MUITO PRAZER !



 

053 - MUITO PRAZER

de Romano Dazzi

 

- Muito prazer, meu nome é John – murmurou ele lentamente, separando bem as sílabas – sou inglês,- acrescentou, hesitante. Vôo pela primeira vez; estou achando tudo tão estranho...e sinceramente... estou um pouco assustado....

- “O prazer é meu, me chamo Paulo, sou brasileiro, voltando ao meu país em férias” - .respondeu desembaraçado o outro passageiro. “Não tenha receios. Desligue-se.   Voar é um prazer, uma alegria!  Faça uma boa viagem!”

“ – Você também! “ – concluiu o inglês.

 

Estavam no Airbus do vôo VG124,  pronto para  decolar de Heathrow, em Londres, para o Santos Dumont, no Rio de Janeiro.

Os 160 passageiros ainda estavam tentando acomodar suas bagagens nos vãos superiores, lutando bravamente para enfiar suas grandes malas em espaços pequenos.

 

A voz quase metálica da comissária se fez ouvir, dominando o burburinho, anunciando  a decolagem próxima e pedindo que os passageiros se sentassem e  afivelassem os cintos. 

Quando começou a descrever as medidas de segurança, a atenção  se desfez e ainda  antes de a moça  falar sobre a posição das portas,  o uso das máscaras e os assentos flutuadores,  o falatório recomeçou, mais alto que nunca.

Nos aviões mais modernos, esta parte é feita por uma gravação, que evita à comissária o vexame de ter que falar  por dez minutos sem receber a menor atenção.

 

Logo as luzes da cabine baixaram, as turbinas vibraram, fazendo sacudir tudo.

O avião rolou pesadamente pela pista. Tomou posição, acelerou, quase a desafiar o céu, mostrando toda a sua força; liberto dos freios, atirou-se para a frente, empurrando os passageiros para o fundo das suas poltronas.

O balanço e as sacudidas foram diminuindo; o monstro já estava no ar. 

As luzes da cabine e os batimentos cardíacos voltaram ao normal, enquanto as  comissárias começavam a servir refrigerantes e drinks. 

Tudo normal, tudo tranqüilo.

John pensava na sua avó, tão avessa ao progresso que só andava de charrete  porque o trem, dizia, é obra do demônio; tão temerosa das alturas, que ao vê-lo subindo no velho carvalho da casa, lhe gritava:-“ desça daí, seu moleque travesso! Vou mandar cortar essa árvore, antes que você quebre o pescoço!”

Se ela pudesse vê-lo agora, sentado naquele charuto de metal, equilibrado no ar,  lançado a mil quilômetros por hora,  e a dez quilômetros de altitude, certamente morreria de desgosto...

John nunca saíra da Inglaterra; assim como muitos ingleses, encontrava lá tudo o que queria, tudo o de que precisava. E o que não tinha, as colônias forneciam, a preços módicos, havia séculos.

- O que o leva ao Brasil, John? – perguntou amavel o Paulo, virando-se ligeiramente de lado na poltrona apertada e tentando não enfiar o cotovelo no drink do vizinho –  trabalho, ou diversão?

- Um pouco de cada – respondeu ele – uma reportagem sobre o carnaval vai pagar metade da minha despesa; a outra metade é por minha conta. Senti de repente uma curiosidade insistente – até incômoda – pelo seu País. Estranho, porque sempre me senti bem na Inglaterra e até agora não tinha nenhuma intenção de sair da minha toca.

- Mas você é um jornalista, então?

- Sim, mas, com jota minúsculo, em escala menor, diria; faço apenas reportagens sobre botânica;  flores, plantas, ervas medicinais,  congressos e reuniões nos quais se discutem as propriedades, milagres e perigos dos vegetais....

- Bem, eu sou engenheiro e não entendo nada disso aí; meu mundo é feito de desenhos e peças; pormenores de  carros, do parafuso  ao pára-choque....

- Ah, eu não trocaria meu trabalho pelo seu, Paulo... Vamos ficar como estamos...

