Uma fita de seda amarela



 

 

197 – UMA FITA DE SEDA AMARELA

de Romano Dazzi

 

Lembro-me bem: era o dia 27 de agosto de 2006.

Seriam talvez umas sete da noite; fazia um tempo horrível; uma chuvinha leve, fria, persistente, espantava os poucos transeuntes.

 Apressei o passo, imaginando o calor que me agasalharia ao chegar no apartamento. 

Examinava os corriqueiros fatos do dia; um cartório não é ambiente agitado.

As pessoas sussurram, mais  que falar,  entregam documentos para providências normais e saem em silêncio  – para voltar uma ou duas semanas depois.

Até o tempo é sossegado, tem outra dimensão; segundos que demoram minutos, minutos que demorar horas; o dia arrasta-se, a hora de fechar não chega nunca.

Algo tinha saído da rotina: uma senhora de meia idade, de modos humildes, emanando uma beleza antiga,  uma fragilidade encantadora.

Talvez você não concorde; mas no meu entender, as pessoas traem, no modo de ser, no  olhar, nos gestos, uma grande parte do seu passado, da sua história; todos nós mostramos muito mais quem fomos, do que quem somos.  

Carregava um calhamaço de papéis, amarrados com uma larga fita de seda amarela.  

Quando a mulher apareceu, pus-me a fantasiar sobre sua origem, sua vida triste.

 Imaginei-a filha amada, casada cedo, abandonando os estudos e dedicada com fervor à família – dois, talvez três filhos; enviuvara cedo; incapaz de segurar as rédeas do lar, vira-o desmoronar, os filhos saindo, cada qual para um canto.

Sozinha, estaria ganhando apenas alguns trocados, cuidando das crianças dos outros. 

Lia-se o cansaço no corpo delgado, o desencanto no rosto , a tristeza no olhar; acima de tudo,  a solidão, pesando como um fardo insuportável nos ombros já curvos.     

Mas isso tudo eu apenas imaginei, em um relance, com minha fantasia irrequieta.

Aproximou-se e me entregou o pacote de papéis.

Normalmente não o receberia; mas algo  me levou a estender o braço e aceitá-lo.

- “Senhor Daniel” – ela sussurrou –  “o meu marido, o Renato, pediu-me  que lhe entregasse isso. Disse que o senhor saberia o que fazer...Obrigada, muito obrigada...”

Com duas palavras, ela invalidara toda a minha teoria. Fiquei decepcionado; que diabo, tanto trabalho para inventar-lhe uma vida e agora desmoronara tudo!  Afinal, não era viúva; não vivia de trocados, o marido a sustentava.

Não tive tempo de fazer perguntas. Antes que eu  percebesse, ela tinha sumido.  

Joguei o pacote na mesa, prometendo a mim mesmo que o examinaria no dia seguinte. E me esqueci do assunto.

Agora, empurrado pelo frio, pelo vento e pela vontade de chegar em casa, esgueirava-me rapidamente pela calçada escura, ladeada por paredes de sombras pretas.

De repente, uma dessas sombras se destacou – ou assim me pareceu – e assumiu uma figura humana Assustei-me, é claro, e pulei desajeitadamente para trás, quase perdendo o equilíbrio. Mas não era um assalto.

A pessoa que eu vislumbrava na escuridão, tornou-se familiar.

Certamente eu já a tinha visto, mas muito tempo antes.

Depois do susto, encontrei voz para perguntar quem era ele e o que queria.       

-“ Sou o Renato “-  respondeu a sombra – “seu antigo colega de escola. Lembra-se?” Ora, se lembrava: o meu competidor, concorrente, inimigo, nos esportes, no estudo, com as meninas; nunca me dera bem com ele; todo dia era uma briga, uma discussão, um braço-de-ferro.  E ele ganhava sempre.

Renato esperou um pouco, enquanto eu reconstruía meus pensamentos e ajustava minhas memórias. “Lembra-se, agora?” perguntou por fim.

