticas que conhece, para se defender ou atacá-lo. Mas confrontada com você mesma, cabe-lhe procurar a paz, um ajuste instável entre sua alma e seu corpo, entre seu coração e o mundo exterior. .”

Chamaram-nos para cantar os parabéns, e a conversa acabou aí. 

 

A família, religiosa, respeitada e bem considerada no bairro,   mantinha Carla sob um controle definido como  “persuasão amigável”: aquela dependência que amarra de maneira  bem firme, mas sem deixar  transparecer as rédeas, ocultas sob sorrisos e carinhos.

Não sei se já lhes aconteceu de observar uma pessoa atrelada à família e ao seu meio. Ocupada o dia inteiro, sobrecarregada de obrigações e deveres, sem tempo  para se analisar, se encontrar, se descobrir.

Amigas e colegas são previamente avaliadas pelos pais e rapidamente descartadas, sob um pretexto qualquer, se não se enquadrarem nos parâmetros.  

Nada interfere na educação, no ritmo imposto pela família. É uma proteção forçada, um cabresto de amor – mas que nem por isso deixa de ser um cabresto.

E a garota acaba  sentindo-se bem,  protegida, amada e mimada, numa improvável síndrome de Estocolmo.

A família providencia e orienta em tudo: já estuda há tempo piano, balé, boas maneiras; saindo do colegial, vai entrar na faculdade de administração e iniciará, completados os dezoito,  um noivado com Jorge,  rapaz, honesto, sério, que sustenta a mãe viúva, freqüentador da congregação e do coral 

A mãe encaminha a união  de maneira natural,  sem fervuras – em banho-maria, digamos.   

 

Mas o Destino cria situações novas a cada instante. Seus malabarismos possuem uma fantasia e uma criatividade insuspeitas.

Ele colocou um corpo estranho neste precioso mecanismo, que deveria funcionar sem contratempos, e os projetos faliram.

 

Vi Carla, pela segunda vez, cinco anos depois; cruzamos por mero acaso, na cidade e foi ela que me reconheceu. Virei ao ouvi-la chamar  – “Tio, tio!” - 

Sou péssimo para lembrar uma fisionomia e tive que escarafunchar na memória.

Ela ajudou: -“ Sou a Carla, filha do seu Anselmo e de dona Carolina, lembra-se ?

Você estava numa festa de aniversário......”

A lembrança daquela menina-moça e a imediata comparação com a mulher que estava na minha frente surpreenderam-me e fiquei sem palavras. Devo ter parecido um idiota; mais idiota do que de costume. Mas ela não notou, ou fez que não notara.  Estava contente de me ver. E eu de vê-la.  Nunca pensei que se lembraria de mim.

Sentamos numa lanchonete e o papo correu solto.

- “Como você está diferente, Carla!  - arrisquei

-“ Diferente como? Melhor, muito melhor, ou pior, muito pior? Diga, Tio!”

- “Diferente, é só! Conheci uma bonita menininha,  encontro uma linda mulher ; é um choque, reconheça; para alguém que tem três vezes a sua idade, ser chamado na rua, com tanto carinho, é uma emoção...”

- “ Não se faça de difícil, tio! Lembro-me muito bem de nossa conversa no aniversário

   da tia Eulália. Coitadinha, morreu dois meses depois... “

- “Este também é um choque, Carla; não sabia, ninguém me avisou...”

- “Ela não quis que avisássemos; dizia que se as pessoas não soubessem, ela ficaria viva ainda por algum tempo, na lembrança deles....”

- “ E tinha razão, imagino; na minha memória, ela estava bem viva, até hoje...”

Eu, francamente,  não me lembrava daquela conversa; em festas eu fico tonto; encosto numa cadeira com um copo de guaraná na mão  e deixo o tempo passar; até poder voltar para casa, sem deixar ninguém ofendido.

- “ Mas me conta tudo, Carla; seus pais, a escola,  o namorado, a congregação...”

Uma nuvem passou nos seus olhos; o rosto crispou-se, a boca plasmou-se, de um jeito quase imperceptível, numa curiosa expressão de desgosto,; duas rugas leves, que antes não estavam lá,  franziram-lhe a testa. De repente, estava dez anos mais velha; achei que até os ombros estavam agora carregando um peso, que um minuto antes não existia.  Mas talvez esta fosse apenas uma impressão.

Ficou quieta, enquanto a observava, e depois, sem aviso, desabou num choro que diria profundo, se coubesse; não era desesperado, como diante de uma desgraça repentina; nem resignado, como ao perdermos uma oportunidade única  nem revoltado, como quando não podemos reagir a uma ofensa. 

Era – eu fantasiei – uma tímida chuva de outono, de lágrimas quentes e leves, retidas quem sabe há quanto tempo naquele caminho secreto que une diretamente o coração aos olhos.

Senti, mais do que vi, que aquela moça estava desesperada; ver um rosto conhecido tinha-a transportado a um passado próximo, e todavia tão distante, tão perdido, que seria impossível revive-lo

Ela me contou de seus sonhos partidos; sonhos que sua mãe tinha acalentado para ela,  mas que nunca lhe haviam pertencido. Ninguém  pode sonhar os sonhos dos outros.