 

O jantar foi servido logo em seguida; o cálice de vinho, o cansaço, o relaxamento  natural amorteceram os sentidos e quando as luzes se apagaram, eles já estavam cochilando.  O ruído monótono das turbinas  acompanhou-os até o amanhecer.

A voz do comissário nos alto falantes tirou todos do sono.

Janelinhas abriram.-se fazendo com que a luz já forte do sol atravessasse o avião de lado a lado.

O café da manhã foi servido rapidamente e as comissárias recolheram xícaras e bandejas. 

Como sempre, filas nos banheiros – sempre tem alguém que acorda mais cedo que você; depois, uma revisão do chão – toalhas, cobertores, fone de ouvido, copinhos plásticos – um amontoado exagerado de lixo,  por uma só noite...

O grande avião começou lentamente a descida; o mar brilhava, em alguns pontos, refletindo o sol em ângulos improváveis e tornando difícil  reconhecer o perfil da costa.  Os ouvidos incomodavam. Finalmente a água chegando cada vez mais perto, o barulho do trem de aterrissagem baixando, os flaps reduzindo a velocidade, o impacto dos pneus no chão, o rolar suave, interminável, na pista. 

- “Chegamos, viu? Tudo tranqüilo! Eu não disse que tudo iria bem? “ -  Paulo, experiente, já estava com todas as suas coisas prontas, o passaporte,  a declaração de entrada,  os cupons das malas.  

Mas a fila já se formara antes da autorização a soltar os cintos e levantar.  

Depois de dez horas de vôo, uma certa impaciência é desculpável.

Fila para sair, fila para apresentar os documentos, fila para  retirar as malas.     

Parece que o mundo é habitado por milhares de pessoas em fila. Como formigas.

Para fazer qualquer coisa, por necessidade, por obrigação, por divertimento.

Após muitas peripécias, custando a se explicar com seus limitados termos de português, John finalmente desabou na cama, na modesta pensão  que o agente em Londres lhe havia indicado.

Limpa, próxima do sambódromo, caríssima, pelo padrões de Londres, mas aconchegante e tranqüila, pelos padrões do Rio.  O que mais poderia pedir? 

Após uma ducha refrescante, descansou um pouco; mas estava ansioso, curioso, como criança em noite de Natal.

Foi só sair da pensão, que o ritual das filas recomeçou. fila para o Metrô, para o Corcovado, para o Pão de Açúcar, para o Horto botânico; para entrar, para sair, para subir, para descer, para comer, para fazer pipi.  

Uma coisa curiosa, observou: é um povo feito por mil raças e misturas e mesmo assim  é ordeiro, paciente e respeitador, como só os antigos londrinos sabiam ser.  

 

O sol, as cores vivas das roupas, das casas, dos parapentes no céu, o ar quente vindo da praia, o verde escuro da mata subindo pelas rochas atrás da estreita faixa entre a areia e a montanha, encheram os olhos e a alma de John .

Foi paixão à primeira vista; foi como se ele tivesse esperado por longo tempo o primeiro encontro com uma linda mulher e de repente a descobrisse mais bonita, mais sensual, mais atraente e envolvente do que  imaginara.  

Ficou caidinho pelo Rio.  E entrou no ritmo da cidade.

 

O carnaval já estava por todos os cantos. Grupos de pessoas se dirigiam à escolas de samba, alguns carregando tambores, cuícas, tamborins, bombos, outros levando fantasias douradas, máscaras risonhas, enfeites brilhantes.

Uma multidão alegre, como jamais se viria na velha e sisuda Inglaterra, onde o carnaval é apenas uma segunda feira enfadonha no pub – ou na tenebrosa Veneza, cujo carnaval é um desfile lento e melancólico de vaidosas e inexpressivas máscaras de porcelana.

John seguiu um grupo e de repente encontrou-se envolvido na multidão, dando as mãos a desconhecidos,  tentando pular como eles, traçando piruetas ridículas, mas alegres e libertadoras.

