UM MILAGRE



UM MILAGRE

de Romano Dazzi

 

– “Mãe do Céu! Nunca pensei que o frio fosse uma coisa tão ruim! – choramingou Maria Clara, tiritando e encolhendo-se no casaco de lã que trouxera por insistência da mãe.

-“Nem me fale!” – respondeu Rosana, que já estava roxa e nem sentia mais as mãos

Paradas na calçada, diante da estação de desembarque dos vôos internacionais, da  Malpensa, em Milão, as duas meninas pareciam completamente perdidas.

Acabavam de chegar de São Paulo.

Rosana estava pronta para registrar no diário essas primeiras sensações:

 

- No avião, tudo  correu às mil maravilhas, assentos cômodos, a comida plástica igualzinha àquela que todas as companhias oferecem, um filme antigo, a escuridão, o silêncio barulhento das turbinas – aquele zumbido monótono,  garantindo-nos  que tudo vai bem;

- Depois, vencidas pela emoção e pelo cansaço conseguimos finalmente adormecer, repousando por algumas horas;

- Ao amanhecer, reboliço geral, gente com ar de sonâmbulo, despenteada, se estirando, esticando, espichando. Fila de dez pessoas nas toaletes.

- Um tempo longuíssimo entre a aterrissagem e a abertura da porta. Acho que levaram o avião a conhecer todos os quatro cantos do aeroporto.

- E finalmente, Milão!

- Milão é um corredor comprido, iluminado, em subida, com um tapete cinza no chão, e ar condicionado. Acaba numa curva estreita.  Pelas janelinhas minúsculas, neblina. Foi só o que vimos de Milão até agora,. Espero que melhore.

- Superamos a prova do controle dos passaportes; o policial olhou mais para mim do que para o documento; e para a  Maria Clara também.  Recebemos o nosso primeiro carimbo!

-  Respondemos corretamente às perguntas entediadas do policial da alfândega; quando perguntou o que viemos fazer aqui, respondi -“Turismo!” ; mas fiquei com vontade de responder: - “viemos  trocar nosso sol por um pouco de frio! Se incomoda? Pergunta boba!....”

- Depois, fomos cuidadosamente farejadas por um velho pastor alemão, tão avoado  que certamente  não fazia  a mínima idéias do que estava procurando – se é que estava  procurando alguma coisa;  

- Por fim, recuperamos as malas naqueles engraçados carrosséis onde os volumes circulam pacientemente à espera de seus donos .

- Da primeira vez, a Maria Clara não conseguiu agarrar a mala, e tivemos que esperar que ela voltasse – a mala, digo.

- Mas agora, na calçada gelada, sentimo-nos mais cansadas que nunca;

- A euforia com que tínhamos iniciado a  viagem,  esgotou-se.

- Estamos estranhas, apavoradas.

- Sozinhas, a dez mil, quilômetros de casa,  sabendo que mesmo que a gente grite desesperada: “Mamãaae, socorro !!!” , ninguém vai responder, ninguém vai acalmar-nos, com o som de sua voz.

- E o pior é pensar que esta é  apenas a primeira etapa de uma viagem preparada cuidadosamente, durante os últimos seis meses.

- Maria Clara é muito parecida comigo;  neste momento, então, somos dois narizes roxos,quatro mãos roxas, vinte unhas roxas. Nada mais.  

- Eu sou morena. Maria Clara é loira, mas as diferenças terminam aqui.

- Todos dizem que fazemos os mesmos gestos temos os mesmos trejeitos, as  mesmas expressões; também, pudera: estamos juntas desde quando tínhamos três anos; com uma convivência de  dezessete anos, adquirimos a mesma maneira de ser e de pensar.

- Ambas somos filhas de emigrantes italianos e fazemos aniversário em fevereiro, no dia 27....

- Estudamos na mesma escola, brigamos com as mesmas meninas malvadas do colégio, ficamos caidinhas, ao mesmo tempo, pelo mesmo rapaz.

- Esta paixão, por sinal,   sacudiu um pouco nosso relacionamento; mas descobrimos a tempo que o menino não valia nada e voltamos  logo à velha amizade.

