AMNÉSIA



 

 

 

AMNÉSIA

de Romano Dazzi

 

Não se lembrava de quase nada.

Ouvira os freios guinchando, sentira um forte empurrão, uma súbita, violenta dor nas costas, o baque surdo de seu próprio corpo jogado numa valeta; ficou com a vista embaçada e um gosto forte de sangue na boca. Perdeu os sentidos.

 

Quando abriu os olhos, estava jogado na última cama do que lhe pareceu ser um corredor -  uma enfermaria maltratada, escura, com  cheiro de desinfetante.

Nas outras camas, tão próximas que poderia tocá-las, cinco ou seis outros infelizes, queixando-se de dor, perdendo a consciência e recobrando-a a custo, numa difícil luta contra a morte, presente no ar.

 

Não tinha a menor idéia do que tinha acontecido.

A enfermeira, uma gordinha calma de olhos claros, estava ao seu lado quando ele acordou.  -“Finalmente! Bem vindo de volta entre nós!” – exclamou com um alívio que soou genuíno - “Pensamos que você não conseguiria! O negócio foi grave, viu?”

E começou um interrogatório cerrado:

“Como você se chama? Onde mora? Tem parentes? O que estava fazendo na beira da estrada, domingo retrasado, em plena madrugada? Você tinha bebido? Estava com alguém? Estava a pé? De onde vinha? Para onde ia?”

As perguntas pipocavam, apressando-o, apertando-o. Sua mente recusava-se a receber os questionamentos, a aceitá-los, a analisá-los.    

- “Não sei, não sei, moça, não me lembro não me lembro de nada, juro!” repetia ele aflito; foi tomado pela sensação de estar mergulhando em um tanque de água gelada.

Tentou desesperadamente agarrar-se a alguma coisa, agitando os braços, estendendo as mãos, mas não encontrou nada e percebeu – ou imaginou - que continuava a cair, afundando numa caverna escura e sem fim.

Estava perdendo novamente a consciência; sentiu que o tórax, as costas, as pernas, os braços, começavam a doer, a repuxar; e mil agulhas furavam o seu corpo todo. Desmaiou.

 

No prontuário, as anotações de praxe, frias e impessoais:

- Boletim de ocorrência n. 649

- Data da entrada : dia 16 de fevereiro de 2002 - horas 02h30min

- Homem, branco, idade aparente 30/35 anos, 1,70 m, 70 kg, inconsciente.

- Sem documentos, sem outros elementos de identificação

- Nenhum objeto nas roupas. Vestia calça e paletó pretos, sem sapatos, camisa branca rasgada.

- Supostamente atropelado por veículo, próximo ao km 22 da rodovia Castelo Branco, sentido Interior.

- Agentes: soldado Felipe S. (matr. 1744), cabo João G. (matr. 2347)

- Polícia Rodoviária Federal, destacamento de Barueri.

- Exame de dosagem alcoólica: negativo.

- Sintomas de ingestão ou inoculação de drogas químicas: negativo.

- Amplo hematoma na nuca, provável concussão cerebral; estado pré-comatoso. 

- Fraturas  em 2 costelas do lado direito, fratura exposta no cotovelo esquerdo.

- Diversas escoriações superficiais nos membros superiores e inferiores.

- Estado geral: estável.    

- Sob observação.   

 

Seguia uma longa relação dos medicamentos administrados, dia após dia

 

A enfermeira, imperturbável, anotou a nova data: 27 de fevereiro 2002

“O paciente tomou consciência às 19:35 voltando a perdê-la 20 minutos depois.”

“Suposta amnésia global traumática. Estado geral estável, inalterado”

“PS: O paciente não forneceu nenhum subsídio válido para a sua identificação.”

Haviam transcorrido dez dias, da internação. Dez longos dias!...

A enfermeira colocou o formulário numa pasta e saiu para a ronda da noite.

 

Vários outros dias passaram antes que ele começasse a responder aos estímulos aplicados pelos médicos. Aos poucos, uma espécie de semi-consciência foi tomando conta dele, trazendo-o a uma realidade enevoada, ainda distante da lucidez. 

A recuperação foi lenta, demorada, quase imperceptível.

Finalmente, um mês após o acidente, ele conseguiu levantar-se e ensaiar alguns passos.  

Era um fantasma; magro, amarelado, barbudo, cabeludo, despenteado, um típico paciente de um desconfortável hospital público.

Do ponto de vista mental o quadro não melhorava. O acidente parecia ter varrido sua memória, levando embora seu passado inteiro.    

Estranhamente nesse tempo todo, ninguém o procurara, ninguém dera pela sua falta. 

E ele continuou sendo apenas o “649”, numero que identificava o seu boletim de  ocorrência.  

 

Apesar do estado em que se encontrava, não lhe fugiam as conversas de quem passava ou ficava próximo.

Enquanto Maria, a enfermeira do primeiro turno,  silenciosa e azeda, executava suas tarefas com desagradável eficiência, Rosa, a enfermeira da tarde, era solícita, amigável, pronta a oferecer uma palavra amiga.  

Os médicos passavam todos os dias, rapidamente, para a simples visita de rotina.

Frequentemente eram obrigados a forçar a alta de algum convalescente, porque o hospital sempre precisava de mais leitos.

No caso específico do “649” depois de um mês, os tratamentos clínicos e cirúrgicos estavam concluídos. Daquele ponto em diante, na opinião deles,  só se poderia esperar alguma melhora através de um tratamento psiquiátrico. Qualquer tentativa de fazê-lo reencontrar a memória e reconstruir a psique perdida seria um esforço às cegas, de resultados incertos.

 

O “649” perguntava-se, cada vez mais frequentemente e com maior aflição, para onde seriam mandados os pobres, os miseráveis que sofrem de amnésia global, que não têm ninguém para cuidar deles e que, incapazes de se defender, fazem parte dos resíduos, recusados e afastados pela sociedade.

Um dia ouviu horrorizado que o único destino possível, no caso dele,  seria um manicômio.

- "Uma casa de saúde" - comentava um dos médicos, com um eufemismo que tinha ao mesmo tempo algo de insensibilidade e muito de tragédia – “um hospital psiquiátrico”.