Entrara, sem querer, num templo, numa escola de samba; observando tudo com voracidade, fotografando mil detalhes que lhe serviriam para uma reportagem palpitante do que é a preparação  para o desfile.

Os tambores rufavam, o ritmo engrossava, as evoluções tornavam-se a cada instante mais ousadas e impressionantes. 

Filmou e foi filmado, fotografou e foi fotografado, sozinho, em companhia, dando risadas, fazendo caretas, pulando, sentado, deitado, em harmonia com o espírito de Carnaval.

Porque o Carnaval é bem isso, pensava: libertar-se  dos preconceitos, das convenções, dos receios e dos medos que enchem a vida da gente o ano todo. 

Mover o corpo, agitá-lo,  como se fosse um sinuoso  chicote de couro, livre e solto.

E em vez, sentia-se como um rígido pau de vassoura, acompanhado por mil espanadores saltitantes...

Oh, Deus! como desejou, naquele momento, que em suas veias corressem pelo menos  algumas gotas daquele sangue dos negros. O sangue que faz com que as pessoas vibrem, dancem, balancem, sacudam, flexionando e contorcendo todo o corpo, em resposta à batida de um tamborim: - tiricrím,  tiricrím,  tiricrím-crim-crim.... 

à chamada alegre do surdo:  - tucutúm, tucutúm, tucutúm-túm-túum!

e  à marcação do bombo: bom, bum; bom, bum; bombóm, bum; bombóm bum!...  todos grupos de um ou dois tons,  repetidos à exaustão, como se fossem o último som na face da terra, um apelo atávico e irresistível.

Talvez essa fosse a resposta: um chamado transmitido através dos séculos, desde quando aquela criatura primitiva, quase um macaco,  de pé no alto do morro, avisava ruidosamente a sua presença, atiçando a sua tribo,  deixando os inimigos inseguros e assustados .   

Quando afinal a festa diminuiu, a multidão desfazendo-se pouco a pouco em pequenos grupos, que se encaminhavam para a saída, John reencontrou-se sozinho, e percebeu que não era mais o mesmo.   

Nunca mais seria o mesmo.

Uma parte ancestral dele, vinda talvez daqueles antigos e corajosos celtas que dançavam em ridículas e curiosas coreografias entre as pedras de Stonehenge,  tinha acordado nele e não adormeceria mais. 

 

Seu artigo da manhã seguinte, ao chegar à redação do jornal em Londres, causou sensação. Os colegas não queriam acreditar; o fleumático britânico tinha vestido a pele de algum chefe tribal africano, usava um cocar na cabeça e  pulava fogueiras em plena Rio de Janeiro, empunhando uma longa lança, na qual tinha espetado o jantar:  salsichas assadas, condimentadas ao curry!  

 

Já era domingo, dia do desfile das escolas do primeiro grupo.

John foi averiguar como se entrava nas arquibancadas, o que poderia  levar com ele o que seria mais prudente deixar no hotel.  

Localizou o local onde ficaria durante o desfile, as comodidades oferecidas – água, sanduíches, um travesseirinho, uma capa de chuva, plástica, levíssima - e as dificuldades também, - a distância até o banheiro mais próximo, e as suas condições. 

É instintivo neles, os britânicos; organização, método,  sistemática e pontualidade. Se não fosse isso, seriam apenas gente comum, como nós.  Mas isso os torna especiais, diferentes, únicos.

O domingo prosseguia, com o calor abafado crescendo e no fundo, o ressoar cada vez mais próximo, mais marcado, do ritmo inconfundível do carnaval. 

Estava  quase chegando a hora do desfile; John estava na terceira fileira do setor cinco, numa posição bastante cômoda, alta, que lhe permitiria observar e fotografar tudo o que lhe passasse na frente. 

Ao fundo, no início da Marquês de Sapucaí,  barreiras fechavam a entrada de visitantes e curiosos.  As escolas são ciumentas de suas fantasias, de seus enredos, de seus destaques, de seus arrojados carros alegóricos.

