Um salto no tempo



UM SALTO NO TEMPO

 

A pancada na cabeça foi forte e o deixou instantaneamente desacordado.

 

Alguns segundos depois ( ou teriam sido horas?) pareceu-lhe emergir de uma nuvem de algodão.

Ouviu clara a voz da mamãe,  chamando-o.

-“Henrique!” – gritava ela – “pela última vez, venha almoçar! Se não vier já, não come mais!”... Há quanto tempo não ouvia este chamado familiar; estava matando saudades.

-“Já vou, já vou!” – lhe parecia responder. Mas as pernas eram pesadas, não lhe permitiam mover-se; e ele continuava parado onde estava.

Tinha apenas uma noção de como se encontrava, mas não fazia a mínima idéia de como tinha vindo parar aí.

Lembrou que sua bicicleta devia estar em algum canto e pensou em  recuperá-la, antes que ela sumisse, antes que o pai aparecesse.

A voz da mamãe foi-se afastando, abafada, enfraquecendo aquela sensação de premência, do urgentíssimo, do inadiável. Por fim, ficou o silêncio.

 

Passaram-se alguns segundos – (ou teriam sido horas?)  e de repente estava com  Luisa, sua namorada, ela inclinada sobre o seu rosto, os cachos loiros balançando. Chegou a tentar pega-los, afaga-los, mas as mãos não lhe obedeciam.

Alguém perguntava:

-“O que foi, Henrique? Sonhando como sempre? Vamos, vamos para a  escola; já é tarde, vamos correr!” ´

Era Luisa,  uma Luisa jovem, quase criança, mas esmaecida, amarelada, diria...como uma fotografia antiga....

Mais uma vez os músculos recusaram-se a  obedecer .

Luisa olhou-o com carinho, levantou-se e antes de sair andando; virou-se dando um aceno e dizendo:

- “espero você na escola!...espero você na escola! Venha logo!...”.

.A imagem foi se afastando, em câmera lenta, num perfeito “fade-out”.

 

Novamente alguns segundos – (ou teriam sido horas?) – e de repente a cena toda estava  ocupada  por uma figura imensa, desproporcionada.

Era o seu antigo professor de latim, que  sem preâmbulos, mandava-o traduzir uns conhecidos versos de Virgilio:  “Titire, tu patulae, recubans sub tegmine fagi....”.

– “Mas ele está morto! “– disse de si para si o Henrique – “eu fui ao enterro dele! Me lembro! Muitos anos atrás! –

Mas o professor, impaciente, avançava ameaçador:

- “A tradução, Henrique! Logo! Logo!” .

- O senhor está morto! - conseguiu pensar – não pode estar aqui me interrogando!  Tem alguma coisa bem errada nisto! Não vou responder! – mas eram só pensamentos. 

–Zero! – exclamou o professor – e prepare-se para a segunda época!  

Época! .....Época!..... Época!..... - ecoaram as paredes......

Henrique fez um esforço imenso para se mexer, para agitar os braços, para sair daquele estado que, pensava, era apenas um péssimo, um profundo  pesadelo. Não conseguiu se mexer.

Mais uma vez, sons e imagens sumindo ao fundo, numa nuvem de algodão branco .

 

Acordou entontecido, cansado, com a cabeça virando, diante de um longo corredor sem fim.

- Morri - pensou. – Morri mesmo, de verdade! Logo agora! Mas, por que logo agora?

Um sentimento de mágoa, como um surdo  ressentimento,  se apossou dele.

Logo agora que as coisas, depois de um longo período de problemas, começavam lentamente a se ajeitar; logo agora, que tinha conseguido pagar a hipoteca da casa; logo agora, que um modesto empreguinho tinha caído do céu e que os filhos tinham sido readmitidos na escola, com as mensalidades pagas!  Logo agora, que com o lento reequilibrar-se da situação financeira, até  os constantes atritos com  Carla,  sua esposa, tinham amainado e haviam ficado para trás, quase esquecidos.

Estranho, pensou, como o dinheiro, no fim, é o grande catalisador, do amor e do ódio; Não é ele que os cria,  mas, como o vento, pode apagá-los ou incendiá-los; é o destino que decide.  No fim, amor e ódio são apenas irmãos gêmeos, ambos mentirosos e impostores, e  reagem sempre, em tudo, de maneira idêntica.   

Voltou ao início: tudo estava melhorando; e justamente agora.......Não conseguia lembrar de nada. Algo terrível devia ter ocorrido, porque ele estava deitado (só agora percebeu) naquele longo corredor branco, sem nome, sem portas, sem fim.... Interessante – pensou;  imaginamos a Morte vestida de preto, e de preto tingimos tudo o que com a Morte de relaciona.

Mas, enquanto ela não vem, enquanto ela é apenas um perigo, uma ameaça, um ponto de interrogação, queremos que tudo seja branco; como em um rito propiciatório; como a afastar a Morte, obrigando-a a nos deixar  em paz, vivos, por mais algum tempo; algum grãozinho a mais  desta  poeira impalpável de que é feito o nosso tempo, diante da eternidade. 

Henrique lembrou que tinha entrevisto – sonhado talvez – algumas etapas de sua vida; e lembrou apavorado  que sua mãe e Luisa e o Professor já tinham morrido.

E mesmo assim, as suas imagens tinham sido tão vivas, tão perfeitas, que deixavam duvidas, derrubavam certezas.

Desta vez fez um esforço enorme, sobre humano. Todos os músculos retesados, braços e pernas estendidos, levantou de uma vez, vencendo a si mesmo.

- Mas que maluco! – gritou o médico de plantão. – Você está aqui há uma semana e continua dando trabalho a todas as equipes! Se não parar, nunca vai sarar dessa concussão ; foi grave, sabia ? Você podia ter morrido....

Tudo se encaixava. A pressa, o tombo, o rolar escada abaixo, a forte pancada na cabeça.  Uma semana (ou seriam alguns segundos?) a visita de pessoas que não mais existiam, o panorama  de sua vida, o ato de contrição diante do desconhecido.

Carla lhe sorriu, Alfredo e Alberto deram-lhe um beijo desajeitado e ele agradeceu por não estar morto.

Naquele corredor branco a Morte, ao menos uma vez, ao menos por um dia,  havia perdido o jogo.     

 

 

 


Autor: Romano Dazzi


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