 

Com o raciocínio que lhe restava, ele entendeu que se não se libertasse imediatamente daquela ameaça  nunca mais teria uma chance.

Quando a enfermeira da tarde passou por perto , ele sussurrou, com um fio de voz: “Rosa, estou fugindo....não diga nada a ninguém.....obrigado por seu carinho....quem sabe ainda nos veremos....”

Rosa devia estar esperando por uma decisão dessas, porque, em lugar de responder-lhe, passou-lhe um papelucho com o nome dela e o telefone do hospital; e despediu-se com um sorriso, que dizia: “quando precisar, procure-me...”.

 

Ele já tinha esboçado um plano; refugiou-se primeiro em um banheiro pouco usado, saiu por um corredor secundário, chegou à porta dos fundos; no caminho agarrou dois cobertores, vestiu umas roupas surradas que encontrou no vestiário, tirou umas poucas comidas da cozinha, enfim, pegou tudo o que encontrou; atravessou correndo trinta metros de terreno aberto e cinco minutos depois estava escondido no mato, a salvo; estava tenso e vibrante; agarrando-se à vida da maneira mais decidida e desesperada que podia. Estava livre!

 

Mas a liberdade tem seu custo: no caso dele, água corrente, comida, medicamentos, curativos, limpeza e troca – mesmo que rara – da roupa pessoal e de cama e um abrigo confortável durante a noite. 

Mas o chamado da liberdade e principalmente o receio do manicômio, possuíam uma força irresistível.

 

Assim começou para o “649” uma nova vida; uma fase dolorosa de aprendizado, em um ambiente desconhecido, no meio de uma sociedade indiferente ou francamente hostil. 

Sem dinheiro, sem documentos, sem memória, só conseguiria sobreviver à custa de muitos truques, inteligência e perseverança, num contínuo e perigoso jogo de gato e rato.  

Andou apressadamente durante o que lhe pareceu uma infinidade de tempo, ao longo do riacho que vinha do fundo do hospital.

Sentia-se cansado, esgotado; sabia que estava apenas começando a se recuperar, e a fraqueza não tardaria a vencê-lo, dobrando-lhe as pernas e impedindo-lhe de dar mais um passo sequer; mas não havia alternativa.

Passou sob diversas pequenas pontes que atravessavam o canal, mas não se deteve enquanto não se sentiu seguro, bem longe do hospital. 

Finalmente encontrou uma ponte mais larga, sob cujo arco achou um abrigo razoável. 

Os ramos dos salgueiros encobriam a passagem e cortavam o vento. 

Pôde enfim descansar. Adormeceu logo e teve um sono profundo e restaurador, sem os pesadelos que – agora lembrava vagamente - vinham perturbá-lo todas as noites .

Quando acordou, era noite funda.  A lua prateando as folhas, a temperatura amena, nenhum ruído.  Deixou-se ficar, preguiçoso, pensando em nada, absolutamente nada.

 

De manhã, acordou faminto.  

Comeu o pouco que conseguira trazer e saiu à procura de alguma oportunidade; algum pequeno serviço, talvez. Com isso, pensou, poderia sobreviver.

Resistia à idéia de sair invadindo casas e furtando comida.

Mas logo sentiu que as dificuldades seriam muitas e grandes.

Percebeu que o olhavam com desconfiança, algumas pessoas até com nojo; esgueiravam-se, afastavam-se, não respondiam, entravam apressadas com os filhos, batendo a porta de casa.

Ao passar diante de uma vitrine, descobriu seu aspecto lamentável: barba crescida, cabelo arreganhado.

Encontrou coragem para entrar numa barbearia; o dono estava sozinho e se assustou, mas ele atalhou rapidamente:

- “Bom dia, estou sem emprego, sem dinheiro, com fome; sei que meu aspecto é horrível, mas sou homem de bem” – disse de um fôlego só – “peço-lhe uma oportunidade. Se me cortar barba e cabelo, vou varrer e lavar a calçada e o seu salão todos os dias, por um mês...”

Foi tão convincente que o homem acreditou na sua boa fé. O fez sentar e em quinze minutos mudou sua cara. O “649” já era outro. Assim, poderia procurar trabalho, sem assustar ninguém.  O primeiro passo estava dado.     

Ainda havia o problema da sua identidade, daquela enorme lacuna, do vazio absoluto do seu passado.  Começou por escolher um nome: Lázaro - aquele que voltou da morte. E todos começaram a conhecê-lo por Lázaro.

Aos poucos, ajudado por pessoas que lhe deixavam fazer um trabalhinho ou outro, mesmo quando não precisavam, acabou encontrando vários caminhos, soluções simples, alternativas que lhe permitiam sobreviver.  

Era afável, amistoso, tinha sempre uma idéia boa, um comentário gentil, um gesto de carinho.

Já sabia onde se lavar – tinha que ser às cinco da manhã, antes que o povo acordasse, numa pracinha escondida onde jorrava um chafariz.

Tinha onde encontrar um prato de sopa quentinha todos os dias - desde que se postasse na fila e recitasse as orações do exercito da salvação. Lá, desistiram de ensinar-lhe os hinos, quando perceberam como desafinava.

Lázaro não precisava trabalhar demais; um dia aparava a grama de um jardim; no dia seguinte varria e limpava um quintal; ajudava no transporte de pequenos móveis, limpava algum porão, retirava entulho e – mais importante - conseguia dar sumiço nele.....

No restante do dia ficava na praça, a disposição de quem precisasse dele.  A noite esperava os clientes do restaurante e tomava conta dos seus carros.

Por fim, cansado, retornava à sua toca, debaixo da ponte.

O seu problema financeiro imediato estava resolvido.

Para o futuro, Deus providenciaria...

 

Mas voltava a pensar o tempo todo no que lhe teria acontecido e tentava inutilmente reencontrar o fio com o passado.

A cada dia, a necessidade de saber quem ele tinha sido antes e em que mundo vivera,  tornava-se mais forte, mais difícil de resistir.

Às vezes, parecia-lhe reconhecer  um rosto, uma casa,  uma esquina; mas eram apenas imagens soltas, impressões fugidias, que não conseguia ligar a uma realidade,  a uma seqüência de fatos.  Apenas flashes, criados talvez – assim pensava – pela sua fantasia, na ansiedade de reencontrar o passado.