 

 

- “Aonde vamos agora, Maria Clara?”

- “ Vamos primeiro trocar dinheiro  e depois, seguindo o programa, tentaremos chegar à estação central de Milão” – “

- “Pelo que vejo, o avião nos deixou a uns cem quilômetros da cidade....”  

Maria Clara tem realmente uma boa cabeça e não se perde facilmente.

Entraram novamente no terminal, reaquecendo-se um pouco, acertaram o câmbio de moedas e muito a contragosto, voltaram para o gelo polar da calçada.  

Numa plataforma próxima, um ônibus azul aguardava os raros passageiros. Pagaram

a passagem – que acharam um absurdo de tão cara – e acomodaram-se.

O panorama era desanimador, para quem vinha da luz, do sol, das cores do Brasil.

Até que a neve nos campos ao longe, dava um simpático ar de Natal; mas as árvores pareciam apenas galhos mortos, torcidos,  e  esticavam-se às centenas, ao longo de toda a estrada. Tudo era tão triste!  tão terrivelmente frio!

Quarenta minutos depois, o ônibus parou numa rua estreita ao lado da estação central. Hora de Maria Clara tomar a pastilha

Milão, agora, era aquele mesmo corredor da saída do avião; só que a neblina, que estava fora, agora estava dentro.

Só conseguiam ver os dois primeiros andares dos prédios, que devam ser imensos.  Quando acabasse a era do gelo – pensavam -, voltariam para ver como é Milão, de verdade.        

Rapidamente  entraram no saguão inferior.  

Alto, imponente, cheio de mármore,  como uma igreja, mas despido e frio.  Conseguiram comprar as passagens para Turim, não sem alguns mal entendidos – O funcionário reclamava: - “porque será que estes estrangeiros nunca aprendem a falar italiano? será que é tão difícil assim?  No,no; é pura pigrizia...–

Por fim, subiram a escadaria. Só depois, chegando lá em cima, perceberam que havia uma escada rolante. –“Fica quieta, não dá bandeira: ninguém viu! – comentou Rosana.

A estação de verdade estava aqui; lá embaixo era só uma vitrine.

Aqui, sob uma enorme armação de treliças de aço e vidros sujos, os alto falantes repetiam avisos que as garotas não entendiam; pessoas apressadas, correndo feito baratas tontas de um lado para o outro, procuravam  um vagão, uma mala, um amigo, uma informação; carrinhos elétricos, tocando buzinas estridentes,  driblavam a multidão

Lembraram-se, rindo, da Rua 25 de março em véspera de Natal: todos acotovelados, como se o mundo tivesse encolhido e não tivesse mais espaço algum, fora daí....  

Apenas os trens, calmos,  imperturbáveis, chegavam lentamente, partiam lentamente, em mais de trinta trilhos paralelos. Silenciosos, alheios à confusão. São eles os donos verdadeiros da estação!

 

Por sorte, Maria Clara acertou direitinho o corredor onde o trem para Turim as esperava; sentaram tranquilamente em um confortável compartimento de segunda classe, recuperando o fôlego. . 

Pouco depois, o trem,  abandonada a estação, corria suavemente para oeste.

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma pausa.

 

As meninas não estavam só dando um passeio.

Mesmo que nenhuma das duas jamais tivesse voltado a comentar a verdadeira causa da viagem,  ambas estavam conscientes que se tratava de um gesto desesperado, uma ultima cartada, para tentar salvar a vida de Maria Clara.

A doença tinha sido diagnosticada um ano antes; primeiro tivera sintomas de fraqueza, a vista às vezes escurecia, perdia facilmente o equilíbrio, sofria de dores de cabeça freqüentes.

Mas era uma moça de vinte anos; alegre, bonita, inteligente; o tempo passava inexoravelmente e Maria Clara custava a se conformar, a aceitar um tratamento, uns remédios mais fortes, até mesmo uma intervenção cirúrgica.

Ninguém conseguia convencê-la.  Estou bem  - dizia – estou ótima!.

