A CRIMINALIDADE FEMININA ASSOCIADA À COR: Na Belém do século XIX



Em Belém a exploração do látex contribuiu para um rápido avanço econômico que conseqüentemente trouxe com ele a preocupação com o crescimento do espaço urbano, com o embelezamento da cidade, com a saúde e a higienização, e também com o controle social, afinal "em decorrência do boom gomífero, Belém assumiu o papel de principal porto de escoamento da produção do látex, além de se tornar a vanguarda cultural da região." [1] Porém a expansão econômica da cidade e os interesses republicanos aliados as mudanças no pensamento científico auxiliaram no crescimento das preocupações com o controle social, com a moral e com os bons costumes, fazendo com que o pensamento social se constituísse a partir da incorporação no debate intelectual local, de um conjunto extremamente variado de idéias cientificistas, importadas, sobretudo da Europa[2] que auxiliariam as elites dominantes a pensarem as possíveis mudanças estruturais, políticas e sociais e onde a incorporação de "tais teorias foram utilizadas para tentar demonstrar a inferioridade do povo e estabeleciam argumentos para explicar o dito atraso da nação, e bem como ditar propostas para a cura de um país "enfermo" e "doente." [3]

Entre as questões embaladas pelo crescimento econômico da cidade de Belém, pela emergente República e pelos discursos morais, cientificistas, e higienizadores importados da Europa no século XIX, as mulheres destacavam-se neste cenário por sua mobilidade, suas relações sociais e por seus conflitos muitas vezes caracterizados pela sociedade oitocentista como criminosos e desviantes do bom comportamento almejado pela emergente burguesia belenense.

A cor da pele de mulheres envolvidas em tensões ou crimes aparecia nos jornais do século XIX corriqueiramente e nos serviram como quesito de indiscutível importância para a compreensão das representações das mulheres criminosas nos primeiros anos republicanos em Belém, tendo em vista a recente abolição da escravatura em 1888 e o crescente discurso científico sobre raça que se delineou desde o início do século XIX. As representações da criminalidade feminina tecidas pelos periódicos paraenses a partir das relações de cor construíram-se possivelmente através da necessidade de um discurso sobre a sociedade oitocentista pautados na "razão", e que utilizados em favor de determinados interesses da elite dominante, criminalizavam os comportamentos indesejáveis das mulheres populares pela sociedade belenense burguesa.[4]

Na cor de sua pele, nos seus traços físicos, nos seus cabelos, os negros livres já de há muitas gerações, mesmo miscigenados, freqüentemente traziam impressas as suas origens africanas, as marcas de seus antepassados escravos, e assim ficavam entregue a possibilidades de serem tratados com desprezo e violência. [5]

O jornal A República noticiava em 17 de Julho de 1890 que duas mulatas haviam sido presas por brigarem na Rua do Bom Jardim, o motivo teria sido a disputa por um senhor Teodoro.[6]Assim as notas que falam sobre tensões e conflitos envolvendo mulheres de cor, corroboravam para a exposição das mesmas nas páginas criminais dos periódicos de Belém em fins do século XIX, e para uma representação muitas vezes negativa das mesmas considerando que o modelo feminino almejado passaria pela docilidade, pela maternidade e pela boa moral e qualquer comportamento que fugisse do desejado era facilmente enquadrado como criminosoou desviante. Em 1892 O Correio Paraense noticiava que "Athanasia de tal, preta muito cabeçuda, foi dar uns cascudos em Thereza da Conceição ante-hontem, á tarde, na travessa dos Apinagés. O resultado foi ficar a preta com a cabeça quebrada"[7], os exemplos de Athanasia e das duas mulatas que brigaram na Rua Bom Jardim demonstram que as relações cotidianas dessas mulheres aconteciam além dos desejos moralizadores que cercavam a sociedade belenense em fins do século XIX. Athanasia é referida na nota do jornal como preta muito cabeçuda, demonstrando que a cor da pele caracterizava não somente a condição social das envolvidas, mas taxava também pejorativamente uma boa parte da população que habitava a cidade, tendo em vista que grande parte da mesma que compunha a Belém do período analisado era formada por ex-escravos, pardos, mulatos e mestiços. O desfecho dos acontecimentos e o bairro ou ruas onde eles se davam nos revela que as tensões ocorriam, sobretudo nos bairros periféricos, ocupados pelas camadas populares.

