A IMPORTÂNCIA DOS ESPAÇOS PARA OS TUPINAMBÁS



A IMPORTÂNCIA DOS ESPAÇOS PARA OS TUPINAMBÁS

Marques, Marcio Renato[1]

Os tupinambás se distribuíam espacialmente desde o Nordeste até São Vicente e durante o século XVI foram desaparecendo gradativamente, após a chegada das epidemias trazidas pelos brancos e após as guerras promovidas pelos portugueses graças à aliança dos nativos com os franceses que culminara nas tentativas de ocupação no Rio de Janeiro e Maranhão.

Seu modo de vida mesmo sendo nômade continha complexa organização, devendo e muito a divisão do espaço para as diferentes tarefas realizadas na vida cotidiana. A divisão do espaço da aldeia comportava basicamente as malocas e o terreiro, tendo as moradias uma relação de certa autonomia para todo o grupo social.

A Organização da maloca

As malocas eram para a vida social e cultural dos tupinambás do Rio de Janeiro e São Vicente quinhentista um sistema de organização complexo, obedecendo às relações de parentesco entre os líderes locais e delimitando o espaço a ser ocupado pela população de determinado grupo.

Como definiu Florestan Fernandes as malocas (1963) eram unidades vicinais que obedeciam à lógica das "atividades econômicas", sendo responsáveis pela divisão do trabalho, sistematizando as atividades entre os pais de família, mulheres e agregados. (e por vezes cativos de guerra esperando sua execução)

Os cronistas do século XVI preocuparam-se com sua descrição física, reservando as relações sociais a Importância mínima, passando às vezes despercebida. Com base na primeira análise descritiva, a habitação dos tupinambás quanto ao tamanho é observada por Staden (1930) como uma construção com 14 pés de largura e 150 de comprimento; o calvinista Léry (1960) apenas afirma que possuem mais de 60 pés de comprimento, sendo de grande praticidade e mobilidade obedecendo à característica nômade dos grupos locais.


Aldeia de Ubatuba (grafada originalmente Uwatibi) (imagem digitalizada da pagina 130 da crônica de Staden: Viagem ao Brasil – Versão do texto de Marpurgo, de 1557. Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1930)


O nomadismo observado por Léry aparece pela constatação de que vivem no máximo cinco meses no mesmo local, migrando em busca de "ares melhores", mostra de que a tradição parece ser muito mais presente do que os fatores ligados a subsistência do grupo. Levando em conta o conteúdo da crônica é possível analisar a passagem a seguir da fonte: (e depois observar o diálogo por um dos elementos definidos por Certeau (2000) como fundamentais a etnologia)

E se lhes perguntarmos por que mudam tão freqüentemente, respondem apenas que passam melhor trocando de ares e que se fizessem o contrário de seus avôs morriam depressa (Léry, 1960, p 208)

O elemento da inconsciência apontado por Certeau se enquadra na referida situação. Seria ela uma série de fenômenos coletivos cuja explicação não é clara, embasada no tempo da sociedade "selvagem", pois este é imemorial. Outro elemento do quadrilátero complementar da etnologia do século XVII é presente na passagem acima: a oralidade. O autor francês se apóia em Lévi-Stráuss: onde a linguagem da crônica é de cunho histórico, não etnográfico; tenta explicar por uma linguagem que está acostumada a abordar o consciente falando de relações do inconsciente; ou seja, a comunicação feita pela sociedade primitiva (a oralidade) é presente apenas dentro de sua própria cultura, reservando ao outro uma resposta bastante subjetiva, principalmente se tratando de um diálogo despretensioso do cotidiano.

A necessidade de tal nomadismo se aplicava, tanto com base em necessidade de subsistência quanto à tradição, exemplificada nos hábitos de coleta de penas de aves para utilizá-las em adornos durante os rituais. O aspecto relacionado à subsistência apontado por Fernandes (1963) segue a lógica de uma busca por boas áreas agrícolas, próximas a cursos de água doce e a bosques para coleta de frutas e caça. Staden no início do nono capítulo de sua crônica exemplifica a busca pelas penas utilizadas nos rituais:

Ao pé da ilha, na qual fui aprisionado, há uma outra ilha pequena, onde se aninham uns pássaros marítimos de nome Uwara (guará - mirim).Perguntaram-me os índios se os seus inimigos Tuppin Ikins tinham estado lá este anno,para apanharem os pássaros e os filhotes [...]estimam muito as pennas daquelles pássaros, porque todos os seus enfeites são geralmente de pennas. ( Staden , 1930 . p 62)

A busca por penas de pássaros juntamente com áreas de pesca estimulava o contato entre povos inimigos, criando áreas de litígio. Tais áreas tinham por característica peculiar tendo em vista a construção das aldeias, a utilização de caiçaras duplas, ausentes em áreas tidas como seguras. A aldeia de Ubatuba onde Staden esteve cativo serve como exemplo de grupo social encravado no limite com aldeias e povoações inimigas, tendo nas malocas populações predominantemente guerreiras em constante migração, ainda conservando o costume de depositar em suas paliçadas as cabeças dos inimigos decapitados.

Apesar do nomadismo e das diferenças com relação as áreas próximas ou não dos inimigos, as aldeias tupinambás procuravam se fixar em áreas amplas, com a distribuição das terras férteis acontecendo de maneira autônoma, onde cada pai de família recebia um pedaço de terra que variava para plantar principalmente mandioca.(FERNANDES,1963)

A quantidade de malocas nas aldeias é tema de certa discussão para as fontes: Gândavo (1980) afirma que os tupinambás do nordeste constroem aldeias com 7 ou 8 habitações coletivas,Staden fala em apenas 7,Léry fala que dentro de cada maloca viviam cerca de 600 pessoas, sem citar no entanto quantas delas existiam emJaboraci.Para Fernandes a idéia mais plausívelé a de Alfred Métraux,cuja quantidade de habitações variava entre 4 e 7, tendo entre 50 e 200 indivíduos divididos em cerca de 60 ranchos de 12 pés (por maloca) variando quanto as relações polígenas e reservando ao morubixaba e sua família o centro.

O interior da grande habitação coletiva dos tupinambás, continha nos referidos ranchos espaços para as redes (innis), fogueira individual e uma pequena área livre, por vezes depósitos de alimentos. (inclusive restos de festins antropofágicos como descreve Staden):

[...] A carne de Hieronymus estava ainda dentro de uma cesta, pendurada ao fumeiro, na cabana onde eu estava, havia mais de três semanas; estava tão secca como um pau por estar tanto tempo ao fumeiro sem que a comessem. (Staden, 1930 p 112)

Os rituais antropofágicos se realizavam no espaço central da aldeia, circundado por todas as malocas; sendo inclusive este o ponto de comunicação com o mundo espiritual, o terreiro. Neste espaço se realizavam as reuniões entre os morubixabas de todas as malocas, era onde o caraíba entrava em transe e se comunicava com os espíritos dos ancestrais, onde o cauim era largamente consumido nas diversas cerimônias.

As freqüentes reuniões, no entanto não estabeleciam uma relação de convivência próxima entre os morubixabas. Como apontou Fernandes (1963), estes tinham maior proximidade com os indivíduos da mesma maloca, servindo elas responsáveis por balancear as tensões dos grupos locais como um todo. A maloca era o centro da menor organização social dos tupinambás, porém não eram unidades autônomas e sim complementares dentro de determinado grupo social onde as relações de hierarquia se davam em volta do patriarca e seus agregados, no caso genros; pois era costume após união estes migrarem de maloca e servirem solidariamente o pai da família.

No entanto, o grau de parentesco era sem dúvida fator determinante em sua organização social, co-existindo com os estabelecidos nas aldeias, agindo como prioridade em situações extremas. Assim as atividades de cooperação tinham laços muito específicos, diferenciados entre aldeias localizadas em áreas seguras e não seguras:

[...] Chegou a notícia de uma aldeia chamada Mambukabe, que os Tuppin Ikins tinham atacado [...]Então Jeppipo Wasu (que tinha poder sobre mim e muito me maltratava) foi para lá,porque eram seus amigos e parentes e queria ajudá-los a fazer novas cabanas.Por isso levou todos os amigos de sua aldeia.(Staden,1930 p 82)

A relação de amizade acima em situações extremadas aparecia de modo complementar interligando os amigos e parentes de malocas diferentes. Em casos de guerra, no entanto,prevalecia a organização da maloca onde os genros deviam obediência ao morubixaba.

