O córrego Puladouro, o Imasul e o índios Ófaié



Prof. Carlos Alberto dos Santos Dutra (Mestre em História pela UFMS)

Leio no Diário Oficial do Estado de Mato Grosso do Sul do dia 10 de março de 2009,página 30, que foi requerido junto ao órgão Instituto do Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul (IMASUL), licença prévia para a extração de argila para uso na construção civil na localidade Fazenda Puladouro, no município de Brasilândia, sendo que não foi determinado o estudo de impacto ambiental.

Rapidamente me vem à memória os apontamentos que coligi como missionário do CIMI, no ano de 1988, sobre um dos aldeamentos mais antigos que se tem notícia na região pertencente aos indígenas Ofaié, primis ocupandi caçadores e coletores da margem direita do rio Paraná, onde um pequeno grupo ainda hoje sobrevive naquele município.

Os registros datam do ano de 1901 e consta da descrição de Albert Vojtech von Fric, cujo trabalho lhe foi subtraído e publicado trinta anos depois por seu patrício Chestmir Loukotka e que, equivocadamente chamou os Ofaié que habitava a margem direita do rio Verde, de índios Kukura, afirmação que foi logo refutada pelo etnólogo Kurt Nimuendajú.

Em seu texto, ainda em francês, anotou o filósofo tcheco, que os Ofaié possuíam deux genres d'habitation. Durante a estação da seca eles vivem às margens do rio ou próximos da água. Os campos são deixados de lado por causa dos mosquitos e carrapatos. É a estação da pesca e das grandes festas religiosas e sociais. Von Fric lamenta não ter sido possível obter informações mais detalhadas sobre essas festas. Percebeu, porém, que "é nessa estação (da seca) que os indígenas ficavam nas grandes casas permanentes onde moram juntas várias famílias". Ao redor da aldeia, observou a existência de pequenas plantações de mandioca.

Essas informações etnográficas foram, depois, divulgadas por Darcy Ribeiro e outros pesquisadores, e os dados passaram a ser referência como sendo comuns a todos os demais grupos restantes de Ofaié que viviam em outras regiãos mais ao sul do Estado. Locus, portanto, de relevância para a História e a Antropologia.

É, entretanto, a existência de um cemitério indígena localizado nas margens do pequeno córrego que dá nome à Fazenda Puladouro mencionada no Edital acima, que prende a atenção do historiador contemporâneo. O tal córrego é afluente do rio Verde e a localização deste signo na região configura-se uma representativa amostra material da presença, ainda que pretérita dos indígenas Ofaié nesse local.

Penso que a preservação e a sinalização desse evento histórico –o cemitério indígena--, merecesse maior atenção de órgãos oficiais do Estado. Já não digo da FUNAI que sequer dispõe de profissionais para atender as demandas existenciais dos 67.914 indígenas que vivem em Mato Grosso do Sul (dados da FUNASA, 2005). Falo de órgãos como a Fundação de Cultura, o IPHAN, a Secretaria de Turismo e outros, a quem caberia dar destinação mais nobre ao local, com a preservação e valorização deste espaço garantindo o uso social desta monumentalidade esquecida.

Sob o aspecto etnohistórico revelador da ocupação de espaços tradicionais de domínio dos indígenas Ofaié, interessa o registro, em particular, desse aldeamento, não somente pela sua anterioridade, mas em razão dele traduzir as marcas e os vestígios de um grupo indígena recente cuja etnia impregnou a paisagem com os dados da cultura durante sua estada ao longo das margens desse e de outros rios que compõem as bacias e sub-bacias do Rio Paraná, num período conturbado do processo de expansão agropastoril assinalado por constantes perseguições e massacres.

São os registros do início do século XX que nos dá sustentação para a importância dos vestígios encontrados nesse local. Tem-se que esse aldeamento, depois de ter sido visitado por Albert Vojtech von Fric, recebeu em setembro de 1953 a visita de Francisco Ibiapina da Fonseca, inspetor do Serviço de Proteção aos Índios, onde ele menciona sua localização "a 3 km da ponte do rio Verde". Segundo aquele servidor do SPI o aldeamento possuía nessa época uma população de 58 pessoas. Essa relação pode ser conferida no nosso sítio na internet http://dutracarlito.vilabol.uol.com.br/documentos.htm

Posso dizer, igualmente, que tive a oportunidade de revisitar esse local junto aos próprios indígenas Ofaié em fevereiro de 1988. No interior da área da Fazenda Puladouro ouvi dos protagonistas desses tempos difíceis a história que apontava estar ali enterrados indígenas de nome Caetano, Mário, Antonio, João, Miguele, Zé Graciano, João, Lagranha, Zé Tá, Buriti e Luiz (Sebastião). Na época havia um desenho reproduzido de próprio punho sobre o local apontado pelos indígenas. O servidor do SPI Francisco Ibiapina da Fonseca confirma esses nomes e a presença de outros.