As mulheres das camadas populares tinham suas intimidades, inquietações e conflitos expostos nas notas dos periódicos que chegavam a público através da grande circulação dos mesmos, levando a população a participar e tecer suas opiniões sobre as condutas das envolvidas. As notícias traziam algumas vezes todo o desenrolar de algumas querelas levando a conhecimento e julgamento populares as intimidades de relações que passavam a ser expostas nas ruas, denunciando fatos às vezes a revelia das envolvidas.[8] Para as camadas populares tais conflitos, envolvendo questões que identificavam as mulheres de cor com a criminalidade, sendo elas vítimas ou rés, eram bem conhecidas e alardeadas, considerando a grande circulação de pessoas no convívio familiar, as relações com vizinhos e parentes próximos que proporcionavam tramas carregadas de testemunhas com suas opiniões e julgamentos, e a livre circulação dos jornais em fins do século XIX que levavam ao conhecimento público os mais variados folhetins amorosos, prisões e tensões dessas mulheres.

No dia 22 de Julho de 1892 a seguinte nota circulava no Correio Paraense: As 7 horas da noite de ante hontem na travessa da Princeza, Manoel de tal e Joanna da Conceição, promoveram grande senzilho por ciumadas de uma pretinha moradora do Umarizal.[9] Tais designações do tom de pele das mulheres envolvidas em questões de semelhante natureza são comuns no Correio Paraense, o Jornal não êxitou no adjetivo pretinha do Umarizal qualificando assim um dos protagonistas da querela e refletindo a condição social da envolvida, negra oriunda dos recém libertos e recém atirados as margens da sociedade, deixando a mostra as relações tecidas pelas camadas popularesem Belém, a pretinha trazia na cor de sua pele impressas características das classes menos favorecidas da cidade que desabrochava com a economia gomífera, e com os primeiros ares da urbanização republicana, mostrando a cara dos indivíduosque desfilavamtodos os dias suas mazelas e tensões nos periódicos da cidade.

Os conflitos envolvendo mulheres pobres e de cor que estampavam as notas jornalísticas aconteciam nas periferias da cidade, nos cortiços, nas Ruas e nos revelam as faces do cotidiano dessa população menos favorecida e suas diversas maneiras de se relacionar. Umarizal, Travessa da Princeza, Apinagés, ou Bom Jardim, todos os bairros ou ruas afastados do centro da cidade que aos poucos via seus espaços urbanizados e reorganizados para a emergente burguesia paraense.

Havia unicamente um mez que o pardo Agostinho conquistara a Rosalia, parda também e moradora na rua de Santo Antonio.

De dia para dia augmentava-se mais n'esse pedaço de carne que se chama – coração, o amor, o amor só, não,masessa partícula que leva muitas vezes o apaixonado sincero a cadêa – o ciúme."[10]

Os pardos Agostinho e Rosalia também vêm em notas no jornal onde se vê exposta a cor de sua pele e as razões de suas brigas, aqui o ciúme, assim como o tempo de sua relação amorosa, dividindo com os leitores do jornal suas vivências íntimas, onde a vida privada desses indivíduos pobres e pardos passava a publicidade das ruas. As relações amorosas conflituosas dos sujeitos de cor oriundos das camadas populares não eram bem vistas pela elite dominante pois as relações amorosas ditas "ilícitas"das classes populares deveriam ser controladas considerando que para parte da sociedade oitocentista paraense, o casamento era concebido como instituição necessária à permanência da família e auxiliava nas propostas de saneamento moral da cidade.[11] Mesmo com as normas saneadoras e moralizadoras, as mulheres negras, desenvolviam nos diversos locais públicos da cidade seu dia a dia, e reproduziam sua existência em meio a muitas desavenças e tumultos pertinentes as contradições que emergiam do processo burguês de urbanização[12] e controle social. Esta argumentação pode ser percebida no documento seguinte: Às oito horas da manhã na doca do Reducto dois matutos, brigaram por motivos de zelos de uma mulatinha moradora da ilha das Onças.[13] A "mulatinha da Ilha das Onças" era a provocadora das brigas entre os dois "matutos" que tomados de "zelos"foram às vias de fato, e assim como os pardosAgostinho e Rosalia, eram representados no periódico por sua cor e pelos conflitos que provocavam causando a "desordem" tão combatida.

