SANT ULDERICO



 

SANTO ULDERICO

De Romano Dazzi

 

Era uma aldeia muito pobre, no norte da Itália, aninhada entre a planície e os Alpes.

Naqueles tempos, eu era um garotão descolado e aquele era o melhor lugar para passar as minhas férias.

A guerra – a grande guerra, a primeira guerra mundial, de 1915 - chegando na aldeia tinha gostado do lugar: ficou três anos morando lá, e nesse tempo destruiu tudo o que lá existia.

Em uma semana apenas , uma guerra já pode destruir tudo; imagine em três anos.

Quando andei por lá, uns vinte anos depois, quase tudo havia sido reconstruído.

Salvo duas casas queimadas, reduzidas a escombros de um metro de altura, onde o mato crescia, enraizando-se entre as pedras.

Nelas haviam morado duas famílias, cujos filhos, chamados para combater, não haviam voltado.

Os velhos morreram e as casas forma se desfazendo em ruínas, aos poucos.

 A noite, durante as tempestades de inverno, pensávamos ouvir o lamento das suas almas.

E as mulheres,  vestidas com longos camisolões pretos, punham-se a rezar com vigor – sim, com vigor, como se quisessem espantar os mortos, afastá-los, livrar-se deles a qualquer custo.

 

De manhã, tudo voltava ao normal; as seis famílias que lá moravam tinham uma vida isolada e pacífica.

Raro era o viajante que passava por lá, saindo da trilha principal, para explorar o riacho que corria no fundo, enfiado em uma garganta escura, úmida  e cheia de limo.

 

Não havia luz elétrica. À noite, tudo era feito à luz dos lampiões - ou das estrelas.

Depois do jantar, sentávamos em círculo no estábulo, atrás de quatro vacas que pertenciam à comunidade.

Os velhos contavam histórias de guerra, de fantasmas, de santos; quando estávamos todos de bom humor, entoávamos as canções das montanhas.   Às nove da noite, todos pra cama. No inverno, colocavam nas camas uma espécie de cadeira deitada, com uma bandeja de ferro, cheia de brasas. Em dois minutos, a cama estava quente; tiravam então a “monega” – a monja, como era chamada com carinho -  e  o meu maior prazer do dia, era deitar entre aquele lençóis ásperos e quentes.

 

Cada homem tinha uma profissão.

Havia um que fazia formas de madeira para sapatos – trabalhava de sol a sol, com atenção e seriedade, serrando, lixando, polindo sem parar, e conseguindo produzir uma dezena de pares por dia.

Outro sabia fazer pratos; tinha descoberto uma jazida de “caolim” – uma espécie de barro molhado, branco e pegajoso – e com ele moldava os pratos pacientemente, um a um, em um torno tosco, movido a pedal. Transformava o barro em pratos primitivos, de um único tipo e medida, uns pratos fundos, para sopa. Untava-os com uma espécie de óleo, depois secava-os ao sol, e  levava-os para cozer em um forno caseiro; a maioria entortava e rachava, mas ele recomeçava, moia tudo e refazia a fornada.

Mas o melhor, para mim, sempre foi o ferreiro; ele levava ao fogo um pedaço de ferro, aguardando com paciência que ficasse de um vermelho intenso; aí, malhava-o e batia-o, forjando-o com toda a força, mudando sua forma, dando-lhe uma alma. Porque o ferro forjado é como o homem que viveu intensamente sua vida. É forte e orgulhoso. E assim o ferro sem feitio transformava-se, diante de meus olhos, em um canivete, uma faca, uma foice. Às vezes, quando o ferreiro estava de bom humor, deixava-me ajudá-lo, e eu  puxava o fole, com toda a força, vendo as varas de ferro transformando-se em objetos, tomando formas novas e para mim inesperadas. Ele tinha o segredo do calor – sabia quando parar de aquecer, quando bater, quando voltar a esquentar e quando, enfim, mergulhar o ferro em brasa na água, levantando aquela nuvem de vapor e tirando de lá uma peça de aço azulada, capaz de quebrar em mil pedaços, porque, ele dizia, aço é como vidro e como mulher: basta uma olhada mais profunda, um movimento em falso, e lá se vai a obra de arte.   