Durante este último ano,  Rosana foi a fiel companheira, a amiga constante, a conselheira indispensável.  Mudou-se para a casa da Maria Clara e se tornou a irmã mais velha, a ajuizada, aquela que trazia na hora certa, sem jamais faltar, a pastilha, que Maria Clara tinha que tomar, a cada quatro horas.

Seis meses antes, por uma espécie de inspiração, a mãe de Maria Clara sugeriu que pedissem a ajuda da Virgem Maria .

Lembrara da Basílica de Superga, situada na mais alta colina nos arredores de Turim;  dedicada à Natividade da Virgem. Tinha-a conhecido na infância, antes de partir para o Brasil.

 

A partir daquele dia, as meninas passaram muito do tempo livre estudando os detalhes e preparando-se seriamente para aquela que seria a sua grande viagem à Itália.

Ficaram tão empolgadas tão ocupadas, que a doença  parecia até regredir, quase vencida, dia após dia.   

 

E agora, finalmente, estavam em Turim.

Desceram do trem na estação de Porta Susa e atravessada a praça, entraram numa pensãozinha barata que lhes haviam indicado.

Estavam tão cansadas, que não tinham mais vontade de falar, nem de escutar uma a outra – mesmo com tantas coisas novas e excitantes para comentar.....

Desabaram na cama, quase instantaneamente.

 

O dia seguinte, uma quarta feira, amanheceu frio, mas ensolarado; com aquele sol que não aquece, branco, desmaiado, apenas morno; saíram, bem agasalhadas, à descoberta da cidade.

Turim já foi capital da Itália.

Foi construída para ser uma capital; é gloriosa e imponente, cruzada por varias avenidas largas que se abrem em praças enormes cercadas de palácios.  

É uma cidade que ostenta uma riqueza elegante e uma nobreza natural.  

O povo é acessível, simpático, prestativo; ou talvez tenha sido apenas uma impressão delas.,

As duas meninas deslumbradas passeavam pelas avenidas, quase todas com nomes de reis e rainhas, num País que é uma república há mais de sessenta anos, depois de  expulsar a casa real, por um referendum popular...passam os reis, mas seus nomes ficam na topografia da cidade.... assim como, os nomes de Dom Pedro I, Dom Pedro II, Princesa Isabel, estão vivos e continuarão assim ainda por muito tempo, na República Federativa do  Brasil.

O rio Po, que  costeia o lado norte da cidade, formando um grande “esse”, não tem  ainda aquele volume perigoso que se forma mais abaixo, nos meses do degelo, engrossado por dezenas de afluentes.  Raramente apresenta uma cheia ou torna-se violento. Via de regra, é  manso, tranqüilo, como a própria cidade. 

Foi até represado, em alguns pontos, para a extração de areia e pedregulho.

Atravessando o Pó,  no rumo norte,  foram até a “tramvia” que é uma estrada de ferro de cremalheira, subindo pela encostas por  uns 8 km,  até chegar à Basílica.

A chegada foi um momento emocionante, inesquecível.

A Basílica é realmente uma alta construção monumental, que data de 1700.

 

O diário de Rosana explica, melhor que qualquer descrição, o que elas sentiram:

 

- Revivemos em poucos minutos todo o tempo passado no cansativo trabalho de planejamento,  de preparação, tentando não esquecer nada; as mil anotações sobre roupas, remédios, agasalhos; e muito mais; mas principalmente a luta interior, que se travava todos os dias entre sentimentos contraditórios, a fé contra a razão, a esperança de um milagre contra a dúvidas de uma decepção.

Tudo voltou ao nosso espírito, à nossa memória.

Abraçamo-nos felizes mas não pudemos resistir  à enchente das sensações profundas que nos afogavam.

E choramos, de alegria e de medo, admiradas com a nossa força e com a nossa fraqueza, sentindo-nos poderosas e vencedoras, mas ao mesmo tempo  incertas e vulneráveis. 

Porque por muito que nos esforcemos, a vida toda, nunca chegaremos a conhecer mais que um grãozinho, uma poeirinha, do que existe.