Pois a mente de quem sofre de uma amnésia  traumática está constantemente criando e recriando realidades, só para descobrir, logo depois, que são todas apenas fantasias, sonhos;  mas recomeça logo depois a longa caminhada  para encontrar uma pista, uma ligação, uma ponte com o jardim encantado do passado. 

A amnésia é, de certa forma, um sortilégio; uma mágica malvada de alguma bruxa invejosa, que nos condena à ignorância completa do passado, qualquer que ele tenha sido.  Um castigo cruel – uma pena pesada demais.

 

Finalmente, um dia – já haviam passado três meses - resolveu telefonar à enfermeira.

- Bom dia, Rosa, aqui é o Lázaro...

- Lázaro? Desculpe, não conheço nenhum Lázaro...

- Oh, desculpe você, Rosa; sou o 649, lembra-se?

- O 649? Que surpresa! Então agora é Lázaro? Como está você? Então já descobriu algo da sua vida?

- Não; infelizmente, minha memória não voltou, nada me liga ao passado, continuo na escuridão total. Queria saber se apareceu alguém procurando por alguém como eu,  nestes meses...

- Lamento muito, 649, mas não apareceu ninguém... Estou com saudades de você; porque não veio nos visitar?

- Bem que eu teria gostado, mas tinha medo que você não se lembrasse de mim...

- Como poderia esquecer-me de você 649 – ou desculpe, Lázaro. Você é inesquecível;

Sua passagem por aqui me ficou bem marcada....  

- Temia também que chamasse a Polícia...

- A Polícia? Mas por quê? O que você fez, além de perder a memória? Lembrou-se de ter cometido algum crime?

- Não, não; nenhum crime, Rosa. Se alguém cometeu um crime, foi contra mim.....

_ Ainda,bem. Mas, em que posso ajudar?

-  Gostaria de encontrar com você; trocar duas palavras – ou quem sabe vinte, ou duzentas....

- Bem, neste caso, acho que vamos ter muito que conversar, 649. Eu também tenho

  muito a lhe contar...Espero-o no sábado a tarde. É meu dia de folga.

  Vamos aproveitar para bater um bom papo....E saiba que este telefonema me deixou muito feliz!

 

Assim, entre aquela terça feira, e o sábado seguinte, Lazaro não conseguia conter a vontade de encontrar a Rosa; o desejo de contar-lhe a história dos três últimos meses, recheados de novidades e de aventuras, era enorme. 

Afinal, Rosa tinha sido a única testemunha de sua ressurreição....

 

E de repente, pensou que sabia mais coisas a respeito dela, do que sobre ele mesmo.

 

Finalmente, o sábado chegou.

Não se poderia dizer que o Lázaro estivesse bem vestido; as poucas roupas que tinha recebido, usadas, puídas, largas ou estreitas demais, não se ajustavam ao corpo dele, magro, mas robusto e bem desenvolvido. 

Escolheu as “menos feias” e se apresentou na pracinha, com uma rosa vermelha na mão, tímido como um colegial de quinze anos. E ele, segundo lhe diziam, devia andar pela casa dos 35...

Surpresa, Rosa agradeceu com um dos seus melhores sorrisos.

Usava um gracioso vestidinho em tom rosa, com pespontos brancos; a flor combinava perfeitamente com a cor do vestido, como se tivessem sido escolhidos juntos; ela estava corada de calor. Ou seria de emoção?

Lázaro notou também que Rosa estava com um penteado diferente, caprichado, que ele nunca tinha visto; sentaram-se timidamente em um dos bancos, à sombra.

Rosa, na verdade, só queria ficar junto dele, ouvindo-o falar;  não tinha muita coisa a contar – sua vida era uma enfadonha rotina. Em compensação, Lázaro parecia um foguete; estava excitado, agitado, querendo impressioná-la, esperando que ela o apreciasse, que gostasse dele.

Ela foi ficando contagiada, aos poucos, pelo entusiasmo dele; e seus sentimentos foram navegando, da condescendência à simpatia, da simpatia à admiração e desta, para um estranho sentimento, que ela nunca tinha sentido por ninguém; disse timidamente para si mesma: puxa, que boba sou, eu estou gostando dele!... estou gostando muito dele! E logo depois, chegou ao diagnostico obvio: puxa... estou mesmo apaixonada!..      

Por sua vez, Lázaro também estava encantado com a moça;. mas ele sabia, muito antes do encontro, que estava perdidamente enamorado...talvez desde o primeiro momento em que abrira os olhos, naquela enfermaria escura.

Ainda tentou argumentar que poderia ser apenas um sentimento de gratidão, de reconhecimento pelos cuidados recebidos; mas viu logo que não era nada disso.

Ela, de sua parte, ficou surpresa e assustada com a descoberta.

Era a primeira vez que lhe acontecia e certamente seria a única.  

Para a mulher, amar é um sentimento supremo, muito profundo, sincero, total.

Com o amor, a mulher se entrega,  se doa completamente, de corpo e alma, com todas as suas forças, sem enxergar mais nada.

Ela iria até o fim do mundo, se ele pedisse. .

O homem, em vez,  percebe primeiro um sentido glorioso de possessão, de domínio; a mulher aparece-lhe frágil e vulnerável, necessitando de proteção, de auxilio, de carinho.  E ele faria exatamente isso, com todas as suas energias: protegê-la, levá-la consigo, para descobrirem juntos os infinitos caminhos do mundo.

Só ele e ela. Mais ninguém. Pelo resto da vida. Para sempre.

Ele também iria até o fim do mundo, se ela pedisse.

 

Haviam voado, os dois juntos, sem o saber, cada um atrás de seus pensamentos. Descobriram-se surpresos, acalorados, as mãos tremendo, suadas; toda uma gama de sensações novas e maravilhosas subindo do coração à face, tão próximos como nunca mais estariam, tão ligados que ninguém conseguiria separá-los – jamais. 

Não poderia acontecer outra coisa, neste “script” que se repete todos os dias, pelo mundo afora, quando dois seres se encontram e se reconhecem. Selar com um beijo este acordo tácito.

Lázaro parou de tagarelar, os olhos dela tornaram-se mais profundos, marejados, brilhantes; beijaram-se.