As moças – ah, as moças eram maravilhosas. A água do córrego, penso eu agora, devia ser ótima, porque todas tinham dentes perfeitos,  brancos como em anúncio de pasta de dentes; nenhuma delas tinha uma cárie sequer. Usavam roupas longas, com meias de camponesas, de cores berrantes;  viviam felizes, apesar do isolamento, tricotando malhas, bordando lençóis, preparando-se para um casamento que – com certeza – algum dia acabaria por acontecer, talvez com algum estranho de passagem.

 

Ninguém tinha água em casa, precisava ir à fonte duas vezes ao dia, e trazer a água em tachos pesados. Foi assim que aprendi que a água é uma benção. Pesada, difícil de carregar, irrecuperável, quando cai no chão, mas ainda assim, uma benção.

 

Aos sábados, passávamos a tarde na fonte, todos lavando e areando as  panelas. Procurávamos areia fina e ficávamos passando e repassando nas panelas de cobre, até que ficassem brilhantes, resplandecentes. 

Era como um concurso entre as meninas, mas ninguém comentava nada...

 

E ainda tínhamos que cuidar das quatro vacas. Espalhadas pelos campos de cima, em lugares mais altos que as casas, para que não se arriscassem a quebrar as patas no grotão do riacho, nós as reconhecíamos pelo som dos sinos que carregavam no pescoço.

Se uma delas se afastasse demais, logo sabíamos qual era e corríamos atrás da fujona. Quantas corridas, nos campos de cima, quanto tombo, quantos escorregões nas bostas enormes que ficavam escondidas pela grama alta.

 

Mas o momento melhor, era no dia da colheita. Todos os vizinhos vinham juntar-se com as suas foices e ancinhos, para fazer rapidamente aquele  trabalho enorme de cortar as hastes de trigo, juntá-las em feixes, amarrá-las,  recolher as espigas que sobravam no campo, preparar tudo para receber a “Máquina” .

A colheita ocorria em pleno verão, com  o sol quente torrando as orelhas; só as orelhas, porque cobríamos a cabeça com um lenço, amarrado nos quatro cantos.

 

Às vezes levantava um vento forte e as espigas de trigo dobravam-se, formando desenhos movediços, com formas estranhas e parecia que era a colina inteira que oscilava, ia, voltava, balançava, parava, deitava,  recomeçava.

 

Para os velhos, era um desespero. Vento queria dizer chuva e chuva seria tempestade;  tempestade seria granizo; e a colheita se perderia. Então era uma corrida desenfreada, para cortar e amarrar os espigas, amontoar os feixes em “moinhos”, que resistiriam melhor à chuva, pelo menos por uma ou duas horas, até poder “maquinar” o trigo.

 

A “Máquina” era um velho trambolho alemão, devia ter uns cem anos, mas ainda funcionava bem. Uma caldeira, ao lado, fornecia vapor para os cilindros, que moviam longas correias, que acionavam as engrenagens, que sacudiam as peneiras, enfim toda uma parafernália que recebia as espigas, cortava os caules, amarrava os feixes de palhas, descascava os grãos, separava-os por tamanho e ensacava tudo, separadamente. 

 

Dez homens trabalhavam alimentando a máquina e tirando a sacaria; a mim, parecia um velho gigante faminto,  que queria ser alimentado, protestando com barulhos terríveis, guinchos agudos e explosões  ensurdecedoras. Mas era apenas uma descascadora de trigo...

 

Na época de colher batatas, ia todo o mundo para o campo; formávamos uma linha reta, que ia se arrastando lentamente pela largura do terreno, cada um cutucando a terra em volta da touceira, até encontrar a batata. Deixávamos lá, para recolher no dia seguinte, e o serviço estava feito; mas a dor nas costas durava uma semana...

