Os meus balões vermelhos



 

 

OS MEUS BALÕES VERMELHOS

De Romano Dazzi

 

Acontecia todos os anos, entre os meus cinco e dez anos de idade, .

Eu morava na Itália, em uma cidade pequena, perto dos Alpes

Uma vez por ano a cidade se animava com uma semana inteira de festa.

Era chamada a “sagra” ,  uma alegre mistura de comemoração cristã (festejando São Pedro e São Paulo, protetores da Cidade),  festival de comidas (provavam-se frutos exóticos e esquisitos, como  bananas e  côco, cortados em fatiazinhas, a preços absurdos) e bailes populares, na praça principal..

 Vinha um circo, que apresentava um motociclista no globo da morte, dois leões, um elefante, dois ursos, três dançarinas de roupas sumárias (pelos padrões de hoje seriam roupas de colegiais) dois trapezistas e um palhaço. Custei a  descobrir que ele, o palhaço,  era o próprio dono do circo.

Junto, vinha também um parque de diversões. Uma instável montanha russa, montada com sarrafos pregados (na qual nunca me deixaram subir); uma armação com barquinhos de balançar,  que ameaçavam dar – mas nunca davam - uma volta inteira; uma plataforma  de chapas de ferro, com  carrinhos elétricos,  desses de dar encontrões; mas funcionavam só uns três o quatro,  porque os outros, todos os anos apareciam quebrados e ficavam encostados , para  dar efeito. Havia ainda um carrossel, com cadeirinhas presas por correntes, que rodavam bem depressa,  até que as pessoas  ficavam  girando quase na horizontal, gritando e rezando. E quando finalmente desciam, diziam  a maior mentira, que tinham adorado e que “no ano seguinte” iriam  tentar de novo...

 

Esta grande troupe não tinha caminhões, nem automóveis; só carroças antigas, puxadas a burros. Eles ficavam uma semana na cidade. Depois desmontavam tudo, carregavam as carroças e iniciavam a lenta subida para as montanhas, além das quais outras pequenas cidades os aguardavam para se maravilhar e aplaudi-los.

 

Mas na semana da sagra, era uma invasão; com eles vinha alegria, barulho,.música, luzes brilhando, confusão.  E muita gente, que não pertencia ao circo nem ao parque, mas que os acompanhava de longe e aproveitava o clima de euforia e de agitação

 

Ciganos de espessos bigodes  , com pesados relógios de bolso, de ouro maciço, presos aos coletes por correntes, também de ouro, passeavam lentamente pela praça, à caça de ingênuos “paesanos”,  nos quais pudessem  aplicar algum golpe maravilhoso.

 

Ciganas de grandes olhos pretos, cabelos encaracolados, rostos de traços marcantes,  lábios grossos, porte orgulhoso, cobertas até os pés – a única coisa que se via, além da cabeça -  por xales coloridos e amplas saias, mas sempre descalças , e de pés  sujos.  Elas agarravam qualquer um que passasse perto delas, e ofereciam, pediam, insistiam, forçavam, até que o infeliz “cliente”  lhes mostrasse  a mão, deixando-as ler,  pelo modesto preço de uma lira,  o passado, o presente e, maravilha das maravilhas , o futuro.

Concentradas nas  suas “visões”  perdiam a noção de tempo e espaço, e se agitavam, se descabelavam, falavam uma língua estranha, mistura de italiano, húngaro e esquisitos dialetos eslavos .

 

Para mim, era um milagre, um momento mágico, uma revelação. Sentia uma tremenda atração por este mundo  desconhecido e surpreendente que é o amanhã e pela remota possibilidade de vir a desvendar, na quarta feira, o que poderia me acontecer na sexta.

 

Os dois ursos pretos dançavam na praça, de noite, antes de o circo começar, por muito menos que uma lira. Dávamos uma “palanca” – dez centavos – e assistíamos em êxtase  à dança desajeitada e descompassada.

Mal sabíamos nós que os treinadores, para ensiná-los a dançar , os obrigavam a pisar em tampas de ferro bem quentes: assim, os pobres aprendiam tão bem que quando viam de longe alguma tampa,  já começavam a pular, de medo.

 

Meu pai nunca me deixou ver as dançarinas . “Três dançarinas três” , dizia um cartaz “A verdadeira dança do ventre” dizia outro. Mesmo sem ter a menor idéia do que seria uma “dança do ventre” – para mim ventre queria dizer barriga e esta era uma parte do corpo humano que não tinha graça nenhuma -   eu sabia, tinha certeza,  que este devia ser o top, o ponto alto de todos os  espetáculos da semana.  E me ficou uma curiosidade  insatisfeita, como se fosse  um livro de figuras, que você namora na vitrine, sabendo que nunca vai conseguir tê-lo nas mãos.

 

O motociclista se machucava sempre. Todo ano chegava  com alguma atadura – uma vez veio com uma perna engessada – e assim levantava a compaixão do público.

O “globo da morte” balançava  todo, quando a moto – de duvidosa origem e qualidade – começava a roncar ; o homenzinho rodava e rodava e rodava, enquanto o  povo assistia embevecido, assustado; e finalmente acabava dando a maravilhosa volta mortal; escutava-se então um  grande suspiro de alívio, um suspiro coletivo, longo, suado e quase asmático; tenho certeza que o motociclista  também suspirava aliviado, toda vez, agradecendo a bondade e a paciência de Deus.

Mas os aplausos coroavam  o alivio geral . Que herói !

