Quem tem direito ao direito autoral?



Notadamente a discussão envolvendo o direito autoral tem tomado corpo nos últimos anos. Fala-se principalmente sobre a violação desse direito possibilitada pela internet, com os downloads de músicas, filmes, fotos, livros etc. Entretanto pouco se discute a teoria do direto autoral, seja por falta de desconhecimento, seja por falta de vontade mesmo.

De início é bom ressaltar que toda criação artística deve necessariamente ter uma autoria. Exclui-se imediatamente dessa autoria qualquer forma (material ou imaterial) de motivação (ou inspiração, como preferem alguns). Dessa forma a "musa" inspiradora jamais poderá participar da autoria de uma obra.

Apesar de parecer uma assertiva óbvia, nem sempre se vê claramente sua aplicação. Por exemplo: por séculos se questionou quem seriam os herdeiros oficiais de obras de arte produzidas a partir de uma junção necessária entre autor e "musa". Se na grande época da pintura um pintor retratasse um rei e ambos morressem, a quem pertenceria a pintura? Aos herdeiros do pintor ou aos herdeiros do rei retratado? Eis uma questão não tão simples de se resolver. Outro caso, esse mais recente, ocorreu com o belíssimo ator sueco Björn Andersen, que deu vida ao personagem Tadzio, do livro A Morte em Veneza, no filme homônimo de Luchino Visconti. Naquela época, ele foi fotografado correndo sem camisa numa praia por David Bailey. Em 2003 essa mesma fotografia foi usada para ilustrar a capa do livro "The Beautiful Boy", da feminista americana Germaine Greer, fato que deixou Björn (na época com 48 anos) bastante irritado. Ele alegou que não lhe havia sido pedida a autorização para o uso de sua imagem.

Esse episódio nos mostra quão imensa é a dificuldade em se determinar os papéis de autor da obra de arte e o de instrumento de viabilidade. No caso da fotografia de David Bailey descarta-se de imediato o direito autoral de várias partes envolvidas. Entre elas (e pouca gente já abordou essa discussão por essa via) estão tanto a fábrica responsável pela manufatura da máquina fotográfica usada quanto a responsável pela fabricação do filme que estava nessa máquina no instante da foto. Ambos os instrumentos viabilizaram a feitura da obra, mas de modo algum detêm sobre ela qualquer direito, visto que quando se deu a fabricação desses instrumentos, não lhes foi atribuído um "destino" específico, o que inviabilizou um acordo entre essas fábricas e os compradores que eventualmente obteriam seus produtos. Em outras palavras, quando o cliente adquire um produto, seja ele qual for, fica ajustada entre ele e o fabricante a relação de produto-funcionalidade, e não a de produto-utilidade, o que estabelece o seguinte: o objeto adquirido deve obrigatoriamente servir, deve funcionar, mas não é em momento algum predito (nem mesmo seria possível tal coisa) um "servir para quê?"; desse modo o comprador de uma máquina fotográfica, por exemplo, não se obriga a usá-la para fotografar, ele pode usá-la talvez para martelar um prego... E é exatamente essa inexatidão no acordo comercial que nega de antemão aos fabricantes o direito sobre aquilo que será produzido a partir do instrumento em questão. Superada essa primeira parte, temos ainda o fotografado (Björn Andersen). Teria ele direito sobre sua imagem nessa fotografia?

Para esclarecer esse ponto de maneira inquestionável, proponho uma analogia. Imaginemos que em vez de fotografar o ator correndo sem camisa pela praia, David Bailey houvesse fotografado uma pedra. Seria no mínimo ridículo atribuir a essa pedra qualquer direito sobre sua imagem, e o mesmo pode-se dizer a respeito do ator: sua reclamação não procede, absolutamente. E além disso vale lembrar a que nossa imagem é não só transitória como também autônoma. Quero dizer com isso que, no humano, há uma constante "desapropriação da própria figura". O rosto que uma pessoa tem aos doze anos de idade de forma alguma será o mesmo que ela terá aos setenta. Seguindo então essa linha de raciocínio, não seria muito ousado perguntar: se o rosto que um indivíduo tem quando criança não mais lhe pertence na fase adulta, por que então lhe pertenceria a imagem desse rosto? Que direitos teria um homem velho sobre seu rosto jovem?

Imaginemos outro caso: ao ser fotografado, o modelo põe sobre o rosto uma máscara. O rosto do modelo está totalmente escondido, tudo o que se vê na fotografia pronta é a mascara? A quem pertence essa imagem?

Isso sem esquecer outro detalhe: nem sempre a imagem que temos de nós mesmos corresponde àquela que de fato existe em nós. Não seria também essa inexatidão entre a imagem que temos de fato e aquela que supomos ter uma prova de que o fotografado não tem direito algum sobre a fotografia?

Com tudo isso, já deve ser óbvia a resposta para essa questão. A fotografia pertence invariavelmente ao seu autor, ao fotógrafo. E esse pertencimento poderá ser passado a outro de forma legal, nos casos de compra da fotografia, por exemplo, onde a obra de arte, o objeto, será legalmente de alguém que o adquiriu como "produto final" — o que de forma alguma anularia o vínculo fundamental entre a obra e o autor (como o crédito da figura, que continuaria sendo necessário para especificar quem a fez).

Por falar em créditos, ocorre-me algo interessante. Vejamos os filmes exibidos em canais abertos: os créditos finais são simplesmente cortados, ou seja, aquilo que faz parte do "corpo" do filme é retirado sem a menor cerimônia. Com esse gesto as televisões não só infringem o direito autoral no que compete ao diretor, ao roteirista e ao editor (que determinaram que os créditos passariam daquela forma, naquele momento) como também impedem que o público seja informado sobre quem participou da feitura da obra (câmeras, maquiagem, continuidade etc.). Ou seja: negam o direto autoral e o direito à informação. Em outras palavras, cometem dois crimes. É estranho assistir a discussões tão acaloradas sobre direito autoral, principalmente quando se percebe que no nosso dia-a-dia esse assunto é tratado com tanto desleixo, mesmo nas questões mais simples, como assistir a um filme na sessão da tarde, por exemplo.


Autor: Sodine Üe


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