Estas mulheres têm em comum não somente seus conflitos íntimos levados a público através dos periódicos, ou o tom de sua pele expostos nas notas dos jornais, ou simplesmente seus redutos de moradia nas periferias de Belém, mas também carregam em suas vivências as representações sociais dos comportamentos entendidos como inaceitáveis para o pensamento oitocentista. Comportamentos estes que fugiam dos compreendidos como moralizados e figuravam como inadequados nos periódicos, protagonizados por populares, pobres e de cor representando assim as mazelas da periferia seus conflitos e a tendência "criminosa"dos sujeitos que formavam as margens da cidade e que precisavam ser "controlados" e "combatidos"através dos processos urbanizadores e higienizadores da República. Estas representações do comportamento feminino criminalizado provocavam mecanismos de flexibilizações nas relações de poder da sociedade oitocentista paraense, e segundo Chartier são tecidas a partir de perspectivas de interesses dos grupos que as forjam movimentando assim o campo da história para uma representação não estática dos indivíduos, onde os mesmos são influenciados pelas relações de poder e pelas mudanças estruturais do quadro social.[14]

Não podemos esquecer que em 1888 houve a abolição da escravidão no Brasil, e logo a seguir a Proclamação da República em 1889 e as questões sobre a cor da pele ainda estavam fortemente arraigadas no pensamento da elite dominante que não tardou em remeter aos negros, índios e seus descendentes todas as mazelas que assombravam e impedia o crescimento do país. Considerando que o século XIX foi uma época de conquistas e transformações, o tempo gerador da modernidade, impulsionado pelo progresso científico, por outro lado o mesmo avanço da ciência, não foi suficiente para levar o homem "branco" a aceitar a idéia de diversidade racial e cultural e conviver com ela.[15] Mesmo com todos os dissabores, essas partes pobres da população composta por negros, índios e mestiços também contribuíam para a formação da cidade, e nesse âmbito, negros e negras reproduziam seu dia a dia, e, em meio à população laboriosa, ocupavam-se também de atividades econômicas que, embora marcadas pela pecha de inferiores, revelavam fundamental importância no cotidiano da cidade de Belém. "[16]

As mulheres negras apareciam nos jornais oitocentistas através de várias representações, como vítimas ou vitimizadoras, seduzidas e sedutoras, protagonistas de casos das mais diferentes ordens, constantemente nas notas policiais ligadas de alguma forma a criminalidade. O jornal Correio Paraense apresentou no dia 2 de julho de 1892 nota de retificação com o seguinte conteúdo:

Melhor informados soubemos que não foi o proprietário da mercearia denominada <<Flor de Mururé>>, quem arremeçara uma pedra no menor filho do sr. Felix Olympio Rangel produzindo no rosto do menor um leve ferimento.

O proprietário da dita mercearia e o sr. Manoel Pereira Duarte, commerciante muito estimado e conceituado por todos os que o conhecem, incapaz de commetter um acto reprovado como o de que se trata.

Soubemos que deu logar a este engano sobre a autoria do facto ter estado o dito menor em frente a mesma mercearia afazer bulha tendo o sr. Pereira Duarte mandado repreendel-o por um terceiro.

Não sabemos quem foi o autor da pedrada, inclinamo-nos porem a crer pela referencia que nos fizeram, que uma preta a quem a garotagem appelida boneca de acapú, o que muito a enfurece a ponto de lançar sobre quem a persegue com o referido appelido, pedras ou qualquer cousa que encontre a mão, sendo muito para acreditar que fosse arremessada pela dita preta em um momento de furor."[17]

Podemos perceber então com o relato acima que os referidos apelidos as mulheres de cor causavam constrangimentos as mesmas que utilizavam as defesas possíveis para protegerem-se de seus agressores, a negra apelidada de boneca de acapú talvez encontrasse nas pedradas única defesa para as ofensas verbais. O jornal em sua nota de retificação retira do dito Sr. Manoel Pereira Duarte, que segundo o mesmo periódico, era comerciante muito estimado e conceituado por todos que o conheciam, qualquer possibilidade de autoria da pedrada, pois o mesmo seria incapaz de cometer um ato reprovável como o que se passou, porém a dita preta apelidada sim poderia ter lançado as referidas pedradas sobre quem a perseguisse com o referido apelido. As referencias dadas ao periódico sobre a mulher negra acabou por designá-la como a possível autora da agressão protagonizando a tensão onde possivelmente defendia-se. O periódico afirmando que não poderia precisar assim o ato, não pode comprovador a autoria da pedrada, porém retirou em nota de retificação a culpabilidade do comerciante transferindo à mulher negra a possível autoria da agressão.