Tudo deve ser preservado para a surpresa da avenida, para o “Oh!!!” admirado da multidão.

O ritmo foi aumentando, irrompendo furiosamente na avenida.

A comissão de frente, com vinte pesados senhores, em elegantes ternos   todos iguais, de paletó e gravata, anunciava a primeira escola. Ainda não tinha escurecido e a luz dos holofotes não conseguia dar às pessoas e aos objetos aquele brilho intenso que os distinguiria mais tarde. 

O abre alas avançava seguro; o mestre sala e a porta bandeira,  com meneios e passos elegantes,  apresentavam-se ao povo, que os incentivava com aplausos, cantando o refrão  da primeira escola, tão insuportável quanto os de todas as outras. Quando a bateria chegou, explodindo com duzentos tamborins em um batuque pesado, todos levantaram-se, entusiasmados, acompanhando as evoluções e as idas e vindas dos personagens.

Alas de gordas baianas, ostentando fantasias tradicionais, de saias largas e rodadas, seguiam caminho ondeando, sob o comando seguro dos mestres; grupos  de  malandros, aparentemente soltos e desordenados, de repente, a uma sinal que ninguém percebia, abriam a  mesma ordenada seqüência de passos ensaiados, como tantas peças de um grande tabuleiro, mostrando coreografias inesperadas.

Chegavam os carros alegóricos: trazendo interpretações e sonhos, uma realidade distorcida, vista de baixo, pelos olhos dos mais pobres, ansiosos por brilho, luz,  grandeza, entrevista numa visão da fantasia, apenas uma vez por ano .  

 

John ainda não podia acreditar nos seus olhos.  Por muito que tivesse visto na TV, no cinema, nas limitadas demonstrações de pequenos grupos, que durante o ano se apresentam pela  Europa, nunca poderia suspeitar a força,  o impulso, o choque profundo que o espetáculo trazia, ao vivo, fazendo tremer as arquibancadas enquanto o povo vibrava e se agitava, hipnotizado  pelo batuque contagiante.

 

O espetáculo não pára; continua durante longas horas; as escolas têm horários rigorosos; se atrasarem,  perdem pontos preciosos na classificação; mas ao mesmo tempo, querem aproveitar intensa e completamente, os minutos de que dispõem.para pôr em evidência a riqueza, a organização, a disciplina e o preparo de seus membros.

 

...............................

 

No meio da euforia geral, enquanto seus pés sapateavam, prontos para descer à avenida e desafiar os passistas, John sentiu algo pairar sobre ele. Era o olhar de uma garota, sentada bem ao seu lado, que agitava dois lenços e torcia animadamente pela escola.

 

John teve uma sensação estranha e vaga: foi como se  o batuque ensurdecedor diminuísse, recuasse, dando espaço para que a sua cabeça se ajustasse a outra realidade.

 

A garota ria, pulava sem parar,  com uma alegria esfuziante e espontânea. Via-se que gostava, que torcia, que acompanhava o pessoal da escola; deviam ser seus amigos, gente do seu bairro, da sua  vila.  Ou então, amigos desconhecidos, amigos de carnaval, quando todos são amigos, numa única festa de luzes e cores.

 

John perguntou-lhe o nome; ela não entendeu, ou não quis entender; não respondeu,  não falou nada, apenas continuou sorrindo, aquele sorriso cativante e delicioso que aparece nos lábios, no rosto,  nos olhos de uma pessoa feliz, em paz consigo mesma e com o mundo..  E seguiu animando seu pessoal, cantando a plenos pulmões aquele estúpido refrão ....     

 

 John apesar de continuar acompanhando o desfile e registrando a animação dos foliões,  sentiu-se  estranhamente atraído por aquela garota.  Notou seu vestidinho estampado de flores alegres, seus grandes brincos de argola combinando com o colar,  o cabelo moreno esvoaçante, quase despenteado, com ar de molecagem .  O rosto bem delineado, com traços regulares e harmoniosos.....

