Os limites do mundo



186 - OS LIMITES DO MUNDO

 

Ela nada sabia de geografia.

Nascera num vale, numa pequena aldeia perdida nas montanhas, no centro da Europa

Mas ele nem sabia o que era Europa.

Crescera entre pequenas hortas bem cuidadas e prados ondulados, numa época em que lá ainda havia dessas coisas..

Durante metade do ano, quando o verão queimava a planta dos pés, raras vacas pastavam calmamente nos prados; na outra metade, quando o frio castigava o corpo e a mente,  ficavam agasalhadas no estábulo.

Este era o único lugar que ficava quente no inverno e todos se juntavam lá, em círculo, para contar e ouvir histórias.

As coisas que lá se contavam eram absurdas, inacreditáveis; mas davam uma coceira, uma vontade de conhecer, de ver, de experimentar  aquele mundo maravilhoso de lá fora ... mesmo que tudo fosse só de mentirinha, como ele suspeitava.

A professora deu-lhe alguns rudimentos, repassando-lhe o pouco que sabia e percebendo a sua curiosidade, repetia a recomendação de ficar onde tinha nascido, sem tentar sair de lá.

O mundo exterior – ela dizia - é cheio de perigos, de traições, de ratoeiras, prontas para agarrar os pobres, os ignorantes, os ingênuos.

 

Um dia, a modernidade chegou lá.

Grandes monstros barulhentos e mal cheirosos, cavalgados por homens fortes e suados, chegaram com estrondo e confusão, estendendo uma longa fita preta de asfalto.

Quando viraram atrás do morro levando com eles o ruído e a poeira, todos entenderam que uma idade tinha chegado ao fim  e outra estava começando. 

Se a nova seria melhor ou pior, ninguém poderia prever.

Mas que tudo mudaria, isto era certo.

Ele sentiu mais do que nunca aquele desejo profundo,  aquela voz que o chamava; tinha que sair, tinha que ir procurar, mesmo que não soubesse o quê.

 

Ele meteu na cabeça que deveria sair daí e ir até o fim do mundo. 

 

E como continuava sem saber nada  de geografia, decidiu ir reto, sempre na mesma direção

Para não errar, todos os dias, ao acordar, marcaria o ponto onde nascia o sol  – não sabia, então, que aquela direção era chamada “o leste” – e começaria a marchar para lá, como se fosse ao encontro do sol. 

Não queria  se enganar,  dar  voltas e acabar retornando sobre seus próprios passos.

Desta maneira poderia, quando quisesse, inverter a caminhada e voltar ao seu vale; bastaria marchar na direção do por do sol. .

 

Partiu um dia, ao amanhecer, completamente sem preparo, ingênuo, desprovido de qualquer reserva. Mas a vontade o movia., o espírito o empurrava. 

Mil acidentes cruzaram seu caminho; ele teve que vencê-los e superá-los um a um.   Teve paciência para esperar  o temporal passar, boa vontade para fazer qualquer serviço e receber o mínimo para se alimentar; teve força e empenho para não esmorecer.

Quando chegou ao mar, ficou um dia inteiro admirando-o e não encontrou palavras, na sua mente, para descrevê-lo. Nenhuma das histórias que ouvira fora tão fascinante, tão fantástica,  quanto esta realidade

Conseguiu trabalho a bordo de um navio mercante, e com ele atravessou o oceano  

Continuou, com persistência e tenazmente seu caminho rumo ao leste.

Pegou caronas, andou quilômetros, parou por semanas, para sarar os pés, para descansar as pernas, para  sentir novamente todo seu corpo entorpecido.  

Ao fim de cinco anos, seus cabelos estavam brancos, sua face escavada, os pés insensíveis, inchados, disformes.

Estava já tão longe de casa, tão afastado de seu mundo; tinha aprendido tantas coisas, experimentado tantas sensações, que ele se sentia outro; mais forte, mais capaz, mais Homem.

Pensou que seria o momento de voltar, de repousar seus ossos e músculos cansados, e para fazer isso, teria que marchar no caminho contrario, tomando o rumo oeste, por outros cinco anos. Não sabia se conseguiria chegar ao ponto de onde tinha partido um dia, tanto tempo antes.

Pela primeira vez tremeu; ele que tinha andado o tempo todo sozinho, de repente sentiu a solidão. Quis desesperadamente ter família, filhos, amigos, vizinhos, uma esposa. Acocorou-se à beira da estrada, baixou a cabeça – mas não conseguiu chorar. Uma chuva rala começou a cair sobre ele, como a limpar seus pensamentos, como a desbotar e virar a página do seu diário.

Todas as ilusões de antes tinham sumido, transformadas em pó.

Toda a sua confiança, sua fé, seu espírito lutador, haviam caído pelo caminho, ficando abandonadas e perdidas.

A sua alma estava seca e seu corpo acabado.

A chuva insistente e fria,  começou aos poucos a se infiltrar em sua alma, libertando-a do desespero. Pensou que seria o fim. Encolheu-se todo, enquanto a tempestade aumentava e apesar de tudo, adormeceu.

Quando acordou, já era de manhã. O sol brilhava novamente, as nuvens se tinham dissipado e o céu brilhava com um azul tão limpo, como só a tempestade consegue limpar. Sua alma também. Deixou que o so o aquecesse e que secasse as suas roupas.

Finalmente o descanso fê-lo  sentir-se melhor, mais confiante, mais esperançoso.

Quis logo  iniciar o caminho de volta; mas a estrada percorria ainda uma curva suave,  ao redor de uma colina; um pasto novo, de um verde como nunca tinha visto salpicado de margaridas e de flores silvestres; o gado pastando; ma atmosfera que de repente lhe pareceu familiar, que lhe trazia de volta algo de antigo, como a lembrança  de  um  sonho  distante. Decidiu percorrer este ultimo trecho; lentamente, humildemente, como se convém a um perdedor.

Encaminhou-se para a curva; e de repente, seu coração começou a bater mais forte, mais forte, seus olhos reconheceram  árvores e flores; sua alma sentiu ....sentiu  que estava em casa.

Na sua longa viagem, sem perceber, por milagre, voltara para o seu vale., dando uma volta completa ao mundo.  

Então, só então, ele acocorou-se e conseguiu chorar;  chorou, de verdade, com toda a alma,  como só um Homem pode chorar.

 

 


Autor: Romano Dazzi


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