E tudo sumiu, tudo se foi. Não estavam mais ali. Estavam longe, ambos no fim do mundo, que é onde se refugiam os corações verdadeiramente apaixonados.  

Onde não há espaço para nenhuma mentira. Onde cada um se mostra exatamente como é.

Mas existe isso?

Ainda se pode esperar que os seres humanos, desiludidos, desencantados com tantas coisas horríveis que acontecem à sua volta, num mundo perigoso e bizarro, trágico e ridículo, ainda se encontrem, e se apreciem e se fundam tímida e profundamente, esquecidos de tudo e de todos, respondendo somente à sua parte mais ingênua, espontânea e  carinhosa?

Ou - colocando os pingos nos “is” – sem pensar, nem de longe, em “ir para a cama”, em transformar o mais profundo entre os sentimentos humanos, em um ato mecânico de simples posse, como o de qualquer animal desprovido de alma?      

Seja como for, talvez os nossos heróis sejam diferentes de tantas pessoas debochadas e vulgares – o que hoje é considerado normal -  que se encontram em qualquer esquina.

Talvez por isso mesmo, sejam nossos heróis. Mais profundos. Mais puros.

Como nós mesmos gostaríamos de ser.

 

Bom, toda esta explicação durou muito mais que o beijo deles.

Só que o beijo abriu uma catarata de perguntas recíprocas; uma vontade de saber mais, de conhecer-se mais, de compreender-se mais.

Rosa contou sobre seu trabalho, que não deixava margem a nenhum sentimentalismo e que transformava aos poucos moças sensíveis em blocos de pedra duras e afiadas;,falou da mãe, carinhosa e dedicada, mas sempre aflita, preocupada, estressada; falou do pai, um homem bom, um pedreiro capaz e esforçado, incapaz de cobrar direito o seu serviço; e por fim falou do irmão, um ano mais velho que ela, ainda solteiro, bonzinho, mas mandão, pendurado na casa paterna e com idéias medievais quanto à liberdade e independências das mulheres – mormente irmãs....

Achou que não seria o momento oportuno para colocar na mesa seus desejos, os sonhos, as idéias, com as quais confusamente construía um futuro feito de esperanças e de  paixão...Mas pelo que andava em seu coração nesse momento, poderia falar por uns dois dias.

Lázaro, pelo contrário,  não tinha nada a oferecer, salvo os últimos três meses de vida, as dificuldades que superara, a complicada adaptação a um mundo novo; uma experiência estranha e apavorante, da qual não se livraria facilmente. .   

Nunca sentira de maneira tão profunda a magoa por não saber nada de seu passado.

Assim como estava, sem nome, sem passado, não poderia continuar. Não poderia nem pensar em casar com a Rosa. Como chegar ao altar e ouvir do padre:

- Você, 649, aceita  receber de livre espontânea vontade como sua legítima esposa....

Não. Teria que  descobrir seu passado, antes de qualquer coisa.

E prometeu a si mesmo que iria buscar todo o seu passado, onde quer que ele estivesse, à custa de qualquer sacrifício, para entregá-lo, fosse ele qual fosse, como um presente especial, à Rosa, a “sua” Rosa.

Estava cavalgando muito à frente do seu momento; estava abusando do futuro.  Calma, Lázaro – ou como quer que você se chame: respire fundo, organize-se, racionalize suas ações. Só assim você conseguirá as respostas. 

 

Depois daquela tarde, que ficaria como um marco memorável na sua desfalcada memória, Lázaro iniciou um trabalho sério e metódico de pesquisa.

Conseguiu a adesão de vários jovens, aos quais contara sua história, e todos se puseram a procurar indícios ligados ao seu desaparecimento.

Ele mesmo, sentado num precário banquinho no salão do barbeiro, manobrando com perícia um velho computador, começou a esquadrinhar dezenas de sites na Internet.

Admirou-se de sua familiaridade com a informática e isto foi o estopim de uma pesquisa mais profunda e melhor direcionada.

Havia excluído, analisando suas mãos e os pés, as profissões manuais, que exigem esforço muscular e atividade física intensa.

Excluiu assim operários, mecânicos, trabalhadores de obras; depois excluiu agricultores, marinheiros, pescadores, porque  não tinha a pele escurecida e curtida de quem vive ao ar livre.  

Também não eram mãos de músico,  pianista, ou violinista, que exibem profundas marcas de horas, dias, anos de exercícios repetitivos.

Por outro lado, qualquer instrumento de sopro teria deixado inconfundíveis sinais nos lábios, nas faces.

Seus músculos não tinham a tonicidade e o desenvolvimento dos de um atleta.

Sua maneira de andar era elástica, mas dentro da normalidade. 

Um pouco curvo para frente, talvez; seria um profissional liberal, de hábitos sedentários – um bibliotecário, um escriturário, um empregado de banco?

Quem saberia? 

De vez em quando, um indício, um relâmpago distante, um pormenor, chamavam a sua atenção, dando-lhe um sopro de esperança.

Depois se apagava, voltando ao de sempre.

Nada lhe despertava o carinho ou aquela ligação afetiva que vêm do habito, para com certos objetos, certos gestos, certos atos corriqueiros e diários. 

Sentia-se perdido, solto, à deriva; mas isso o incentivava na sua pesquisa, enquanto ia  descartando alternativas.

 

Outros pontos de interrogação eram as circunstâncias de seu acidente – se é que fora realmente um acidente.

Perdeu dois dias inteiros examinando palmo a palmo as proximidades do local em que havia sido encontrado, com a ajuda dos dois guardas que o tinham resgatado.  Não encontrou nenhum sinal, nenhuma pista, nenhum objeto que pudesse ser relacionado com o acidente.

A delegacia sabia menos ainda. Não havia precedentes nem ligações. 

 

Dizem que o que regula toda a vida do ser humano é sempre a fatalidade – uma entidade abstrata, sem rosto e sem forma; cega e surda, ela joga seus dados e decide o nosso futuro, sem paixões, sem envolvimento.

Eu prefiro acreditar que seja o destino, a formar nosso caminho; uma entidade muito mais ativa, capaz, cheia de fantasia, de paixão e de humor; ele conhece passo a passo tudo o que nos aconteceu; ele já sabe, momento a momento, tudo o que vai nos acontecer.