As mulheres negras das camadas populares que se envolviam em tensões eram consideradas criminosas por fugirem do modelo ideal de mulher que as elites defendiam em projeto modernizador que consistia no da "senhora branca, cujo comportamento era marcado pelo recato, elegância, altivez, instrução enfim [...]."[18] As mulheres das camadas populares não se enquadrariam nesta proposta, assim as notas dos jornais acabavam por auxiliar nesta representação de modelo feminino ideal a partir do momento que divulgava as tensões que envolviam as populares expondo a sua cor.

As mulheres das camadas populares possuíam suas teias de sociabilidade, e os diversos lugares públicos como praças e ruas, assim como o ambiente doméstico, eram utilizados no desenvolvimento de sua existência, logo, esses espaços se transformavam em palco das muitas desavenças e tumultos pertinentes as contradições que emergiam do processo burguês de urbanização vivenciado não só pelos habitantes da cidade mais também pelas mulheres negras no século XIX.[19]

É inegável que a mulher negra estava presente nas notas corriqueiras dos jornais que a enfatizavam não raramente como seres provocadores, dadas a prostituição e a gatunagem, elas engrossavam a vasta teia das representatividades sobre a criminalidade. Essas mulheres pobres movimentavam-se livremente pelas ruas da cidade, teciam suas relações sociais e possuíam autonomia que as colocavam mais próximas das realidades da rua tendo que por vezes defenderem-se sozinhas, ganhar seu sustendo e ainda conduzir famílias ou a si próprias, o que já era bastante difícil, dentro de uma sociedade masculinizada onde muitos discursos estavam voltados para o controle social dessas mulheres.

As mulheres negras mesmo tidas como inferiores, e desordeiras carregavam no fim do século XIX, herdados dos tempos da escravidão, a associação ao forte impulso sexual e a lascívia:

Cabisbaixo, triste, pensativo e silencioso seguia caminho de seus [apagado] o individuo Miguel da Trindade.

Antes porem, de bater a porta de seu domicilio, apresenta se-lhe a frente uma sua antiga companheira de casa e sem mais Deus te salve applica-lhe as bochechas uns quatro bem fortes e puchados osculos com o tocão de seu chinello de mulata odorisada a priprióca e cipó-catinga.

Miguel, como todo amante apaixonado, esqueceu as pancadas e deixou-se arrastar aos caprichos e caricias de sua amante.

Di-lo o rifão: pancada de amor não doe.[20]

A mulata odorisada a priprióca e cipó-catinga, descrita pelo Correio Paraense como a amante perfumada e sedutora nos deixa entrever uma das representações recorrentes sobre a mulher negra no século XIX, não somente nos periódicos, mas na literatura as mulheres de cor eram também representadas como perfeitas nas artes da sedução, por andarem, por exemplo, sempre limpas e asseadas despertariam desejos e arrastariam com caricias e caprichos seus possíveis amantes. Aluizio de Azevedo em seu romance "O Cortiço" descreveu na personagem Rita Bahiana, seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca, onde havia um molho de manjericão e um pedaço de baunilha espetado por um gancho e toda ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromáticas.[21] Moradora em um cortiço carioca, Rita Bahiana seria um exemplo da mulata sensual, perfumada e asseada, deixando transparecer mais uma vez a sensualidade que era atribuída às mulheres de cor, o autor contribuiu para nossa compreensão sobre as representações das mulheres negras. Possibilitando-nos um encontro entre a personagem do romance de Azevedo e da mulata do periódico paraense, percebemos que ambas perfumadas e sedutoras se tornaram a representação do comportamento exagerado e sensual, que colocou as mulheres de cor no século XIX muitas vezes como artífices dos prazeres sexuais, fugindo do modelo desejado pela elite dominante de mulher recatada e pudica assexuada, mãe e esposa submissa. Mesmo não sendo nossa intenção o debate direto com a literatura o romance de Azevedo propiciou o encontro com a fonte e a literatura, para que percebêssemos as possíveis relações entre a representação literária e a jornalística no século XIX que auxiliariam na construção das representações sobre as mulheres de cor.