Num momento crucial de sua vida, ela se sentira presa, como um passarinho engaiolado; ao perceber que por descuido, haviam deixado a portinhola aberta, ela voara, iludida, ébria de liberdade, ansiosa para sair daquelas páginas, nas quais alguém já tinha escrito toda a sua vida; uma vida que ela nem tinha começado a viver.

O pássaro de bosque aprende desde o nascimento a sobreviver, a se proteger do frio, do sol e da chuva; dos caçadores, dos moleques, dos seus mil inimigos naturais.

Mas um pássaro de gaiola não conhece nada e imagina que todos sejam amigos.

Assim é abatido na primeira vez em que ensaia seu solo.

Carla estava prostrada, vencida; ouvira uma canção de amor e correra atrás da ilusão.  

 Isto acontecera três anos antes.

Ela não tivera a  coragem de voltar, pois sabia o inferno que lhe seria reservado. 

Os fanáticos, os fundamentalistas, matam por amor.

Nutrem tanto ódio pelo pecado, pelo erro, que não hesitam em ferir, em excomungar, em banir quem quer que seja. Até uma filha, uma esposa, um marido. 

Eu sentia toda a crueza daquela situação; mas ela, paradoxalmente, estava aliviada; depois de chorar; tinha voltado ao equilíbrio.

Perguntei-lhe se precisava de alguma coisa – eu pensei em oferecer um suporte moral, ela entendeu que oferecia dinheiro – e ficou quase ofendida. 

Tinha um bom trabalho, uma empregadinha que cuidava do seu bebê. 

Continuara a estudar e estava quase se formando: advogada, não administradora. Nada de casamento, nada de conexões definitivas.

Principalmente, nada de pai e mãe, de congregação, de coral; por enquanto. 

O passarinho não queria mais saber de gaiolas, de amarrações, de nenhum tipo.

O feitiço, mesmo bem lançado, tinha virado contra o feiticeiro. 

Despedi-me dela sem saber o que dizer, o que fazer.

Ela estava livre,  independente, equilibrada.  Realizada? Não sei.

Certamente, não era mais a alegre, despreocupada garota de cinco anos antes. Estava ainda procurando seu lugar no mundo; mas era agora uma mulher decidida e preparada;  e encontraria logo, com certeza, um novo caminho.

 

 

Outros cinco anos se passaram.

Eu estava dando expediente na segunda vara da infância, no foro central.

De repente tive a sensação de alguém me olhando.

Virei e – ei-la, Carla, em todo o esplendor dos seus 27 anos, séria, compenetrada, satisfeita com ela mesma ; inteira, realizada.

Não precisou me chamar, eu a teria reconhecida entre mil,.  

“Carla, quanto prazer! Como você está? Quanto tempo! Notícias dos seus? E seu estudo? Seu trabalho?  Sua menina? “

“Oh, quantas perguntas juntas! Vamos por partes: primeiro, conte-me de você, Tio.

A saúde vai bem, já vi, o trabalho também. Novidades? Nenhuma? Nada,  nada de novo? Tudo igual? Bom. Estou contente. E muito satisfeita de vê-lo.   A gente deveria se encontrar mais, não acha? Freqüentamos o mesmo prédio,...”

“Ah, bem, Doutora, acho que você deu alguns passos bem importantes na sua vida, na sua carreira, não é?”

“ Sim – e não: acabei a faculdade, abri um escritório de advocacia, junto com a babá da minha menina, lembra-se?...”

“Não a conheci, mas você me falou dela...”

“ Foram tempos duros, aqueles; mas tudo passou, tudo entrou nos eixos. É só ter fé, que as coisas se encaixam.  A menina já está no fim do primário, já estuda bale  e a babá estará se formando daqui a dois anos.”

“Advogada, também? Vai ser uma inflação....”

“É um escritório pequeno, de pobres,; cuidamos de famílias que parecem estar bem,  mas não estão. Você sabe ao que me refiro, não é?

“Perfeitamente.”

“Bom, não tem muitas outras novidades. Minha família está bem – ao menos, acredito.

Minha mãe não quis conhecer a neta. Diz que é filha do pecado....”

Li nos olhos dela uma grande mágoa.

São sentimentos que não conseguimos afastar nunca...

“Mas o resto corre muito bem.  Sabe que, sem um marido a tiracolo,  para atrapalhar, a vida da mulher vai de vento em popa. Marido é atraso de vida, colega!.....”

Era de novo uma garota alegre, despreocupada. Um degrau acima, dona de seu nariz.

“Parabéns, por tudo isso, Carla!” disse eu, com sinceridade

“Tudo o que?” perguntou com a mesma franqueza. “O que tenho, não apareceu do nada; eu tive a criança, estou criando-a sozinha, arrumando minha vida, trabalhando e estudando, ganhando meu futuro e rumando sempre no rumo norte, o rumo da boa estrela, sem desvios!”

Não me restava nada a dizer.  Fiquei feliz por ela.

Adeus, Carla, um grande exemplo para as lamurientas, que não conseguem abrir sozinhas o próprio caminho.  

 


Autor: Romano Dazzi


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