Só percebemos, confusa e profundamente, que há em todo o grande Universo em volta de nós muito, muito mais do que vemos e ouvimos.

Custou para voltarmos à realidade; e quando finalmente nos acalmamos, sentimo-nos leves, tranqüilas, realizadas.

O que tínhamos decidido fazer, estava feito.

Agora, estávamos nas mãos de uma antiga senhora com um manto azul, cuja imagem sobressai do altar principal da Basílica. 

Mas não era para a imagem que pedíamos o socorro

Nem saberíamos , realmente,  onde depositar as nossas orações, a quem sussurrar o nosso desejo, que nos tinha trazido de tão longe.

 

A tarde caia, a escuridão subia dos vales e já começava a envolver a colina da Superga; um frio úmido chegava da mata em ondas contínuas e de repente as garotas começaram a tremer; de frio ou de fome, de cansaço ou de emoção, sabe-se lá.

Os Padres Marianos receberam-nas carinhosamente, deram-lhes  agasalhos de lã, uma sopa de favas, pão preto, cobertores e dois catres simples para descansar.

O conforto e a paz que estas pequenas coisas foram capazes de  transmitir, aqueceram-lhes os corações.  Adormeceram tranqüilas; e este já foi um primeiro milagre.

..........................

Nos dias seguintes, ambas repensaram muito no que tinham realizado; falavam pouco, mas cada uma revivia as sensações daquele momento.

Interessante que aquele não é o que se imagina para um lugar de milagres.

Não há peregrinos ajoelhados, pedintes implorando, choros ou lamentações, cerimônias ou bênçãos. 

É mais um monumento, solene e antigo, do que um lugar de oração.

A mãe da Maria Clara talvez tivesse uma idéia errada do lugar.

Mas para as garotas era uma etapa importante:. um objetivo alcançado, um sonho realizado. 

No diário, Rosana registrou:

 

Uma pergunta me vinha à cabeça o tempo todo:

-“Maria Clara, o que acontece se o milagre não se realizar?”

 E ela, depois de pensar um pouco, respondeu:

-“ Quer saber de uma coisa, Rosana? Agora já não me importa muito. O que tiver que ser, será; eu fiz o que podia, o que devia fazer, o que senti que era importante fazer. “

Senti tanta confiança, tanta resignação – mas não uma resignação passiva, diante de algo que já não pode ser controlado; foi um posicionamento novo, adulto, consciente.

E este, entendi naquele mesmo instante,  foi um segundo milagre.

Contive minhas lágrimas a custo. 

 

Este fato de estarmos o tempo todo a um passo da comoção, nos intrigou muito. Talvez por estarmos respirando uma atmosfera diferente, ou por nos encontrarmos longe de casa; ou por termos alcançado um ponto ao qual  nem mesmo nós, no íntimo esperávamos chegar, tudo era motivo para nos tocar profundamente. Mas chorar também é um remédio, tão importante quanto as pastilhas que Maria Clara precisa tomar.

 

Ficamos naquele bonito lugar  ainda três dias – passeando, sonhando, descansando, sem pensar muito., sem nos preocupar com nada. Sentimo-nos como o semeador que depois de deixar as sementes na terra não é mais dono do que acontecerá.  Missão cumprida.

Não havia realmente mais o que fazer..... 

 

..........................

 

Logo cedo, na segunda feira ensolarada; as meninas despediram-se dos Padres, foram até a Tramvia e iniciaram a lenta descida, no trem que as levaria de volta a Turim.

Seria fácil encontrar logo um trem para Milão, onde pretendiam ficar uns dois ou três dias,  olhando vitrines e visitando o castelo Sforzesco, o Duomo, parques e locais de interesse.

Saltaram no terminal, na Estação Sassi , tomaram um táxi e num instante estavam na  Estação  de Porta Nuova, comprando as passagens para Milão.

Embarcaram dez minutos depois.

No vagão, poucos passageiros, o trem logo adquiriu velocidade.

De repente, entrou no compartimento um rapaz, alto, loiro, sorridente.