Noséculo XIX temos estudos pautados na Antropologia Criminal e na Medicina Legal voltados para o entendimento do criminoso e de seus atos. O conceito de "Raça" surge como uma maneira de compreender a criminalidade, onde as virtudes e vícios poderiam ser explicados através do tom da pele e das características físicas como um todo. O que determinaria então o fato de mulheres, negras serem provocadoras de tensões ou vítimas delas, seria explicado no século XIX pelos homens de ciência através de pesquisas que esclareceriam que a mestiçagem corroborava para o crescimento da criminalidade, e o grande número de mestiços no Brasil propiciaria o lento crescimento e o atraso do progresso. Seja por um traço, seja pela delimitação de muitos detalhes, o fato é que para esse tipo de teoria, nas características físicas de um povo é que se conheciam e reconheciam a criminalidade, a loucura, as potencialidades e os fracassos de um país.[22] E estas mesmas teorias auxiliariam a criar as representações da criminalidade e da presença feminina nas notas policiais dos jornais de Belém no fim do século XIX, a partir do momento que impregnam o pensamento social do período.

É importante relembrarmos que no século XIX foram debatidas questões como urbanização, higienização, e modernização, o contexto político, social e econômico brasileiro passava por um processo transitório: a abolição do trabalho escravo e em seguida a proclamação da República, acontecimentos que causavam certa desordenação no cenário nacional, e promoviam grandes transformações na paisagem de Belém, esboçando então um país que necessitava de uma reestruturação política e social, que se fez de maneira lenta e gradual. "Com isso a apropriação de modelos cientificistas europeus eram inevitáveis para as elites intelectuais brasileiras que grandes leitoras da literatura produzida na Europa e nos Estados Unidos, não passariam incólumes aos ditames que vinham do estrangeiro." [23] Contudo readaptariam tais teorias para o cenário nacional, não sendo apenas reprodutoras dos pensamentos europeus, e tais idéias se transformariam em elementos chave para a reconstrução das Representações sobre Criminalidade no país, e sobre a participação de negros, e mestiços em ações consideradas criminosas. Contudo se os conhecimentos científicos ajudaram a reforçar o etnocentrismo, e se os progressos científicos oitocentistas produziram avanços tecnológicos essenciais para o mundo moderno, produziram também idéias racistas, atitudes de intolerância e discriminatórias contra indivíduos considerados de raças inferiores.[24]

Dentro de tais efervescências do século XIX encontramos um intelectual empenhado em responder questões que desde o Império eram debatidas no Brasil, o médico maranhense Raymundo Nina Rodrigues que baseado nos estudos de evolução biológica se lançou a pesquisas sobre criminalidade e raça, questões primordiais para os debates oitocentistas, tendo em vista o palco dos acontecimentos que refletia um Brasil mestiço e peculiar.

Para Nina Rodrigues era imperativo que a inteligência, a moral e a evolução de uma população passassem por um processo evolutivo hereditário, onde a cada geração a intelectualidade fosse aumentada, assim como a capacidade de adaptação e aperfeiçoamento, o individuo sairia da sua condição de barbárie que os fazia utilizar apenas seus impulsos apaixonados para um grau evolutivo racional. Para tais conclusões o cientista brasileiro se apoiava no que havia de mais moderno nas descobertas do mundo científico e jurídico europeu oitocentista. As pesquisas de Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Alexandre Lacassagne serviram de base para o autor, que utilizava a própria singularidade da população brasileira para fazer suas observações empíricas, via em terras nacionais o ambiente propício para seus estudos, campo este vasto de ex-escravos recém abolidos, populações indígenas, e europeus vindos das mais diversas partes da Europa, povos diversos culturalmente, misturando-se e originando cafuzos, mamelucos e mulatos transitando e relacionando-se no Brasil, criando suas tensões seus jogos de poder, e suas relações sociais, muitas vezes burlando as normas estabelecidas e se tornando marginais da República, sujeitos que para os homens de ciência sujavam os ideais civilizadores. Para Nina Rodrigues a solução para degenerescência da população brasileira era conter os avanços da miscigenação entre as raças inferiores, ou seja, entre negros e índios, e promover um branqueamento, onde em um processo lento e gradativo o povo alcançaria a evolução tão desejada.[25]

