A fábrica de bonecas



 

A FÁBRICA DE BONECAS

de Romano Dazzi

 

 

Era a primeira vez que eu entrava na fábrica de bonecas do meu tio.  O ambiente era de grande confusão, de completa desordem.

Meu tio estava sentado numa cadeira incômoda de palha,  diante de sua antiga escrivaninha,  relíquia de tempos melhores.

Estava inclinado para a frente, com os cotovelos apoiados na mesa,  onde se acumulavam centenas de papéis, anotações, lembretes. 

Mantinha as mãos abertas, encostadas nas bochechas avermelhadas e segurando o queixo vigoroso.  

Notei, uma vez mais, como o feitio de seu queixo mostrava toda a força de vontade de seu espírito inquieto e rebelde.

Corpulento e vermelhão, uma cabeça grande, mas proporcional ao corpanzil e bem apoiada sobre os largos ombros, tinha os cabelos imaculadamente brancos.

Ao falar com alguém,  apontava seus olhos azuis para além das pessoas, e parecia ter sempre um pensamento diferente, desligado da realidade que estava vivendo. Nunca entendi por que não encarava as pessoas. A coragem imposta pela vontade perde-se, anula-se diante da timidez instintiva. Talvez fosse isso.

- Estou me sentindo velho; velho e cansado – disse-me desconsolado naquela hora. Tenho sessenta anos, mas pesam-me como se fossem noventa. Estou lutando há tanto tempo, que nem me lembro mais quando comecei. E agora vejo que tudo foi e está sendo inútil. Não consigo pagar as contas ou mudar de ramo. Estou cada vez mais sozinho. Até os meus empregados estão se aposentando... Meus filhos  formam-se e seguem seus caminhos....e eu não tenho coragem de segurá-los.  

Ficou parado um pouquinho, acompanhando sem dúvida a dolorosa seqüência de  seus pensamentos.

Mas logo esqueceu o comentário, e perguntou sorrindo: - você não conhece a fábrica, não é? Nunca esteve aqui antes! Venha, venha que vou lhe mostrar tudo!...

A fábrica estava silenciosa e escura.

Pelos vidros das janelas (que com certeza nunca haviam sido limpos) entrava apenas uma claridade difusa e acinzentada.

Naquela hora tardia, todos já tinham saído; ele estava sozinho, mas não dava importância.  Tropeçando em todo tipo de bugiganga, peças,  caixas, rolos, foi abrindo caminho, alertando-me aqui e ali.

Finalmente, conseguiu chegar a um interruptor, e uma grande lâmpada acendeu-se lá no alto, junto das telhas. Fez-se um pouco de luz e comecei a distinguir mais claramente as formas das coisas.

Estávamos no estoque. Prateleiras carregadas, na mesma confusão do escritório, mostravam caixas de perucas loiras já prontas, rolos e mais rolos de fios coloridos, esperando para serem trançados .e penteados.

Na produção, umas cinqüenta bolas de madeira, presas nas mesas de trabalho, descansavam, enfileiradas ordenadamente; davam a idéia de outros tantos carecas, aguardando um tratamento capilar, em um improvável salão de beleza.

Adiante, mais mesas, carregadas de pequenos trapos de tecidos brilhantes, com cores espalhafatosas; ao lado de cada mesa, as máquinas de costura, umas Singer bem antigas, de pedal, com aquelas estruturas conhecidas, simples e esguias e o pedal de vai e vem.

Seguimos adiante, enquanto meu tio  acendia mais lâmpadas e explicava as diversas fases da produção. 

Aqui, num caldeirão enorme, misturavam os ingredientes da massa: gesso, argila, anilina, cola, tudo moído, repassado, peneirado por diversas vezes, com o maior cuidado, para não deixar engrossar e empelotar.

A massa quente era depois coada em primitivas formas de ferro, madeira ou papel maché, com cuidado para formar paredes fininhas, mas sem prejudicar a firmeza da peça. 