Fica jogando a esmo (ou assim nos parece) ao longo de toda a nossa vida, pitadas dos mais diversos temperos; e assim coloca sabor, surpresa e encantamento – junto com as inevitáveis tristezas e decepções – em tudo o que fazemos , em tudo o que somos. Dá guinadas imprevisíveis, freia repentinamente nossas corridas,  joga-nos para fora da poltrona em que estamos refestelados,  empurra-nos para cima ou para baixo. E o faz nos momentos mais inoportunos, da maneira mais estapafúrdia. Por isso gosto tanto dele.  Nós somos o que ele faz de nós.

 

E foi por uma dessas “coincidências” cuidadosamente preparada pelo destino, que Lázaro começou a desatar o nó do seu passado.

 

A família da Rosa era composta por Pai, Mãe e um irmão mais velho. Como sempre tem sido, tradicionalmente, o irmão mais velho é o guardião da virtude da irmã menor. Não importa o número de moças ele tenha encontrado, com quem tenha estado, ficado,  namorado ou que tenha levado para a cama.

Ele se acha dono do destino da irmã, responsável pela sua honra e pela sua incolumidade. É questão de princípio.

Não lhe ocorre a dualidade, a contradição de seu comportamento.

Chega-se a pensar que seja um traço atávico, genético.  

Mulher é mulher; mas irmã é outra coisa. E não se discute. 

Severino, o irmão, era absolutamente contrário a tudo o que a irmã fazia.

- “Onde já se viu” –dizia ele,  agitado  - deixar uma moça sozinha, na cidade grande, à mercê de ladrões, assassinos, estupradores, loucos varridos? Como você pode permitir, Pai, que essa coitadinha fique tão exposta, tão desprotegida? “.

- “Essa coitadinha” – respondia o Pai – tem 32 anos, já está crescidinha e é capaz de escolher o seu destino. Não seria justo segurá-la dentro de casa, fazendo tarefas domesticas e deixando de aproveitar a vida e a profissão, quando tem tantas coisas  para ver e fazer, lá fora!”

- “Mas se acontecer alguma coisa ruim com  ela, você me paga!” ameaçava o rapaz.

- “Como se fosse eu o culpado! Deixa de ser bobo, rapaz, vê se cresce e olha o que está em volta. E a propósito, você também precisa pensar em se mandar daqui. Estou cansado de ter que cuidar de suas necessidades! Pega umas brasinhas e vá fazer seu inferninho nalgum outro lugar!

Este era o tom das discussões, até aquele domingo, em que Rosa apareceu  em casa, sem avisar.

Foi só a mãe olhar para ela e desabar na aflição:

“O que foi, Rosa, como é que está aqui? O que aconteceu? Está doente?

 Oh, meu Deus, ela está doente!  Essa não; eu não agüento!

 O que está sentindo, minha filha?  Está tão magra, tão pálida!

João, faz um café, bem forte!

 A minha menina está com ar de cansada!

Está grávida?

Sim, com certeza está grávida. Não tem dúvida; de quantas semanas?

Quem foi? Quem foi o covarde que te infelicitou?

Vou chamar todos os homens da família e mandar persegui-lo até o fim do mundo. Não adianta ele fugir, ele se esconder. Eu vou encontrá-lo e fazer-lhe pagar todos os pecados!  Homens criminosos! São todos iguais! Um pior que o outro! É só verem uma cara bonita, um rabo de saia, que perdem o controle e abusam!. Foi pela força? Diga, diga-me, criatura! Conta tudo para a Mamãe!.... “

 

Quando a mãe finalmente puxou o fôlego, Rosa pôde dizer suas primeiras palavras: - “Não Mãe. Eu estou bem, nunca estive melhor, até engordei um pouco; estou indo bem no trabalho, não tenho problemas, e estou muito satisfeita Não estou grávida, não tenho ninguém, ou melhor.... não tinha até ontem... oh, Mãe, estou tão feliz!...”

 

E contou o seu relacionamento com o Lázaro, como tinha acontecido, as conversações;  contou tudo, menos o beijo...  

A mãe tranqüilizou-se, mas só por um instante. Imediatamente recomeçou:

- “Quem é ele? Como se chama? É de boa família? De onde vem? O que faz? “   

Não teve como esconder ou mentir. Rosa explicou que ele era um belo rapaz, forte, sadio, inteligente, um pouco mais velho que ela, uns dois anos, talvez,  .

- “Mas” - , acrescentou bem depressa, tentando dar  menos importância ao fato –      “ele sofre de amnésia”.

- “Como “amnésia”? O que é? É grave? Isso pega? Demora muito para sarar?”

- “Não se lembra de nada, mãe – não sabe quem é,  nem de onde vem,  nem se tem família, nem como chegou ao hospital. Mas é tão carinhoso, ao bonzinho!..”

- “Puxa,  filha! Você não podia ter escolhido outro? Logo um pobretão, um avoado, um infeliz que nem sabe quem é? Você é mesmo boba, filha! Não sei o que faço com você!....”

O Pai e o irmão juntaram-se à queixa da Mãe.  O clima ficou pesado.

- “Qualquer um é bonzinho” – comentou o pai – “quando está em dificuldades, quando está por baixo. Mas quando as coisas melhoram, quando se sente dono da situação, torna-se pior e começa a querer mandar na vida dos outros.”

- “Mas o Lázaro não é assim – respondeu Rosa – eu garanto que ele é uma pessoa boa, é carinhoso, inteligente, competente....”

-“Competente para o que?” – retomava o Severino com raiva – “O que é que ele sabe fazer? Podar sebes, limpar jardins, lavar calçadas? Acorda, sua boba, não vê e que está se metendo?”.

Rosa previra uma reação negativa; mas achou excessiva esta tempestade.

Afinal, ela não era uma descabeçada e sabia muito bem o que fazia.

Não teve outro jeito,

Pegou suas coisas e sem abrir a boca despediu-se friamente de todos.

Precisaria algum acontecimento muito grave, para que a atmosfera voltasse ao normal. 

- “Coisas de família. Todo o mundo tem” - pensou enquanto tomava o trem para voltar ao hospital.

Mas bem no fundo de sua cabeça, lamentava o acontecido. Talvez tivesse alguma outra saída. Talvez se tivesse mentido um pouquinho...