Apresentou-se: “Salve, sono Gianni. E Voi?”

As garotas olharam-se surpresas, e deram-lhe a mão, apresentando-se também.

Quando descobriu que eram  brasileiras, mudou de tom e tornou-se mais insinuante, mais envolvente.

Ambas sentiram isso na voz e nos modos.

Começou a falar de América Latina, de Caribe, de Samba, de Copacabana – onde confessou nunca ter estado.

Era sem dúvida o típico exemplar do “latin lover”, o italiano simpático, sedutor e perigoso – um tipo de animal contra o qual as mães tinham erguido por diversas vezes todos os sinais possíveis: cruzando os dedos, fazendo o sinal da cruz, recorrendo à mais explícita figa de madeira, para tentar esconjurar o perigo.

Mas quem consegue fugir da tempestade, quando está em um barco? Ela vem, com todos os seus perigos e é preciso deixá-la passar, mantendo-se firme no rumo.

Mas o moço não parecia perigoso, não tinha mesmo cara de tempestade; pelo contrário, deu uma porção de informações: o que não poderiam deixar de conhecer, onde deveriam comer – pratos bons e baratos – e se hospedar, sem ter que ir aos limites da cidade para economizar uns poucos euro.

Enfim, foi de uma gentileza excepcional, comportando-se como um perfeito cavalheiro. As meninas estavam admiradas, caidinhas, surpresas, porque pensavam que um produto dessa qualidade não se  fabricasse mais, nem na Itália, nem em qualquer outro lugar.

Foi uma agradável experiência.

Milão apareceu logo; o trem reduziu a velocidade, começou a passar pelos  cruzamentos e desvios de linhas, que se refletiam em ligeiras sacudidas, cada vez mais próximas umas das outras e que anunciavam a vizinhança da estação.

Finalmente, o trem parou.  

Gianni despediu-se, beijando a mão das duas garotas extasiadas, deixou a cada uma um cartão com o telefone, oferecendo-se para ajudar, caso precisassem de alguma coisa. 

Ainda as ajudou a tirarem as bagagens do vagão e por fim pulou agilmente para o passeio e sumiu, com um aceno, esgueirando-se no meio da multidão.

Custou uns dez minutos; apenas dez preciosos minutos, antes que as meninas descobrissem, apavoradas,  que a frasqueira da Maria Clara tinha sumido.

Voltaram ao vagão, procuraram em todos os compartimentos, correndo afobadas de um  para o outro, e ficaram no trem até que ele começou a mover-se lentamente, para continuar a viagem.  Desceram  e se encontraram assim, aterrorizadas,  paralisadas por um medo que nunca haviam sentido.

Gianni – ou como quer que se chamasse, tinha sumido com a frasqueira.

.

O que havia nela? Simplesmente, os cheques de viagem. O restante do dinheiro. As passagens de volta. Os passaportes. E o frasco do remédio da Maria Clara, com as 180 pastilhas que deveriam mantê-la viva até a volta ao Brasil. Para todo o resto podiam providenciar alguma coisa; afinal estavam em Milão, não no fim do mundo. Mas constatar que o remédio tinha sumido, foi um golpe fatal, definitivo. Ficaram as duas  sentadas nas malas por um bom tempo, sem saber o que fazer, o que pensar.

Como sempre, Maria Clara foi a primeira - tomando consciência da gravidade da situação - a tentar armar uma estratégia.

Primeiro, o que sabiam:

Gianni era um nome falso, com certeza; e assim também seria o telefone nos cartões

Não tinha dado nenhuma pista que pudesse permitir sua identificação.

Tinha provocado um prejuízo incalculável, até de uma vida humana, se as meninas não encontrassem logo uma substituição para as pastilhas da Maria Clara.    

Depois, o que não sabiam: como sair da enrascada, o que fazer e em que ordem.

Primeiro, procurar uma delegacia de polícia.

Com seu italiano claudicante, entraram na delegacia da estação.