Tudo isso, na verdade, ele não observou naquele momento, apenas o registrou, para repassa-lo mais tarde, ao relembrar aquela noite memorável..

Notou a sua figura simpática e sentiu uma enorme, irresistível atração . 

- “Você fala inglês?” -  arriscou timidamente, esperando uma negativa ou uma interrogação.   

- “Sim,  falo: como é que você adivinhou ? É assim tão evidente? “-  respondeu ela com um impecável acento britânico e um cativante sorriso.

-  “ Eu sabia, eu sabia!”  exclamou John, feliz por não ter que soletrar o seu pobre português e poder usar uma língua que dominava.

- “Fazia tempo que o observava” disse a garota – “mas você não me notava. Estava tão interessado no desfile!....” –

A conversa dos dois continuou pela noite adentro, ambos  sendo obrigados quase a  gritar, em alguns momentos, por causa do barulho infernal que acompanhava o desfile. Mesmo assim, conseguiam se entender; e comentavam os lances mais interessantes das escolas que marchavam na avenida.

A moça era extremamente simpática e expansiva. John estava já caidinho, enquanto conversavam sobre Rio, São Paulo, Brasil, Trópicos, Europa, Inglaterra; ela estivera trabalhando em Londres por três anos, praticando a língua e preparando-se para seguir a carreira  no escritório de advocacia  do pai, em São Paulo.

Era solteira - e John exultou; ele também era - e a moça abriu mais ainda o seu sorriso.

John contou de sua vida, de seu trabalho, de suas poucas ambições, do chamado, se assim se pode dizer, que o tinha trazido ao Rio, naquela noite, na terceira fila do setor cinco da arquibancada, junto de alguém que  acabava de enfeitiçá-lo.

Seria uma jogada preparada pelo destino?  

John lembrou-se dos comentários dos amigos e das apreciações veladas dos folhetos de propaganda do Carnaval.

No Rio, diziam,  vale tudo.  O clima é quente, a bebida corre solta; tem milhares de moças bonitas à procura de companhia, a facilidade com que se estabelece uma  convivência informal, íntima, carinhosa é perigosa; o caráter das cariocas, efusivo, apaixonado, receptivo,  cativa e engana .....

Cuidado, turista – lhe diziam. Cuidado!!

As idéias rodopiavam na cabeça de John, como faziam os sambistas na avenida, enquanto estudava a garota. Ela não era vulgar, atirada ou agressiva na sua espontaneidade. Parecia até reservada e segura de si, apesar do clima de festa. Era tudo o que John sonhara – e só agora percebia.

Quase de manhã, John levantou-se para esticar as pernas. Ela também ficou de pé, alta, esguia.

Não precisou mais nada. Abraçaram-se num enlace profundo e se deram dois beijos carinhosos,  um em cada face.

– Espere por mim – sussurrou John.

Ela assentiu, sentou–se novamente.

John ainda olhou para trás enquanto se afastava para as toaletes. 

Uns minutos mais tarde, voltou  apressado. Ela não estava mais lá.  A cadeira estava vazia, a bolsa dela havia sumido, assim como os pequenos objetos, que ela tinha.  John sentou-se esperando que ela voltasse.

Mas uma voz dentro dele lhe dizia que não a veria mais. 

Esta sensação agigantou-se e ele não pôde mais suportar a luz, o barulho, o ritmo ensurdecedor do desfile. 

Meia hora depois estava de volta à pensão a pé, com a cabeça vazia, atarantado e silencioso.

Não sabia nada da moça; nome, endereço, telefone; nada.

Apenas,  que deveria estar morando em São Paulo, e estava de passagem pelo Rio, só para assistir ao desfile de carnaval. 

 

 

 Os sucessivos artigos do John foram decepcionantes, vazios. O jornal não gostou nada, os leitores também não. Só se salvou uma  curta crônica sobre o jardim botânico

em que a paixão do jornalista conseguiu superar a tristeza do apaixonado solitário.