Mas Rosa não era desse time. Era orgulhosa, sincera, segura de si.  E pessoas assim sofrem mais, durante a vida toda.  

 

 

 

 

Voltamos um pouco no tempo.

Esta capacidade de voltar, de refazer o caminho, de corrigir as premissas, para que tudo comece a correr como esperamos, é uma vantagem tão grande, dá uma sensação tão satisfatória, que a gente acaba abusando.

O romance e a fotografia têm progredido paralelamente. Hoje numa foto você pode corrigir tudo, acrescentar e retirar pessoas, mudar a cor e o feitio dos olhos, incluir pormenores, alterar o ambiente inteiro.

Porque não posso fazer isso num romance?

 

 

 

São Paulo, 15 de fevereiro de 2002

Num amplo apartamento dos Jardins, a poucas quadras da aristocrática Faria Lima, um grupo de alegres ricaços reúne-se para mais uma noitada de jogo clandestino. Conhecem-se apenas de vista,  mas tiveram que se identificar na portaria.

A enorme roleta, montada numa mesa especial,  atrai-os com mais força que as mesas de 21, bacará, chemin de fer.

Numa só noite, milhões passam de uma mão a outra, de uma conta bancária a outra.  “Faites vos jeux, Messieurs et mesdames”....

Façam o seu jogo...Rien ne va plus....Nada vai mais.... les jeux sont faits....Jogos feitos..... Dix-sept, rouge, impair.....Dezessete, vermelho, impar....O banco paga......

E continua repetindo: Façam seus jogos....Faites vos jeux.....faites vos jeux.....faites vos jeux....como um disco quebrado, como um pássaro noturno, com o mesmo tom, a mesma cantilena.

Os jogadores, abobados, repetem mecanicamente as apostas, e perdem e continuam a esperar uma virada do Destino. 

Sempre ele, o Destino – pronto para mudar as cartas na mesa, mas avarento na concessão de uma chance qualquer; principalmente àqueles que gostam dele e que se recomendam, esperançosos e confiantes, às proezas que só ele pode fazer.

Um grupo de quatro amigos, todos na casa dos 35, bem falantes, bem vestidos, bem apessoados, joga tudo, até o último centavo, numa rodada suicida, de resultado impossível.

Não jogam em um número; nem par nem impar, nem vermelho nem preto, em nenhuma das três colunas verticais , em nenhuma das doze linhas horizontais.

É uma jogada múltipla, capaz de derrubar qualquer banca.

Trata-se de acertar o zero, três vezes seguidas.

Jogam assim porque estão alucinados, ou bêbados, ou os dois.

Juntaram forças, vão tentar. Ou tudo ou nada.

A excitação da aposta, do salão, da mesa, as exclamações das mulheres que estão torcendo em volta deles, a própria voz mecânica do “croupier” a vertigem do giro da roleta, os saltos desordenados da esfera de marfim, tudo conspira contra eles.  Sentem-se poderosos, invencíveis.

Les jeux sont faits... Rien ne va plus ....Nada vale mais......Zéro!!!!.... Zéro, messieurs et mesdames. O Banco paga!..

Foi o primeiro lance. Sorte? Fatalidade? Destino?  Façam seu jogo... façam suas apostas, senhores. E os rapazes repõem tudo o que  ganharam no zero.

A roleta vira, a bolinha é lançada, salta, pula, levanta e cai, é jogada novamente adiante, tropeça, cai, sobe.... enfim, pára :  um instante de suspense, e: ”Zéro!!..... Zéro! Impossible! Incroyable!... Impossível, incrível!  Zero pela segunda vez!”

Enquanto os rapazes jogam novamente tudo no zero, todo o mundo corre para a mesa da roleta, largando os outros jogos.

O momento é por demais emocionante; faz-se um silêncio absoluto.

O suspense está no limite.

O “croupier” dá um impulso para a esquerda na roleta e em seguida, passados os olhos pela multidão, joga com força a bolinha para a direita,  pela cava  da mesa, sob o corrimão.

Todos já viram este movimento, todos já acompanharam, com maior ou menor interesse, o desenrolar desse acontecimento corriqueiro e apaixonante. 

Mas este é um momento especial; pode ser quebrado um tabu, pode ser a vingança, a chance, que todo jogador alimenta dentro de si, de quebrar a banca, de arruinar o cassino,  sugador de riqueza.

Mais alguns segundos; a roleta vira, a bolinha pula, pára um pouco, torna a correr, volta a parar, é jogada de novo para longe, desce para uma casa, sai, entra em outra, sai novamente, duas, três vezes; finalmente pára, mas a roda vira veloz e não permite que se leia o número.

Mais dois, três segundos, que duram uma eternidade - e pára.

O croupier está atônito, incrédulo, incapaz de falar.

Finalmente:- “Zéro!!, Zéro! Pela terceira vez seguida! Nunca aconteceu, nunca vi!” -.grita sem controle. 

Alguém ganhou uma fortuna; o cassino perdeu tudo; e ele perdeu o emprego, com certeza, mas ainda não se deu conta disso.     

Os quatro rapazes saem festejando, pegam o carro e eufóricos e excitados como estão, rodam a esmo pelas ruas.   Voltarão mais tarde para pegar a bolada.

Por agora, devem liberar a adrenalina acumulada na última hora de tensão.

 

 

A Polícia tinha sido alertada, havia tempos, sobre a existência dessa casa de jogos clandestina  e conhecia bem  a sua exata localização.

Coincidência ou não, o Delegado  Dr. Fernandes preparou uma ação coordenada para aquela  mesma noite.

Às onze e meia o  investigador chefe da Delegacia dos Jardins, Luiz de Lima,  invadiu a portaria, colocou o vigilante e o porteiro numa viatura e cortou todas as linhas de telefone, internas e externas. 

Não deu a ninguém o tempo de reagir. 

O Delegado em pessoa comandou o grupo que irrompeu no apartamento do décimo andar. 

Encontrou lá pessoas importantes, com as quais não esperava se defrontar.

Apesar de todos os cuidados, dez minutos depois o Dr. Fernandes começou a receber  telefonemas gentis, mas firmes e insistentes, solicitando a liberação imediata de diversos personagens de peso.    