Foram atendidas por um policial gordo e de má vontade, que passou a ter um comportamento francamente hostil, quando soube que eram estrangeiras, extra-comunitárias, que tinham apenas 20 anos (na Itália a idade mínima para exercer muitos direitos ainda é de 21 e em alguns casos até 25 anos) e que estavam viajando sozinhas.  

O policial logo viu que o assunto era complicado e transferiu-o ao seu superior, o “appuntato”, ou seja, um encarregado da delegacia.

 Em qualquer estação, distrito, delegacia, comissariado, ou como quer que se chame um departamento policial no mundo inteiro, quando você entra, ninguém mais quer saber se você é  réu ou  queixoso,  culpado ou  vítima. 

Assim, por norma,  na dúvida, todos são culpados e só depois das devidas explicações, analises, exames,  provas circunstanciais e  interrogatórios, serão talvez liberados e autorizados a voltar para casa.

Tem mais: os malandros têm prática e se desembrulham facilmente; as vítimas estão na sua primeira experiência e sofrem com uma situação constrangedora e traumática.

O appuntato não foi menos duro que o primeiro policial. Quis saber se eram prostitutas, onde era o “ponto” delas, se podiam provar o que diziam.

Quando entendeu que elas haviam perdido tudo, se rosto fechou-se, fazendo prever uma tempestade ainda maior,.

- Mas nós fomos vitimas de um furto, somos nós que estamos registrando uma queixa!  .- argumentava em altos brados a Maria Clara. – A polícia deve-nos ajudar, informar, orientar, garantir nossos direitos. Fomos lesadas, não temos para onde ir! O que temos que fazer agora?    

- “Não posso resolver nada aqui, senhoritas – disse o oficial – vou transferi-las à Questura, a Central de Policia, que vai cuidar do caso. “SE”.....se pudermos comprovar que tudo que nos declararam é verdade,  a situação se resolverá em pouco tempo ...”.

- “Quanto tempo, senhor ?”– arriscou Rosana

- “ Uma semana.” – foi a resposta gélida.

Rosana desmaiou.

A “transferência”  `Central de Polícia, revelou ser uma detenção preventiva. As meninas estavam praticamente presas, e sem nenhum recurso.

 

A falta do remédio deixava Rosana tão preocupada que se recusava inconscientemente a pensar nisso. Por quanto tempo Maria Clara poderia agüentar sem sentir uma  piora no estado de sua saúde? 

Foram dias muito difíceis, e no fim foram as outras detidas que ajudaram as meninas, no limite do possível,  com um pouco de comida, cobertores, água...alguns conselhos e um pouco de pena, que de certa forma substituía o carinho.

Maria Clara tinha conseguido encaminhar um pedido urgente ao Consulado Brasileiro, mas os dias e os horários de trabalho dessa repartição eram tão difíceis, que o caso ainda não tinha sido analisado e não o seria  pelo menos nos  trinta dias seguintes. . 

Mais eficiente, a policia italiana recebera da Interpol a informação que as meninas estavam “limpas” .

Quatro dias depois, com a maior cara de pau, um delegado da “Questura”  mandou chamar as meninas, que estavam mais arrasadas que nunca.

Tinha um certo ar de decepção quando declarou que estavam livres, sem maiores explicações. Deu-lhes uma folha de identificação, com a foto e um carimbo, recomendando-lhes que não se metessem mais em complicações.

- “Mas foram vocês,  que nos meteram em complicações! – revidou Maria Clara em voz alta.   Não houve resposta; nem justificação, nem desculpas; apenas um olhar de fogo,  que fez com que as duas apressassem sua saída da delegacia. 

Recuperaram as malas,  com todas as roupas remexidas, sujas, amassadas, e se encontraram na rua, na sexta feira, na mesma situação da segunda feira anterior, famintas e sem ter uma porta à qual bater, para pedir ajuda.

 

Diz a sabedoria popular,  que : “quanto pior, melhor” . Isso deve querer dizer que, se você está no fundo do poço e tudo o podia acontecer de ruim já aconteceu, daí para  frente só podem acontece coisas boas e a situação deve melhorar.

