O meu primeiro pileque



059 - O MEU PRIMEIRO PILEQUE

de Romano Dazzi

 

Vêneto, Itália, outubro de 1944

 

Fazia um frio de cão. Talvez fosse porque comíamos pouco e mal.

Tudo por causa da guerra.

O nosso grupo, de oito estudantes secundários, com dezesseis anos, tinha sido recrutado pela Wermacht , para trabalho “voluntário”

Estavam construindo, com toda a pressa, uma linha de defesa, porque a guerra, estacionada provisoriamente ao sul do rio Po, estava chegando lentamente  também na minha terra.

Devíamos transportar montanha acima, por um aclive estreito e perigoso, umas padiolas primitivas, com massa de concreto, que seria usado nas fortificações. Tinha que ser no braço mesmo, pois não havia como usar qualquer outro meio.

Regularmente, chegando na metade do caminho, deixávamos escorregar uma parte da massa no barranco, atrasando a obra...

Mas mesmo assim, era um diabo de um trabalho ruim.

Recebíamos todo dia um tijolo, que chamavam de “pão”, produzido um ano antes por padarias polonesas, conservado com salitre. Era ruim, a pior coisa que tínhamos comido, mas só passavam isso; para o resto, precisávamos nos ajeitar, inventar um jeito de comer algo.

Todos os dias, sem prévio aviso, caia um dilúvio, uma torrente de água que não acabava mais.

Passávamos o dia encharcados da cabeça aos pés.

Por sorte, havíamos encontrado uma casa, na verdade meio casa e meio estábulo, de gente boa, que nos deixava dormir no palheiro, perto do calor das vacas.

Gostávamos de ficar lá, porque na família havia duas bonitas garotas, sempre alegres e risonhas.

Naqueles tempos podia até vir-nos à cabeça alguma idéia estranha, mas tínhamos os pés no chão. Todos tratavam-se com muito respeito e não nos permitíamos nenhuma liberdade. Éramos amigos, colegas, necessitados de alguma distração, apenas.

A noite, falávamos, brincávamos, ríamos um pouco, antes de afundarmos no meio da palha, enrolados num cobertor, mortos de cansaço, num sono pesado e reparador.

Fiquei resfriado; o resfriado virou gripe; febre, tosse e uma ameaça de pneumonia.

Fugi para casa, a uns dez quilômetros dali, e por sorte sarei em poucos dias.

Mas minhas poucas roupas e principalmente o único cobertor que tinha, haviam ficado lá em cima, no palheiro. Tinha que recuperá-los, de qualquer maneira, mas não poderia passar pela estrada principal: nessa altura, eu era um desertor: a querida  Feldgendarmerie já tinha ido me procurar.

 

Então, lá fui eu, correndo e pulando pelas trilhas através dos bosques, atento e cuidadoso como um ladrão de galinhas.

Cheguei finalmente ao estábulo, cansado, língua de fora, mas vivo.

Daí a pouco, chegavam os amigos, as garotas, os pais delas; foi uma festa.

Mas logo escureceu.

Na montanha, com as chuvas de outono, às quatro da tarde, já é noite

E a  chuva não arrefecia.

Tive que ficar com eles.

Tentaria voltar no dia seguinte, pelo mesmo caminho.

E de repente uma batida forte na porta. Oh, Deus, os alemães! A patrulha da noite!

Fiquei parado, terrorizado, confuso.

Dois dos amigos me levantaram, abriram a porta do porão e me jogaram literalmente pela escada abaixo.

Não havia luz, não havia espaço, não havia ar.

Havia, isto sim, quatro tinas de vinho novo, que fermentava, fazendo bolhas e sons surdos de fervura.

No ar, um perfume indefinido, ao mesmo tempo doce e picante que me entrava nas narinas e na cabeça, e parecia estar me abraçando e beijando.

Fiquei  escondido, encaixado entre duas tinas,  com o coração a mil e com aquele perfume que me invadia corpo e alma.

Não era eu que bebia o vinho; era ele que me bebia.

A patrulha ficou na casa um par de horas e eu  escutava, assustado, meus amigos e as meninas conversando com os soldados, tentando desviar a atenção do sargento.

Um pouco por vez, o medo passou.

Comecei a sentir-me seguro, tranqüilo, como se não existisse mais a guerra e os alemães não passassem de turistas amigos; como se o frio, a fome e todas as maldições que aquele ano nos trouxera, tivessem desaparecido, por milagre, de um  momento a outro .

Naquele instante senti-me tão bem como nunca na vida; queria subir aquela escada e cumprimentar e abraçar todo o mundo e, quem sabe, dar um beijo nas meninas e no sargento  também.

Foram os minutos mais bonitos daquele longo período negro da guerra.

Finalmente a patrulha foi embora,

Quando os amigos me desentalaram de lá – porque sozinho nunca teria conseguido – eu estava total e inapelavelmente bêbedo; bêbedo como um gambá e feliz da vida.

E não tinha experimentado uma gota sequer, daquele magnífico vinho.   

 

 


Autor: Romano Dazzi


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