Agora me lembrava dele  por inteiro e junto, voltou todo  o  meu ressentimento. 

Renato  era superior, mais inteligente, alegre, rápido, simpático. Que fazer? 

Eu resolvera mudar de vida, de cidade,  de País, em grande parte porque a sua presença me sufocava. Foi uma mudança profunda; em um país estranho, em uma cultura diferente, minha vaidade e meu orgulho desapareceram.

Se sou melhor, hoje, devo-o ao Renato, à atitude drástica  que ele me obrigou a tomar.  

Nunca tinha olhado meu passado deste ponto de vista.

Abri um sorriso, tentei estender a mão. Renato fez um gesto amistoso, como se quisesse retribuir, mas não consegui sentir o seu contato.

- “Vim pedir desculpas pelo que fui no passado, pelos problemas que lhe causei, pelo mal que lhe fiz; foi uma sucessão de erros e quero que você me perdoe....”

- “Mas não tem o que perdoar, Renato; éramos meninos, garotos, com sangue quente e vontade de brigar, de ganhar, de passar por cima dos outros...”.

- “ Eu era assim, mas você não. Você foi sempre meu saco de pancadas. Só percebi isto muito mais tarde e  não sabia como pôr remédio.”

- “ Bem, agora estamos reconciliados “ – atalhei – “estou com frio e com certeza  você também; minha casa fica perto daqui. Não quer vir comigo?”

Ele fez que não, com a cabeça, rapidamente., mas acrescentou: - “Maria, minha esposa, lhe entregou um  pacote de papéis. Olhe-os com cuidado, por favor. E providencie o que for preciso. Eu lhe agradeço, de todo o coração. “

Não me deixou tempo para responder; nem mesmo para pensar.

Tal como a esposa dele, desapareceu. Pareceu-me que se desfizera no ar. 

Senti um tremor, um calafrio repentino. Não era só de frio.

Apressei novamente o passo, em cinco minutos estava em casa, deixei-me cair na poltrona da sala, joguei a cabeça para trás;  todo o meu passado retornou num instante.  O “replay”  foi bom, compensador. Percebi que havia realmente perdoado o Renato por todas as suas maldades e adormeci tranqüilo.

 

Na manhã seguinte, estava ansioso por abrir o pacote de fita amarela.

Continha os documentos de cessão de uma grande propriedade numa cidade próxima. Nunca imaginei que o Renato fosse tão rico. Os papeis estavam assinados, com  firma reconhecida,  selos, carimbos; enfim uma documentação completamente regular. Os beneficiários eram os três filhos do casal; em um documento separado, eu era nomeado executor testamentário.  

Passei no endereço que constava nos documentos, e fiquei sem palavras. Era uma construção antiga, em completa ruína; certamente ninguém havia morado ali, nos últimos vinte anos.  Os filhos, descobri depois, estavam abrigados na casa  de uma irmã de Maria,  próximo do Cartório. Mas ninguém sabia nada a respeito da propriedade, ninguém morava nela.  

- Morreram os dois – me disseram os vizinhos. Estão enterrados no cemitério do bairro, aqui perto.

- Justo em tempo  - comentei comigo mesmo.

Providenciei toda a tramitação do processo. .

Tudo correu bem, sem aquelas complicações comuns em casos desses.

As crianças tomaram posse da fazenda e tratamos de vendê-la logo, por um bom preço.  Como os papeis determinavam, recebi  uma generosa porcentagem,  que consertou minhas combalidas finanças.

Movido por um misto de sentimentos contraditórios,  fui ao cemitério.

Um tumulo simples marcava a última morada  de Renato e Maria.

Um detalhe me intrigou, de imediato: havia uma fita de seda amarela, dançando ao vento de abril, presa em uma fresta da lápide.

Mas outro detalhe,  bem mais grave, me impressionou e me espanta até hoje:

A data da morte de ambos :  27 de agosto de 2005.

Exatamente um ano antes de sua aparição:

Foi tudo apenas uma ilusão?    

      

 


Autor: Romano Dazzi


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