Foi o indígena Alfredo Coimbra que me acompanhou até o local e reviveu em silêncio os sinais de uma "memória perigosa, guardada debaixo de mil chaves", como escreve o historiador Eduardo Honaert. Um ano antes, em 18 de março de 1987, esse indígena, já octagenário, havia me concedido uma entrevista informando que "o pai do Tomé também morreu pra cá, não sei, na beira do rio Verde. Lá ta enterrado lá, né? Enterrado, acho, no mato. Não é cemitério, né? Ta enterrado, assim, no mato. Lá acho que morreu três, dois mulher lá também, e o pai do Tomé, e o pai do Felipe também morreu lá. Tá tudo jogado, enterrado no mato. Tá tudo na beira do rio Verde. É na beirada do rio Verde, pro lado de cá. Ali pra cima, pra cima da ponte (...). virou mato lá, não limpa lá. Era tempo cemitério ali, que nem aqui".

A entrevista, sob o título "Ouvindo o velho Alfredo", encontra-se publicada no livro Ofaié, morte e vida de um povo, publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul em 1996, e igualmente se encontra no sítio da internet acima citado.

Na observação in loco, entretanto, não foi possível apontar com precisão olocal das sepulturas, uma vez que o terreno, no decorrer do tempo, foi, por diversas vezes revolvido pela ação e práticas do manejo agropecuário. Na cabeceira do córrego Puladouro, local onde as informações orais dos indígenas apontam como o mais provável que existiu o cemitério, pelo menos à distância e no nível da superfície atual, não há sinais visíveis de cruzes, cercados ou sepulturas, uma vez que a área foi bastante alterada na sua fisionomia ambiental original, tendo o córrego sido represado com a formação de um açude para o uso do gado.

No campo da historiografia, confirma a presença indígena Ofaié nesse local, os Ofícios nº 253 e 254, datados de 8 de outubro de 1953, assinados pelo Chefe da Inspetoria Regional de Campo Grande, do SPI, Deocleciano de Souza Nenê, e dirigidos respectivamente ao Prefeito Municipal de Três Lagoas e ao Presidente da Câmara Municipal desse mesmo município, Antonio de Carvalho, ocasião em que ambos agradecem o que as autoridades municipais fizeram aos Ofaié que se encontravam próximos a ponte do rio Verde (Rodovia MS-395).

A divulgação desses acontecimentos ocorridos há 40 anos, reveste-se, sem dúvida, de relevante importância cultural, uma vez que acaba por inscrever esses fatos –ainda que de maneira singular--, nos contornos de uma história mais ampla, a história oficial dos municípios de Brasilândia e Três Lagoas, cuja população local teria o direito de tomar conhecimento e decidir sobre eles.

Preservar esses espaços de manifestação da cultura, em última análise, é a forma mais correta e legítima de devolver ao povo a memória dos antepassados e os sinais que deles restaram para que possam ser cultuados e divulgados como instrumentos e corpus de suas próprias identidades.

A área do referido cemitério integra hoje a Fazenda Puladouro, e, como pode-se inferir pela licença prévia concedida pelo IMASUL-SEMAC do Estado de Mato Grosso do Sul, parte dela será destinada a extração de argila.

Não posso afirmar que a área do antigo cemitério será atingida pelas escavações em busca da materia prima para o comércio ceramista local, porém, há de se defender o fomento da pesquisa científica nesta região. Trata-se, pois, de um marco referencial de interesse, não somente etnohistórico, como também arqueológico, que mereceria a atenção dos órgãos oficiais para o recolhimeto de informações materiais e imateriais contidas neste espaço, tendo em vista a identificação pública, naquela região, de uma dezena de sitios arqueológicos que, igualmente, reclamam por proteção.

À guisa de conclusão, recomenda-se ao órgão ambiental do Estado de Mato Grosso do Sul, IMASUL, um mínimo de prudência, associada à salutar interdisciplinaridade com outras áreas do saber. Antes de emitir licenças prévias para revolver as entranhas da terra em regiões de comprovada habitação indígena, como as margens do rio Verde e rio Paraná, caberia indagar: --em relação aos dados culturais e patrimoniais ali existentes, quais as precauções técnicas que estão sendo tomadas, para justificar a não exigência de estudos de impactos ambientais (EIA) pelo órgão de proteção ambiental?

Aos órgãos da cultura e do patrimônio, por fim, e, se ainda houver tempo, recomenda-se a preservação e conservação dos espaços ethonistóricos Ofaié, garantindo-se, por exemplo, a sinalização desses local de habitação indígena, de modo a permitir suas inserção em programas de educação ambiental e patrimonial, que poderão, quiçá, ser desenvolvidos pelo Estado ou Município. Antes que a última centelha da memória se reduza ao pó impregnado à argila do esquecimento.

Figura 1

Aldeamento e Cemitério Ofaié no Córrego Puladouro

(Fonte: IBGE, 2003, Adap. Dutra, 2005)




Autor: Carlito Dutra


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