- “É rotina” – dizia o  delegado, conformado – “não sei porque não liberam logo o jogo de uma vez; só dá trabalho inútil, papelada, constrangimentos, perda de tempo; se permitisse o jogo, todos faríamos uma grande economia e eu poderia ficar em casa, de chinelo, vendo televisão.”..

Todos foram identificados, e os seus dados pessoais anotados - em folhas soltas. 

Alguns foram liberados imediatamente; o flagrante só existe se a pessoa for pega com as fichas na mão, apostando e com a roleta em movimento.

Mas todos afirmaram que estavam só olhando, ninguém estava participando do jogo.

Que jogo? Ninguém sabia que havia jogo; não era  uma reunião de beneficência?.

Nunca viram uma mesa de roleta e nem faziam idéia para que servia e como funcionava.

Ninguém foi detido, nem mesmo o pessoal de serviço.

Não havia lugar na Delegacia, para prender tanta gente.

Todos prometeram, e pés juntos, que iriam depor , na semana seguinte, quando seriam chamados – “mera formalidade, excelência” - arriscou o Delegado.

O incidente foi logo encerrado. 

O investigador chefe, Luiz de Lima, porém, recolheu e levou as anotações da portaria.

 

 

A pouca distância dali, quase à mesma hora, acontece um assalto.

Dois delinqüentes, provavelmente drogados, gritando e ameaçando com armas,   rendem os rapazes; basta um movimento errado dos que se encontram no banco dianteiro, para que os criminosos disparem dois tiros certeiros, à queima-roupa; jogam os corpos na rua e partem, dirigindo o carro em alta velocidade. Ninguém viu nada; a policia técnica não tem elementos.

É possível, pensando agora, que o assalto tenha sido encomendado pelos proprietários do cassino, mas não há como ligar o acidente ao jogo da bisca clandestina. Talvez com a cumplicidade da polícia, o silêncio desce sobre o fato.

Mas ai, é novamente o destino que está dando as cartas. Os assaltantes tiram dos dois rapazes tudo o que têm, batem neles, agridem-nos.

Na Castelo Branco, antes de chegarem ao Posto da Polícia Rodoviária, os rapazes reagem, inicia-se um corpo a corpo; na luta desigual, um deles é jogado do carro a toda velocidade, e cai na valeta, ao lado da estrada.    

O carro prossegue, enveredando pela Estrada dos Romeiros, rumo a Santana do Parnaíba.

Numa daquelas curvas estreitas, acaba despencando  na represa.

Ninguém viu ou ouviu nada.

Os ocupantes do carro estão mortos, o carro afunda logo, em mais de dez metros na água parada, fétida e fica enterrado na lama e na sujeira do fundo.         

 

 

 

Parte dos acontecimentos ficou clara através dos depoimentos dos porteiros, do pessoal que trabalhava no clube, de jogadores anônimos.

A polícia conseguiu o nome dos quatro “felizardos” que desbancaram o cassino. Encontrou os nomes dos   primeiros dois,  assassinados nas proximidades da Faria Lima e identificados naquela ocasião.

 

Faltava pouco, agora; uma grande mancha de gasolina apareceu a montante da represa de Santana e as sondagens revelaram o carro submerso.

Os três corpos foram resgatados; todos os documentos estragados, absolutamente ilegíveis; dois corpos eram dos criminosos, já condenados por outros crimes; o terceiro só podia ser um dos dois rapazes identificados juntos, na portaria, naquela fatídica noite.

Deveria haver um sobrevivente: seria o João Cortez de Lima, um play boy conhecido, recentemente desaparecido, ou o  Rafael Benedito de Oliveira, que administrava em Barretos uma próspera fazenda de gado? 

As investigações revelaram que o desaparecimento do João tinha sido comunicado à Polícia, mas ninguém tinha dado parte da ausência do Rafael,.

Ele estava programando uma viagem de estudos aos Estados Unidos, e todos pensaram que ele estaria lá. 

 

Mas enquanto a Polícia prosseguia lentamente suas averiguações, Rosa estava consumindo-se em duvidas e contradições. 

Sua amiga Maria, a enfermeira do primeiro turno, apesar das aparências era uma moça de sentimentos profundos e entendeu em parte o que estava acontecendo à Rosa.  Decidiu oferecer-lhe, indiretamente, um apoio; e a chamou para tomar uma xícara de chá.

- Como vai minha amiga tristonha? – perguntou sem rodeios

- Muito pior que tristonha – retrucou Rosa meneando a cabeça – fiz uma coisa que nunca tinha feito antes e que nunca pensei vir a fazer: armei uma briga com a minha família inteira. Estou desolada; não sei o que fazer”.

Maria estava disposta a ouvir tudo; e ao cabo de quinze minutos, estava a par do que estava acontecendo.

- “A briga com a minha família colocou um freio aos meus melhores sentimentos. Foi uma verdadeira ducha fria – e reconheço que eu bem que precisava disso.”

- “Mas foi tão ruim assim? Digo, seus familiares não entendem que você possa ter um sentimento mais profundo que as todas as outras circunstâncias juntas?”

- “É justamente por entenderem isso, que  a briga começou; aliás, a briga foi com meu pai e meu irmão; Mamãe foi compreensiva, mas tentou, como sempre faz, me mostrar o caminho melhor.”

- “ E você o que decidiu?”

- “Estou na maior confusão; de um lado,  não posso deixar de reconhecer as razões deles; eu estava cometendo uma loucura, fazendo algo que poderia trazer conseqüências graves  para toda a minha vida”.

- “É claro, menina; mas se tem amor, não pode deixa-lo de lado; não se sufocam tão facilmente os sentimentos profundos.”

- “É isso que ninguém entende: nunca amei ninguém; não deste jeito; não inteiramente, completamente, sem limites; e ele me ama também, tenho certeza!...”

- “ Para uma pessoa séria, honesta, interessada em construir uma vida certinha, este deve ser um problemão, Rosa!...”  

 O que faço, Maria? Largo tudo, fecho-me na minha concha, renuncio ao amor do Lázaro, só porque ele é um desmemoriado?”

“Desmemoriado, sem emprego, sem documentos, sem passado, sem nada que indique um futuro razoável....  é uma escolha tão perigosa que não saberia lhe aconselhar nenhuma alternativa...”

