Também fui jovem



Também fui jovem.

de Romano Dazzi

 

Não faz muito tempo: apenas uns 60, 70 anos,  talvez.

Naquele tempo, vivia correndo atrás dos meus sonhos,  tentando imaginar de que cor seriam,  que formas tomariam. 

Porque um sonho, justamente por ser o que é,  é uma entidade intangível; uma sombra indefinida. Você os imagina, traça mil esboços em sua cabeça, acrescenta detalhes e  sons;  eles lhe servem para continuar no seu caminho diário, para não desistir, para tentar realizá-los.

Não acredite em quem lhe conta ter visto um sonho, tê-lo examinado,  estudado; com certeza está mentindo; ele terá visto uma realidade; confusa, incerta, nebulosa; mas jamais um sonho. Porque o sonho, quando finalmente o vemos, já não é mais um sonho; é algo que se realizou, bem ou mal, perfeito ou mal acabado; não podemos mais imaginá-lo; não podemos mais corrigir suas falhas e reinventá-lo.

Só nos resta colocá-lo na mochila, e correr atrás de um outro, novo, radiante, maravilhoso.  

Penso que hoje não se fazem mais sonhos como naquele tempo;  eram bobos, talvez; ingênuos, certamente; simples e coloridos, como me parece ter sido toda aquela época. 

Se queria uma bicicleta nova, sonhava com ela por seis meses, um ano ou até mais. Imaginava como ela deveria ser, nos mínimos detalhes.

Quando finalmente chegava, era mais bonita, brilhante e charmosa do que eu tinha visto nos meus longos devaneios.

Se queria passar de ano, lutava e me esforçava e sofria, tentando fazer entrar no pouco espaço de minha cabeça tantas palavras e números e fórmulas; quando, depois de longa espera, as notas chegavam, pareciam ter sido escritas pelos anjos; eram luminosas, esfuziantes; e  minha alma saía cantando, revigorada e feliz.     

Uma vez inventei de querer ter uma menina para namorar; todos os dias eu  mudava seu rosto em meus sonhos; desfazia e refazia sua imagem,  penteava seus cabelos de forma diferente, mudava a cor dos seus olhos, a sua maneira de andar e de falar.

Talvez  por esta razão, nunca cheguei a vê-la transformada em realidade.

Ficou sempre uma figura enevoada, cada dia mais esmaecida, indefinida e irreal, perdendo-se por fim no esquecimento. 

Até que, mais tarde, encontrei a minha figura ideal, presenteada pelo destino; mas esta é outra história....

 

Não se fazem mais sonhos como antigamente.

Um radio galena, por exemplo,  era um sonho a ser perseguido, imaginado, montado, estudado; e repetido, porque nunca se realizava; eu punha de lado tostão a tostão, até ter o bastante para encomendar as pecinhas na loja de radio, longe, na cidade grande.

Minha mãe balançava a cabeça, mas me ajudava a guardar os trocadinhos; no fim, a dura verdade vinha abalar minhas esperanças:  mais uma vez, este  rádio também não funcionava; com certeza, não tinha entendido alguma coisa, nas explicações dos populares livrinhos “faz tudo”.

Mas este sonho também, apesar de se ter transformado numa realidade amarga, tinha servido para alimentar-me por um inverno inteiro. 

Ou então, o sonho de um pequeno modelo de planador; peça por peça, serrando as madeirinhas de balsa com a tico-tico, ralando os dedos, lixando e furando e refazendo; horas, passando e repassando pacientemente o pincel de verniz,  e depois colando o papel manteiga, que insistia em não colaborar, que ficava mole demais, ou tão esticado que, acabado de noite, amanhecia rasgado.

Semanas de sonhos, pensando em como ele voaria, levando meu coração para um passeio inesquecível, naquelas asas quase perfeitas, de não mais que  30 centímetros....

E finalmente, no grande dia, depois de aguardar durante uma semana  inteira de chuva, enfim aberto ao descampado, correndo contra o vento, com o coração disparando, segurando-o com cuidado e firmeza, , até o barranco; e soltá-lo, livre no ar; e vê-lo elevar-se, lenta e  majestosamente....... e logo ficar como se agarrando no ar, perdendo o impulso, após apenas trinta segundos de vôo e dando um gracioso volteio de adeus, se estatelar no chão.

Diagnóstico: perda irrecuperável., morte instantânea.

Mas tinha voado! Era minha criação! Feito com minha mãos e com minha alma!.

Eis porque digo que não se fazem mais sonhos como antigamente.

Para que uma bicicleta, se podemos ficar confortável e preguiçosamente deitados dentro de casa?  

Para que pedalar na chuva e suar no caminho do morro, quando na academia tem um monte de bicicletas, prontas para o uso, impecavelmente alinhadas na frente dos grandes espelhos?

Para que se esforçar para conseguir boas notas se, mesmo com notas ruins, passa-se de ano, sem remorsos ou reclamações?

Para que montar um rádio galena, se ninguém mais sabe nem o que era?

E depois, em qualquer  lojinha de arrabalde se encontram rádios cada vez menores, mais baratos  e que funcionam de verdade.  

Quanto à  qualidade da música, bem,  este é outro assunto explosivo, no qual não quero entrar.

Tudo está facilitado; aeromodelos e helicópteros, motorizados, de controle remoto, com grande autonomia de vôo; não são baratos, mas são fáceis de comprar, e podem entrar em operação em cinco minutos.

Nenhum trabalho, nenhum desenho, nenhum diagrama para estudar, para quebrar a cabeça, para descobrir nele a alma, o espírito do brinquedo.

Deu vontade, o gênio da modernidade, do livre mercado, da globalização sufocante, põe na sua mão o objeto de seus desejos; pronto, completo, acabado. É só colocar a pilha do lado certo.

Não deu tempo de transformar a vontade em um desejo, de apurar o desejo  até transforma-lo em sonho; não deu tempo de  acarinhá-lo,  de agasalhá-lo; porque a realidade,  brilhante e poderosa,  irrompe pela porta adentro e  acaba com ele.

Cabe aos jovens desenhar o seu futuro; esboçar seus próprios sonhos, correr atrás do que querem – se realmente ainda têm algo para desejar, que a internet não traga pronto. .

Para nós, que estamos vindo de longe, em longa caminhada, resta falar do passado. Resta-nos reavivar as lembranças, hoje transformadas em rugosas e doces uvas passas na qual amadureceram os nossos sonhos.

Resta-nos misturar, naquela velha panela de barro, todos os ingredientes pobres e preciosos, que fizeram a nossa vida; e saborear a sopa saborosa, preparada demoradamente, que alimenta o nosso presente e nos mantém vivos..

Porque falar de futuro, seria orgulho e presunção....


Autor: Romano Dazzi


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