Tio Felipe



187 - O TIO FELIPE

 

A campainha tocou, Luis foi atender e voltou trazendo o tio Felipe.

“-Boa tarde a todos! “ como todo terceiro domingo de cada mês, o nosso tio Felipe, um napolitano de seus 70 anos, quase careca,  um pouco mais baixo e um pouco mais recheado que o padrão, tinha vindo nos visitar.

“Boa tarde, titio!” todos respondemos carinhosamente – “o que há de novo? Como vai a saúde? “ Era a costumeira aproximação, sem novidades.

“Estávamos falando no senhor ainda ontem a noite”, disse o Luis

“Ah é? E o que estavam criticando?” titio procurou sua poltrona costumeira, enquanto encarava cada um, fingindo estar ofendido e apreensivo.

Não tinha nenhuma das características que classificam o napolitano:  o caráter bem humorado, explosivo, espontâneo; o espírito crítico, cáustico, debochado até, quando o assunto é igreja ou governo; mas cultivava o hábito de defender seus princípios, o gosto das usanças e das tradições, a lembrança saudosa da terra de origem.

“ Digam-me, seus covardes! Vamos, falem! “

“ Só depois do café, titio” cortou rapidamente meu primo José.

O tio Felipe era uma pessoa muito original; falava sempre com calma e “sottovoce”, andava com passos curtos e regulares; não fazia nada depressa.

A cerimônia do cafezinho e do biscoitinho começou logo a seguir.

“Pronto o café!” falou em voz alta a Mariazinha, enquanto começava a distribuir as xícaras,.

Sabíamos que o tio Felipe podia fazer durar um café por quarenta minutos; um biscoitinho, por dez. 

“E então? Alguém se decide a falar, ou vão ficar todos mudos, deixando que eu pense o pior de cada um?”

“Bem” - começou a Maria - ”estávamos comentando, talvez com um pingo de maldade, sobre seus hábitos, titio”

“Sobre meus hábitos, ehm? E o que, em particular?  Alguma coisa que eu não saiba?”

” Estávamos dizendo que todo o mundo reparou no seu jeito lento de fazer as coisas...”

“Você fica com a xícara de café  na mão, poupando o biscoito,  enquanto conversa”.

“E eu devo confessar” – acrescentou o Mrcelo – que você só consegue fazer uma coisa de cada vez”.

E o Luiz: “Em minha opinião, você nunca foi criança!...Já nasceu assim, como está hoje, completo e acabado! “

Todos rimos,  o titio incluso, o que muito nos aliviou.

.

Nós, os sobrinhos, tínhamos naquele tempo o hábito da reunião dominical;  almoçávamos juntos aos domingos e passávamos um bom tempo conversando e trocando idéias. 

A sabedoria dos velhos tinha-nos transmitido este bom hábito que ao ser perdido, anos depois, deixou cada um de nós mais órfão e mais solitário.

Ele, aposentado, viúvo, solitário, tinha conservado a capacidade de falar tão bem do passado quanto do futuro.

Podia descrevê-los com riqueza de detalhes, como se os estivesse vivendo.

Isto dava-lhe uma certa aura misteriosa, um halo mágico – que provavelmente só eu cheguei a sentir.

Aliás eu tinha quase certeza que ele devia ter, em casa, uma janelinha secreta, para espiar, entre leves chumaços de neblina, o ontem e o amanhã.

 Nem todos tinham paciência para “fazer sala”; alguém tinha que ficar escalado, de plantão, enquanto os outros se dedicavam a coisas mais interessantes; mas a conversa dele não era tola, apesar de pouco vivaz.  

Quando jovem, vendera por anos produtos de perfumaria e toucador,   comprados de obscuras fabriquetas  no interior.

Um dia, tomado por um surpreendente capricho literário, escrevera até um livro – que ninguém lera, nem mesmo eu.

Não sei até hoje por quê, mas eu tinha por ele uma empatia natural.  Realmente, gostava dele; do seu jeito, da sua “toada” , que me cativavam.

 

Naquele último domingo em que o vi,  convidou-me a visitá-lo, durante a semana, porque tinha uma coisa muito importante para me mostrar.  

Enfatizou o “importante”

Prometi que iria, já que teria prazer de gastar  algumas horas com ele.

Prometi. – Vou sim, tio; pode esperar; sem falta, durante a semana .

Eu era sincero, tinha toda a intenção de ir.

A semana passou, correu, voou,  nem me lembro bem em que bobagens ocupei meu tempo.-“ Bem” – pensei – “vou na próxima semana”.