 

Os dois leões mostravam-se a cada ano mais velhos e tristes; mais pelados, mais moles; pareciam ter perdido toda a  dignidade. Não eram como os leões de zoológico,  bem alimentados, escovados, com uma juba abundante. Nem como os das fotografias do National Geographic, soberbos, orgulhosos, poderosos. Estes davam pena. Ficavam quietos, mansos, sem reagir, sem ligar para o chicote do domador.  Eu cheguei a desconfiar que havia  uma certa parceria, um acordo, uma cumplicidade  tácita  entre eles e o domador, todos os três resignados diante das condições impostas pela vida.

 

O elefante também, estava velho e acabou não aparecendo mais nos dois últimos anos. Mas não fez muita falta .

 

Dos trapezistas nem me lembro. Não se esforçavam muito, porque a platéia era pobre e distraída .

 

Entre os tipos que apareciam, havia um homem estranho, que insistia em usar uma peruquinha pretíssima para esconder uma grande careca. Claro que assim acabava por chamar mais a atenção. 

Ele tinha viajado muito, tinha sido garçom a bordo de não sei quantos navios, nas rotas do oriente.

Usava o nome de guerra de  “baiadeira” – uma bailarina profissional da Índia – e quando chegava na praça, apregoava a qualidade e a excelência dos produtos que levava, para vender,  acomodados numa grande mala branca – a mala das índias, dizia. 

Falava um pouco de inglês e tinha muita prática e uma verdadeira paixão para fazer frutas cristalizadas. Quando abria a mala, os produtos apareciam arrumados, ordenados, apetitosos e limpíssimos. Eram grandes grãos de uva, cerejas e morangos,  brilhantes de açúcar caramelado; eram castanhas, amêndoas e avelãs recobertas de praliné, espetadas em palitos compridos; eram tâmaras tratadas com xaropes e mel; e junto, de graça, vinha uma raspadinha de gelo, com xarope de cassis ou de morango,  de groselha, de aniz ou hortelã , cores tão vivas que pareciam artificiais– e talvez o fossem, pensando bem.....Ah,  eu  teria  adorado experimentá-las. 

Mas meus pais não me deixavam nem chegar perto. - É uma coisa horrível -  murmuravam entre si - deveria ser proibida; quem sabe em que cozinha suja, com que talheres emporcalhados foram preparadas. Quem sabe por onde andou aquele gelo da raspadinha, depois que saiu do frigorífico (ninguém tinha geladeira, naquele tempo) . Não sente o cheiro de amoníaco ? Isso só pode fazer mal.  Nada de comer isso. Não, não e não.!

E assim, ano após ano,  eu pedia, pedia, mas acabava ficando só na vontade;

Aliás, pensando bem, eu adorava tudo o que me era proibido;

Agora, finalmente aprendi o jogo do contente: se meus pais me deixassem prová-las,  as coisas não teriam mais nenhuma graça. Em vez de me desiludir, fiquei na vontade...

Mas o gostinho do proibido continuou me fazendo cócegas pela vida afora.

 

São coisas de que ainda lembro muito bem, que me marcaram, me tocaram e me influenciaram  profundamente.

Todo esse povo, os ciganos, a gente do circo e do parquinho, o baiadeira, acabaram quando a guerra começou.

Foram varridos pelos exércitos que se engalfinhavam, foram tragados por um futuro negro, que chegou de repente, antes que eles pudessem adivinhá-lo, enxergá-lo.

 

Não havia mais espaço para eles, não havia mais lugar para aquela alegria pobre, simples, contida, feita de faz-de-conta, de cem luzinhas fraquinhas que aos meus olhos resplandeciam como faróis, da voz poderosa do dono do circo, aumentada por um megafone de papelão. 

- Venham, senhores, venham !

– Entre, respeitável público, aqui estamos para mostrar as maravilhas que trouxemos do fundo da Africa e da India – diretamente para a sua maravilhosa Cidade ......

Quanto mais gente entrar, mais animais se vêem!....

 

Tive certeza de que tudo acabaria depressa e tragicamente, o dia em que, na última vez que apareceram, o dono do circo me deu de presente dois balões de gás, vermelhos.  

 

Com medo que pudessem voar, agarrei-os, e  apertei-os com tanta força, que um deles de repente estourou; aquela linda bola vermelha,  leve e  brilhante  se transformou em um farrapo rasgado, feio, disforme.  Fiquei parado, sem fôlego, sem reação.  Nem consegui chorar.

 

Foi quando tentei diminuir um pouco a força com que segurava o segundo, que ele de repente escapou da minha mão, balançou um pouco, como se estivesse me olhando, e saiu voando para o céu. Aí, sim, eu desabei em um choro; chorei  como nunca, em desespero, enquanto ele sumia rapidamente lá em cima  .

 

Até hoje não sei se este acontecimento bobo foi alguma coisa simbólica, ou se foi uma premonição; mas naquele momento,  sem saber nem entender nada, eu percebi confusamente  que com meus dois balões vermelhos  estavam fugindo de minhas mãos  os sonhos de toda uma época, um modo de ser, de sentir, de viver.

 

A guerra, que chegava às nossas portas,  furaria sem piedade todos os balões de ilusão de todas as crianças e de todos os adultos, desfazendo os sonhos e mudando para sempre o sabor de todas as coisas. 

Adeus baiadeira, adeus circo, adeus parquinho; obrigado pelo que me deixaram.

Adeus ciganas, . Que bom, que vocês não conseguiram ver nem uma fresta do futuro.

Onde quer que estejam agora, deixem assim , não tentem adivinhar nada..

Deixem que os dias venham chegando, lentamente, para que possamos abri-los um a um, como se fossem os envelopes de mil cartas aguardadas ansiosamente , mas cujo conteúdo desconhecemos.; assim saberemos  o que vai acontecer , só no momento certo e não antes; e isso nos dará  força  para enfrentarmos mais serenamente  as inevitáveis surpresas que o nosso destino nos prepara.


Autor: Romano Dazzi


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