É preciso acrescentar que se trata de sabedoria popular, isto é, de sabedoria ditada pelas piores experiências, pelo desespero absoluto, pelo panorama mais negro que se possa ter pela frente .

É o comentário do navegante, dentro da pior tempestade: - Se não morrer agora, vou ter uma boa história para contar aos meus netos.....   

 

É novamente o diário de Rosana que traz:

 

“ Todos falam muito em “coincidências”. Não acredito nelas. Para mim, tudo já está escrito , determinado.  Nós não determinamos,  não definimos, não decidimos absolutamente nada.  Apenas cumprimos.

E temos que tentar cumprir da melhor maneira possível, porque a cada segundo nosso destino pode mudar, dependendo do que decidimos fazer no instante anterior. O livre arbítrio é apenas um contínuo jogo, no qual vamos colocando as cartas que nos parecem melhores para garantir a jogada seguinte 

 

..................................

 

Enquanto ainda tentavam recuperar o fôlego, antes de imaginar qual poderia ser seu passos seguinte,  o destino se adiantou: uma “pantera” da polícia entrou em alta velocidade, com a sirene ligada,  de uma rua transversal e fez uma freada acrobática na frente da Questura. Dela saíram dois agentes, levando um jovem alto e loiro, algemado, que reclamava indignado pelo desrespeito aos seus direitos de cidadão honrado.

As meninas reconheceram-no imediatamente e partiram, sem pensar duas vezes, para o ataque. Antes que os policiais, colhidos de surpresa, pudessem reagir, elas já tinham acertado uns bons tapas no rapaz, aos gritos de : Ladrão! Ladrão!.

“Senhor guarda” – falava agitadíssima  Maria Clara – “este é o rapaz que nos roubou; deve estar ainda com todas as nossas coisas!” -.

Curiosamente, não usaram nenhuma das graciosas expressões que tinham aprendido durante sua estada no “hotel” da polícia, com as sempre cordiais “coleguinhas”  .

A comitiva entrou rapidamente no edifício. Apresentaram-se ao delegado, que estourou: -“outra vez vocês! nem acabaram de sair e já estão aqui de novo! Com certeza se envolveram em outra encrenca!”...

Mas um policial que as acompanhava,  logo desfez o equívoco.

 O tratamento mudou imediatamente.

“Gianni” era apenas o nome de batalha de Antinore Guariglia, ladrão e estelionatário conhecido, antigo freqüentador da Questura e da Casa de Detenção.

Depois de um “caloroso” aperto, ele revelou onde se encontrava o produto do furto. Ao cabo de uma hora, as garotas recuperaram os passaportes, as passagens, os cheques de viagem. Do dinheiro, nem sombra. Mas isto não era importante.O pior, era que o ladrão tinha jogado as pastilhas fora, no Naviglio, um canal sujo que passa pela zona leste da cidade.  Por que?  Como  pensara tratar-se de drogas,  levara-as a um receptador, que não quis compra-las. Assustado, tinha-se livrado delas.

Mas a surpresa maior, foi a recuperação de Maria Clara.

Já por cinco dias sem remédio,  tendo passado de um susto a outro, de um choque a outro, por surpresas , decepções e desespero,  sentia-se bem como nunca antes, estava forte, firme, alegre.

Sorria de suas desventuras  e estava pronta a voltar para casa, ansiosa para  contar a todos a sua estranha história. 

 

No diário, Rosana anotou:

tudo é bom quando acaba bem. Voltamos finalmente para casa, cinco anos mais experientes, dez anos mais  capazes, quinze anos mais humildes....Somos agora bem mais velhas que as nossas mães e podemos dar-lhes uns bons conselhos.....

 

Sentada calmamente sob uma alta seringueira no parque do Ibirapuera,  Maria Clara choramingava, lembrando do frio de Milão::

 -“ Mãe do Céu! Nunca pensei que calor fosse uma coisa tão ruim!

 

A antiga senhora do manto azul, a dez mil quilômetros daí, acenou um ligeiro sorriso; mas ninguém o viu...


Autor: Romano Dazzi


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