Acontece que não deu tempo.

No domingo seguinte ele se foi.  Coração. De uma hora para outra. Sem aviso prévio.

Normal,  dissemos nós, tristes mas resignados – aos setenta anos de idade, cinqüenta anos atrás, morria-se facilmente de pressão alta, um coágulo, um aneurisma, uma artéria esclerosada, um “sopro”, o “coração fraco”. Tudo era pretexto.

Nós, o povão, só conhecíamos coramina, digitalis e sanguessugas. 

E quando  nada disso funcionava, é porque tinha “chegado a hora”.  Fazer o quê?

Fiquei com remorso, com uma sensação de culpa, uma sombra na alma; tinha feito uma promessa, tinha dado minha palavra...e falhara.  

Mas, como tudo na vida, aos poucos o choque passou, a lembrança esmaeceu,  quase se apagou, chegou à porta do esquecimento.  

Voltou à lembrança agora, 46 anos depois, porque o tio Felipe veio me visitar, em sonho, a noite passada.

Encontrei-me na mesma casa de então, reconstruída pela minha memória em seus mil detalhes; ele sentado na poltrona preferida, saboreando lentamente o interminável biscoitinho.  Não estava zangado pela minha falha; nem aborrecido. Apenas, um pouco mais triste.

Eu, que sempre tenho falta de assunto, imaginei como poderia me dirigir a ele:

- “O senhor está bem, tio; mais enxuto que da última vez....” ;   ou:

- “Como tem passado, tio? Aquelas dores no peito melhoraram?”

Besteira, pensei no sonho. O homem está do lado de lá há um tempão!...

Eh, sim – dizia ele – faz um bocado de anos que a gente não se vê... Você está mudado, está bem mais velho, quase não o reconheci. O que aconteceu com você?

- Andei pelos anos, tio; vivi minha vida; sofri meus revezes; ganhei e perdi minhas batalhas; enquanto você teve o privilégio de parar onde estava e sentar numa cadeira confortável, na calçada, tranqüilo, vendo os outros passarem.....

Falei isso quase com uma espécie de mágoa, de inveja, como se fosse  um bem que me tinha sido negado. 

Ele entendeu meu pensamento,  abriu lentamente aquele seu sorriso comedido,  apenas esboçado na fisionomia triste e olhou bem no fundo de meus olhos, lendo a minha alma. 

– “ O privilégio é andar, dançar, pular; é tropeçar e cair pela estrada e poder levantar de novo; não me inveje por estar parado, sentado na calçada, só assistindo; eu não sou mais nada: apenas poeira, sombra, lembrança;

Você ainda é vida, é luz – deve brilhar enquanto puder. ”  

Nunca tinha sido tão incisivo, tão determinado. Pensei um pouco para digerir as palavras e tomar o compromisso que ele oferecia.

- “ E o que tinha de tão importante a me mostrar, tio, naquela semana em que falhei?”

“Isto!” – ele disse; e puxou, não sei de onde – mas nos sonhos tudo é permitido – um grosso livro, parecido com um álbum de fotografias.  

“Sabe” - disse lentamente – “Já sabia que eu teria que ir embora logo e queria deixar-lhe uma amostra do que seria o seu futuro....”

Abriu e folheou lentamente comigo as páginas do álbum. Dia por dia, ano por ano, revi todo o meu passado.; coisas que tinha esquecido, fatos de que me orgulhava, cenas de que me envergonhava.  Uma vida. Tudo isto tinha ficado a minha disposição, mas eu não o tinha visto, porque não cumprira minha promessa.  

 

Só pude dizer: - “Obrigado, tio, foi um pensamento gentil aquele; mas não sei se teria sido um bom presente. Se naquele tempo, tivesse visto o meu futuro assim, em tantos flashes brilhantes, nada teria sido uma surpresa, nada teria representado uma conquista, um desafio,  ou uma derrota. Eu teria ficado sentado, esperando pelo que inevitavelmente viria. ..”

-“Tem razão. O que dá sal à vida é o inesperado, o que virá depois . Quero que continue com este mesmo entusiasmo, esta curiosidade de descobrir o que tem atrás da esquina.  Esta descoberta constante é a base da felicidade...

Ah, tem mais uma coisa: não perca tempo tentando ler aquele meu livro.

Era mesmo uma grande bobagem...”

       

Percebi que era um sonho, porque o tio Felipe levantou uma mão, puxou de lá de cima uma longa escada branca e começou a subir lentamente os degraus, ainda com o resto do biscoitinho na mão....

 

   


Autor: Romano Dazzi


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