 

 

John ficou doente de melancolia; passou ainda uma semana no Rio, arrastando-se para cumprir sua agenda e honrar o compromisso dos artigos diários. Era a própria imagem da quarta feira de cinzas, do tempo da reflexão e do arrependimento. .

No fim, pegou o avião de volta para Londres.

Não era  mais o mesmo.  Estava realmente doente.

 

 

O amigo Paulo, do Rio, publicou um pequeno anuncio num jornal do domingo, um mês depois.

Era um apelo triste, mas esperançoso, para uma desconhecida, vista apenas uma vez. Contava alguns detalhes, vivos na memória do John, como o vestidinho de algodão, os brincos, o colar, o cabelo rebelde e esvoaçante.  

 

Dezenas de moças, movidas por  todo  tipo de pretexto ou objetivo, mandaram cartas e fotos, jurando ser a tal moça da terceira fila  do setor cinco, no sábado, no domingo, na segunda, na terça.  Nenhuma era ela. Nenhuma podia ser ela.

 

 

John definhava. Os amigos assustados, arriscavam palpites:

- é um feitiço brasileiro, um poderoso filtro de amor -  dizia um – já li a respeito!

- que nada! – emendavam outros -  comeu algo que não lhe fez bem!   

- por mim, foi o calor do Rio – acrescentava outro.

- nunca pensei que um homem pudesse morrer de amor – finalizava outro -  mulheres,   ainda,  vá lá; são fracas e dependentes;  mas homem !!?......

Chegaram a pensar em organizar uma vaquinha, para manda-lo de volta, esperando que ele reencontrasse a moça.

- Mas como, quando? No carnaval do ano seguinte, na mesma fila , no mesmos setor?

Nunca se viu coisa tão estúpida....”

 

 

 

Por fim, chegou uma carta.

Vinha de Londres, fechada num envelope azul, com perfume de jasmim; 

 

 

 

Caro John,

Hesitei muito antes de lhe escrever.

Sei pouco de você e quase tudo é apenas o que você me contou naquela maravilhosa e barulhenta noite que passamos juntos.

Pareceu-me um homem bom, gentil, carinhoso: pareceu-me que estava se apaixonando por mim – assim como estava acontecendo comigo. 

Não quis que você imaginasse que eu era como tantas outras, uma moça descabeçada à procura de uma diversão de carnaval.

Assustei-me com o que poderia acontecer e resolvi fugir e não pensar mais em você . 

Passei dois meses infernais, pensando na bobagem que fiz.

Não sei se você está sentindo o que eu sinto e esta é a minha maior tristeza.

.

Vim para Londres para vê-lo ao menos mais uma vez.  

Você está bonito, mas triste, John.

Eu o observei pela janela do café Victoria, na frente do seu prédio.

Por favor, se não sente algo por mim, não me responda, não me procure. Entenderei.

Estou no Hotel  Grant’s, até amanhã. Adeus, amor.

 

A carta não estava assinada.

 – “ Porque esta garota estúpida faria uma coisa dessas?  

Novamente é como  procurar uma agulha no palheiro.

Mas ela tem razão; se eu não a quiser, não preciso saber seu nome; é melhor que não o saiba, como se nunca a tivesse encontrado. ....” -

Mas eu a amo, quero estar com ela, olhar nos seus olhos, passar as mãos nos seus cabelos, sentir seu perfume, falar com ela – sem ter que  gritar.

 

John tomou um táxi, e em dez minutos  estava em Kensington Road. 

Embarafustou pela porta do hotel, sem  a mínima hesitação,  tocou a campainha da recepção e exclamou, quase gritando: quero falar com uma moça que vem do Brasil, de cabelo moreno esvoaçante, grandes brincos de aro redondo e colar combinando, um vestidinho estampado de flores e um largo sorriso, confortador e  apaixonante.....

 

A moça que acabara de descrever levantou-se de uma poltrona no canto, avançou lentamente, e caiu nos seus braços......

 

Ao longe, por mera coincidência, um rádio tocava uma antiga versão desafinada de  “Aquarela do Brasil” .

 

  


Autor: Romano Dazzi


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