As influências das teorias européias chegavam através dos jornais e conseqüentemente circulavam entre a sociedade oitocentista belenense, em 10 de março de 1894 era publicada a seguinte nota no Correio Paraense:

A Sicilia e o Professor Lombroso.

O Professor Cesar Lombroso em uma entrevista que teve últimamente sobre a agitação na Sicilia, disse o seguinte:

<<A cousa é gravíssima. Quando a mulher participa como na Scicilia do movimento de rebelhão é prova certa que a agitação revolucionaria vai muito adiantada.

O que se dá na Scicilia actualmente confirma perfeitamente a theoria que expus no <<Delicto Politico>>que as populações nos paízes quentes e os povos mixtos são os que mais estão sujeitos a revolução. [...]

A Scicilia é, pois um pais onde a propaganda insurrecional representa um perigo gravissimo, por que nas massas da população estão reunidos os elementos citados.

Além da influencia do clima, há ainda a facilidade de excessos oriundos de novidade que caracterisa povos mixtos como o siciliano, onde estão cruzados o sangue normando, semita e outros>>[26]

A entrevista com Cesare Lombroso demonstra que as teorias racistas estavam sendo muito discutidas em toda a Europa e influenciavam as idéias dos homens também no Pará, criando representações específicas a partir das idéias positivistas sobre a criminalidade, teorizando que o individuo criminoso apresenta comportamentos desviantes "porque são portadores de taras hereditárias".[27] Quando Lombroso afirma que "além da influencia do clima, há ainda a facilidade de excessos oriundos de novidade que caracterisa povos mixtos [...]" reafirma seus conceitos teóricos remetendo a miscigenação uma das causas da criminalidade. Reforçava ainda Lombroso que a participação das mulheres em movimentos de rebelião demonstrava que a agitação revolucionaria estaria em um estágiomuito adiantado, deixando-nos entrever as características dos papéis femininos no século XIX, onde a participação da mulher em qualquer tipo de manifestação, movimentos revolucionários ou no mundo do trabalho não seriam bem vistos.

Se a ciência no país era influenciada por argumentos europeus para qualificar o comportamento da população mestiça, negra e indígena como sendo elas mais propensas a criminalidade, as mulheres pobres e negras se transformavam então em alvos fáceis e constantes dos ideais civilizadores da República que viam em tais teorias as possíveis soluções para o entendimento da criminalidade por que:

A mentalidade que generalizou o entendimento a cerca das expressões classes perigosas/classes pobres atingiu também as mulheres negras, ocupadas ou não em atividades que garantiam seu sustento. Uma vez pobres e, sobretudo negras, elas produziam seu espaço doméstico em barracas ou quartos, muitas vezes de aluguel, os quais destoavam dos padrões estéticos objetivados pelas elites dirigentes.[28]

Já que as vivências das mulheres pobre e negras se afastavam dos ideais civilizadores era mais fácil associá-las aos comportamentos perigosos, sendo então mais fácil ainda para as elites paraenses representarem estas e outras mulheres das classes pobres como criminosas, refletindo nas notas dos jornais da cidade que eram de igual maneira escrita e pensada pela elite intelectual paraense.

Contra as mulheres criminosas negras ou simplesmente integrantes das camadas populares criou-se mecanismos próprios para que fossem combatidos seus possíveis comportamentos desviantes e inadequados, que feriam os projetos idealizados pela emergente sociedade burguesa republicana, moldada pelos pensamentos europeus. Pensamos que se fazia necessário combater todas as manifestações que corroborassem para o desmantelamento dos modelos ideais femininos pregados pela burguesia. Para tanto, a repressão em forma de aparato policial e jurídico precisou se ajustar as novas necessidades emergentes, tendo em vista que a preocupação com a disciplinarização dos comportamentos femininos era já em 1890 uma característica dos órgãos do governo encarregados de salubridade, segurança e moral pública. Onde, segundo José Ronaldo Trindade a polícia era responsável pela manutenção e disciplina das ruas, e dos comportamentos "indesejados" e as mulheres populares do século XIX constantes alvos das fortes repressões, criando formas de resistência para sobreviver aos modelos de progressistas que se instalavam na cidade de Belém.[29]


[1]SARGES, 2000. Op. Cit. p. 89

[2] ALVAREZ, 2005.Op. Cit. p. 82.