 

Em setembro vinham as vacas da baixada. Eram animais muito delicados, acostumados a dormir no estábulo, bem agasalhados. Vinham para respirar o ar puro da altitude e revigorar os pulmões. Durante um mês, a cada dia tínhamos que beber uns três litros de leite quentinho, acabado de sair dos úberes.

Hoje não beberia essa porcaria nem amarrado, mas então era uma delícia. Também não sei mais como ordenhar uma vaca. Perdi o jeito.

 

Todos estes detalhes  estão bem vivos na minha memória. A vida era bem mais simples e tranqüila naquela época. Talvez estivéssemos cometendo os maiores pecados contra a mãe natureza, talvez estivéssemos, sem saber, arruinando o planeta.  Mas fazíamos candidamente coisas simples e por vezes cruéis, que os antigos tinham ensinado, transmitidas em lendas e histórias, de geração em geração, e nas quais acreditávamos sem discussão.

 

Por seis meses, durante toda a primavera e o verão, os melros eram mantidos nas gaiolas, em lugares escuros, cobertas com panos pretos. 

Por que ?

Porque ao chegar a estação de caça, em setembro, deixávamos as gaiolas em certos lugares, nos vértices dos campos. E tirávamos os panos pretos; os melros, vendo tanta luz e sol, começavam a cantar com toda a força de que eram capazes. Era um concerto maravilhoso; milhares de passarinhos voavam para os locais, para se juntar à festa;  e inevitavelmente caiam nas redes. E forneciam a matéria prima para uma inesquecível “polenta coi osei” .polenta e passarinhos. Um truque velho, repetido todos os anos, com o mesmo sucesso. 

Mais tarde, chegaram os ecologistas. Acompanhados de soldados e policiais, exibindo decretos e instruções, pararam com a matança; e assim os passarinhos comeram todas as sementes da colheita seguinte.

As sementes  que jogávamos nos sulcos, esperavam a primeira chuva para se enterrarem; mais tarde,  depois do inverno, na primavera, brotariam em verdes tufos de trigo. Naquela primavera, se os ecologistas aparecessem, teriam apanhado um bocado. Não brotou nada. E aquele povinho pobre passou fome.

 

Depois disso, ainda havia a colheita da uva; apesar de tudo o que conta o folclore, ainda se amassa a uva com os pés sujos. Como o vinho consegue transformar-se em lindos rubis líquidos e adquirir aquele sabor maravilhoso, é um mistério. Para mim, é mais; é um milagre.

Depois, em outubro, o tempo ia esfriando um pouco a cada dia, Era o tempo de colher castanhas, deixar secar suas cascas verdes e cheias de espinhos, até que se abrissem sozinhas e deixassem aparecer a conhecida pele marrom. Neste momento, começava o período mais triste do ano. A natureza começava a chorar; por dias, por semanas, sem parar, constantemente. Tudo ficava molhado e triste. Como as canções que os nossos velhos entoavam; repetidas de ano para ano, a quatro vozes, em um suave “sottovoce”; sem que ninguém percebesse, elas entravam em nossas veias e acabavam parando no fundo do coração.    

 

E enfim, um dia, bem de manhã cedo, abrindo a janela,  um espetáculo maravilhoso e sempre novo, esperando, mas surpreendente. A Neve!  Tudo ficava branco,  claro, brilhando de uma luz irreal,  enquanto os sons as vozes, os gritos, chegavam abafados e distantes. Inesquecível e encantador.

 

Vinte ou trinta anos mais tarde, visitei novamente Santo Ulderico. Ninguém se lembrava daquelas poucas casas afastadas, isoladas e auto-suficientes. Os velhos haviam morrido, os jovens tinham tomado rumos desconhecidos. Havia um resort moderno no lugar onde por anos haviam pastado as vacas. Até o cheiro era outro.   Olhei em volta, fechei os olhos, tentai reconquistar aquela sensação maravilhosa de minha juventude. Não consegui. E percebi que tinha morrido um pouco.


Autor: Romano Dazzi


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