A importância "econômica" da habitação faz referência a produção de redes pelas mulheres, a produção de adornos e as mais variadas tarefas domésticas. O teor do referido valor de tais atividades mede-se ligado ao caráter guerreiro dos tupinambás, ao mesmo tempo em que as mulheres produzem o essencial para a subsistência e perpetuação das práticas religiosas, os homens vivem em alerta quanto a conflitos bélicos no caso de defesa, buscando para os ataques os presságios dos ancestrais no terreiro, transmitidos pelos caraíbas.

O Terreiro e a Vida Espiritual

Sem dúvida a vida espiritual dos grupos locais estava ligada intimamente a natureza guerreira tupi, onde a ritualística da à preparação para a guerra resgatava raízes míticas, de diversas variações sendo uma destas exemplificada por Fujimoto (2007); vindo desde os presságios dos caraíbas em meio as cauinagens o exemplo da citação de Léry utilizada pela autora, que diz respeito a um diálogo entre o calvinista francês e um ancião:

Há muito tempo, não sei mais quantas luas, um mair como vós, e como vós vestido e barbudo, veio a este país e com as mesmas palavras procurou persuadir-nos a obedecer a vosso Deus, porém, conforme ouvimos de nossos antepassados, nele não acreditaram. "Depois desse veio outro e em sinal de maldição doou-nos o tacape com o qual matamos uns aos outros; e há tanto tempo já o usamos que agora se desistíssemos desse costume as outras nações vizinhas zombariam de nós". (LÉRY, 1972. Apud In Fujimoto, p 4, 2007)

Além de tal mito apontado por Léry, outro viajante André Thévet (1575) nos mostra outra versão da tradição guerreira tanto perpetuada pelos tupinambás. Tal relação surge inclusive no final do mito da criação, onde os filhos de Sumé (segundo grande Pagé e caraíba, descendente do índio queimado por Maira-Monan, como vingança contra os homens. Maira Monam por sua vez é filho de Irin-Magé, homem que foi poupado da morte por Monam, o criador de tudo) travariam uma batalha eterna, de um lado o patriarca dos tupinambás e do outro o dos Tominous.

A guerra é fundamental para os grupos sociais, tem origens imemoriais e estava dependente em ações de ataque dos presságios, antecedida da conferência dos morubixabas visando períodos específicos do ano. Staden afirma que para os tupinambás de Ubatuba, este espaço de tempo coincidia com a desova do pratty[2]·, ou de alguma fruta silvestre. Por vezes como afirmou o mesmo cronista os próprios caraíbas tornavam certas mulheres adivinhas, defumando-as e questionando as posteriormente sobre a sorte na guerra.

As previsões baseavam-se quase que exclusivamente na leitura dos sonhos da noite anterior, precedida de danças e do farto consumo do cauim. O terreiro era o ponto de encontro para as festas e logo o espaço onde os nativos se reuniam e contavam ao Page os bons e maus sonhos, assim era o ambiente que aproximava as famílias de todas as malocas ao redor de interesses em comum.



Ferdinand Denis. Dance guerriére de religieuse de tupinambas. Acervo digital da biblioteca Nacional.

Na gravura de Ferdinand Denis aparece de maneira nítida a importância da guerra e sua ligação íntima com o mundo espiritual. Os três pagés ao centro agitam seus maracás e defumam os guerreiros com fumaça do pettyn[3] no espaço central da aldeia. Percebe-se que a lógica do ritual descrito na imagem é de preparo para a guerra anterior a cauinagem e de que nenhuma mulher é representada na dança que parece se resume a movimentos circulares.

Todos os tupinambás utilizam como adorno um fecho de penas de aves, porém retiradas como afirmou Léry de outras regiões, pois estas penas eram muito maiores, o que é um indício não muito claro de troca entre gêneros entre culturas diferentes.

No terreiro, além dos tradicionais presságios, preparação do cauim e rituais antropofágicos, ocorriam os enterros dos mortos com o que sugere a próxima imagem, a participação de membros da mesma maloca.


Ferdinand Denis. Funeráilles des tupinambas. Acervo digital da biblioteca nacional
Autor: Marcio Renato Marques


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