[3] ARAÚJO, Telmo Renato da Silva. Sob a luz do livre arbítrio: raça, mestiçagem e criminalidade. In: ARAÚJO, Sonia Maria da Silva (Org.). José Veríssimo: raça, cultura e educação. Belém: EDUFPA. 2007. p.110.

[4] CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. Portugal: DIFEL, 2002. p 17.

[5] AZEVEDO, Célia Maria Marinho de Azevedo. Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites-século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.33 e 34

[6] A República, [Belém], 18 out. 1890. p. 03.

[7] Diário de Noticias, [Belém], 26 jan. 1892. p. 02.

[8] CANCELA, Cristina Donza. Amor e drama na imprensa paraense no final do século XIX. IN: ALVES, Maria Luiza Miranda; SANTOS, Eunice Ferreira dos Santos (Orgs.). Desafios de identidade: espaço- tempo de mulher. Belém: CEJUP/GEPEM/REDOR, 1997.

[9] Correio Paraense, [Belém], 22 jul.1892. p. 02.

[10]Op. Cit. 02 de jul. 1892. p. 02.

[11] CAMPOS, Ipojucan Dias. Divórcio e discursos jurídicos: significados sociais em Belém no final do século XIX (1890/1900). Textos e debates, Revista de Filosofia e Ciências Humanas: UFRR, Boa Vista, v. 10, p. 99-131, jun. 2006.

[12] ALMEIDA, Conceição Maria Rocha de. Imagens negras, espelhos brancos: um estudo das mulheres negras ao final do século XIX em Belém do Pará. IN: D'INCAO, Maria Ângela; ALVARES, Maria Luzia Miranda. A Mulher Existe? Uma contribuição ao estudo da mulher e gênero da Amazônia. Belém: GEPEM, 1995. p. 29.

[13] Correio Paraense, [Belém], 24 jul.1892. p. 03.

[14] CHARTIER, 2002. Op. Cit. p 17.

[15] LIMA, Helder Lameira de. Malditos de raça, malditos de cor: a imprensa abolicionista belenense e seus atropelos raciais. IN: NEVES, Fernando Athur de Freitas; LIMA, Maria Roseane Pinto. Faces da história da Amazônia.Belém: Paka-Tatu, 2006. p. 391.

[16] ALMEIDA, 1995. Op. Cit. p 28.

[17] Correio Paraense, [Belém], 2 jul. 1892. p. 02.

[18] ALMEIDA. Op. Cit. p. 29

[19] Idem.

[20] Correio Paraense,[Belém], 23 ago. 1892. p. 2.grifo nosso.

[21] AZEVEDO. Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Paulos, 2005. p. 55.

[22] SCHWARCZ,Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras. 1993. p. 30

[23] Idem. p. 30.

[24] LIMA. Op. Cit. p. 24.

[25]RODRIGUES, Raimundo Nina. As Raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939.

[26] Correio Paraense, [Belém], 10 mar. 1894. p. 2.

[27] Cf.: BARROS, Pedro Motta de. Alvorecer de uma nova ciência: a medicina tropicalista Baiana. Manguinhos-História, Ciência e Saúde, São Paulo, v. 4, n. 3, nov. 1997.

[28] ALMEIDA. Op.Cit. p. 31.

[29] TRINDADE, José Ronaldo. Mulheres de má vida: meretrizes, infiéis e desordeiras em Belém (1890-1905). In: D'INCAO, Maria Ângela; ALVES, Maria Luzia Miranda. A Mulher existe? Uma contribuição ao estudo da mulher e gênero da Amazônia. Belém: GEPEM, 1995. p. 41 e 42.


Autor: Elainne Mesquita


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