“Mas ele me ama, tenho certeza..”

“ Sim, e você tem um bom emprego, e pode sustenta-lo pelo resto da vida, não é?”

Rosa começou a chorar.

“Quer mesmo um conselho, amiga?” – Disse Maria, encerrando a conversa.

 “Sim, quero! -  respondeu Rosa, readquirindo as esperanças.

“ Corra atrás do seu coração; vá aonde ele a levar, escute sua voz.

  Mesmo que todos a critiquem e alguns a enganem, ele não a trairá, nunca!”.  

Enxugando as lágrimas com a manga do avental, Rosa agradeceu.

Estava decidida. Não voltaria atrás.

Mas sabia que a estrada não seria fácil.

 

 

Outra pessoa preocupada com a coisa toda, era o Luis de Lima; os dois nomes não lhe saíam da cabeça,  e resolveu  arriscar. Estava convencido que o duplo assassinado estava ligado ao acidente da Represa; percorreu lentamente o longo caminho entre os dois lugares e acabo encontrando a Clínica onde trabalhava a Rosa.

Viu logo que poderia ser o lugar certo; era pouco mais que um pronto socorro e era muito usado para primeiro atendimento nos freqüentes acidentes na rodovia. 

Foi atendido justamente pela Rosa, que logo percebeu ter chegado ao ponto crucial.

Assustada, ansiosa, incapaz de segurar as emoções, explicou chorando o que tinha acontecido e puxou o prontuário 649.

O investigador tirou de uma pasta as duas fotografias, recebidas das delegacias do interior; Rosa quase desmaiou, ao ver a fisionomia do Lázaro. Era ele, sem sombra de dúvida.

Mas o investigador foi mais longe. Visto o envolvimento a moça, propôs algo muito incomum.  Rosa iria a Barretos,  como investigadora particular, para confirmar a identificação e para levantar informações mais precisas sobre o moço. Rosa vibrou.

-“ Quando vou? O que devo levar? Como vou me apresentar?”

Não parava de fazer perguntas, excitada, explodindo com todas as fibras de seu ser. 

 

Foi para Barretos naquela mesma tarde. Chegando, procurou a Fazenda Alvorada e foi recebida por um capataz seco, mas atencioso, chamado Raimundo.

- “Estou aqui para conseguir todas as informações possíveis a respeito de um moço... um tal  Rafael de Oliveira...conhece?”

- “Se conheço! Desde que ele era criança, moça! Mas o nome certo é Rafael Benedito de Oliveira, filho do finado Eugênio, que Deus o tenha....”

Falou durante uma hora. Rosa, encantada, ouvia-o narrar as molecagens, as travessuras, a magnífica atuação nas escolas que freqüentara, sempre obtendo as melhores notas,  levando prêmios e troféus.

Depois da morte dos pais, tomara conta sozinho da fazenda – naturalmente, sob a orientação do Raimundo  - e a modernizara, adaptando-a aos novos tempos.

E houve uma moça, também, uma tal de Santina – o coração de Rosa tremeu – que de Santa não tinha nada...

A moça não era “flor que se cheire” (palavras do Raimundo)  mas o Rafael ficou muito agarrado a ela.

Naqueles tempos era extremamente carente, A perda dos pais fora um trauma muito difícil de superar.

Largara o trabalho diário, desinteressando-se da administração da fazenda.

Os resultados tinham aparecido logo; os bancos cobravam, reclamando sua falta de empenho.,  -“ Assim, você vai perder tudo!” ameaçavam,

Até quando, por sorte, a moca se deixou levar por um vaqueiro; ele era loiro, bonito,  forte e bruto; acabou  “se enroscando com ela” – (foi assim mesmo que o Raimundo falou....)

Um dia  o Rafael apareceu sem aviso, não deu tempo  de os dois “se desenroscarem “ e a fritada estava feita.   A Santina levou o vaqueiro e a camisola para outro lugar e a fazenda ficou mais limpa.  

  

 - Nenhuma outra ligação, nenhum outro parente? 

Raimundo, homem de longa experiência e de inteligência aguda, já tinha percebido os sentimentos de Rosa.   

-“Fique tranqüila, filha, não tem mais ninguém, não! A Senhora está sozinha, nesta parada! E se quiser uma ajudinha....”

 

Rosa então sentiu-se confiante para explicar ao Raimundo tudo o que tinha acontecido

Ele ficou penalizado, mas não perdeu  a linha.

“Ele vem aqui, vê de novo tudo isso e vai lembrar tudinho, senhora; com a sua ajuda e a minha benção! Faça fé!”

Rosa não cabia em si de felicidade. Tomou o ônibus expresso que ia direto para a Rodoviária Tietê, e chegou louca para contar as novidades à Maria e ao Luis de Lima.

O encontro com o Rafael teve algo de dramático.

Apresentar o Rafael ao Lázaro exigia uma perícia incomum; mas quando tem complicações à vista, como recomendou Maria,  “deixe que o coração escolha o caminho. Ele sempre leva a gente para um porto seguro”.

Rosa tinha trazido de Barretos uma grande caixa, cheia de fotografias; era a documentação de toda a vida do Rafael, da mãe, do pai, da escola, colegas, festas de formatura... Fotos da casa, da fazenda, do gado, da plantação... ; dez, quinze minutos depois, Rafael estava com lágrimas nos olhos e voltava, sacudido por uma emoção profunda,  de sua longa viagem; novamente, como naquele primeiro dia em que ele recobrara a consciência, Rosa lhe disse, carinhosamente:

- “ Finalmente! Bem vindo de volta entre nós!”     

 

 

Deste ponto em diante, a história não é mais um romance.

 

A vida toma posse novamente dos  personagens que nos havia emprestado e por algum tempo o Destino vai deixa-los sozinhos, permitindo que reconstruam pacientemente o passado , que vivam intensamente o presente e   que decidam o  seu futuro.

 

Eu disse “decidam”?  Perdoem-me.

Queria dizer esbocem, tateiem, tracem, tentem timidamente encaminhar o futuro.

 

Se o Destino quiser, deixará  as coisas correrem em paz; e pelo que parece, ele até agora ajudou bastante.... a nós, só resta torcer..................

 

 


Autor: Romano Dazzi


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