Algumas cabeças eram feitas em duas partes e depois coladas, outras em uma peça só, com um largo pescoço aberto, para se montar os olhos.

Longas prateleiras estendiam-se sob as lâmpadas de aquecimento, que aceleravam a secagem.

Arrepiei-me, ao ver a imponente massa de duzentas, trezentas cabeças, pálidas, carecas, olhando-me com aqueles furos enormes no lugar dos olhos, cada um com uma interrogação escondida.

“O que faz você aqui? O que quer de nós? Não mexa conosco. Deixe-nos assando, para estarmos prontas amanhã!.....”

Mais adiante, corpos, braços, pernas. A associação com o ser humano era natural, inevitável. Os braços gordinhos, com as mãozinhas abertas, as pernas com  pezinhos bem delicados, para colocar mais facilmente os sapatos, o tronco   arredondado, quase balofo. 

No salão seguinte, a pintura. O cheiro forte dos solventes fazia espirrar e lacrimejar.  O tom das peças era bem mais humano. Mas a sala estava separada em setores: peças brancas, mulatas, pretas. Como evitar a segregação, numa fábrica de bonecas? 

Depois, os olhos: centenas de pares de olhos, redondos, esbugalhados, assustadores; sempre ligados em pares por um arame, para evitar a montagem de bonecas estrábicas ou caolhas. 

Por fim, uma seção de vinil. As cabeças injetadas, elásticas, assumiam as expressões mais estranhas, ao serem apertadas desordenadamente. Estavam todas impiedosamente perfuradas, para receberem os implantes de cabelos loiros.

Uma fábrica de bonecas era, naquele tempo, feia como um hospital, desalmada como uma UTI, com os pacientes imóveis, aguardando quem sabe quais operações insanas e complicadas.

Mas logo, na manhã seguinte, ao recomeçar os trabalhos, a linha de montagem retomaria vida e movimento. E as meninas colocariam os olhos no lugar dos escuros buracos que me assustavam; vestiriam as bonecas com suas minúsculas roupinhas brilhantes; aplicariam as cabeleiras penteadas, pintariam  lábios, sobrancelhas, narinas, unhas, sombreando as faces, calçando seus pés e deixando-as com os graciosos braços estendidos, prontos para abraçar a sua dona, a sua nova amiga.

A visita à fábrica estava acabando; meu tio foi apagando as lâmpadas, fechando as portas, desligando as chaves das máquinas. Um turbilhão de pensamentos e de imagens, que hoje parecem tolos, agitava-me todo.

Não seria fácil, para a garota que eu era, esquecer aquele dia e aquelas sensações todas. E, de fato, ainda estão todas comigo.

Muito, muito tempo passou... Anos depois, a fábrica de bonecas de massa cedeu lugar a técnicas avançadas, a materiais modernos, a formas graciosas, afuniladas.

Hoje, as bonecas de massa não mais existem. Transformaram-se .

Deixaram de ser meninas, e se parecem cada vez mais com adolescentes, universitárias elegantes e sofisticadas,  armadas com mil  equipamentos high tech. 

As nossas crianças já nascem adultas, não querem mais brincar de ensinar coisas às suas bonecas, de contar-lhes histórias, de dar-lhes comida na boca, ou pô-las para dormir; todo um ritual, um faz-de-conta com o qual imitavam as mães.

Aliás, hoje elas não têm, realmente, como imitar as mães, que são  executivas agitadas,  empenhadas na árdua escalada para o  sucesso. 

Descobri aos poucos  por que meu Tio não conseguia sair de lá, deixar a fábrica, tentar algo de novo. Tinha sido enfeitiçado pelas bonecas,  ingênuas imitações de gente, que ele produzia diariamente, e que nunca o deixariam ir embora.

Eram parte da sua família, parte do seu ser. Eram a razão de sua vida.

As bonecas de massa ficaram apenas na mente, na memória dos mais antigos e se apagam aos poucos, como delicada lembrança, acompanhando  cada um que se vai.


Autor: Romano Dazzi


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