CENTO E CINQUENTA CADERNOS



 

CENTO E CINQÜENTA CADERNOS

de Romano Dazzi

 

Sozinho.

 

Acordou com uma pesada sensação de solidão. 

 

Estava estendido na praia, ao lado do seu barco encalhado. Devia ter batido a cabeça, porque estava com um grande galo dolorido, bem na testa.

 

Aos poucos foi se lembrando dos acontecimentos.

 

Na noite anterior tinha saído com o barco carregado de alimentos, do porto de Insan, e seguiria umas 200 milhas para o norte, até a ilhota de Guant-su.

 

De lá, deveria navegar por uma semana, rumo a ilha de Ken-lai, onde descarregaria tudo,  voltando a seguir com o barco vazio.

 

Em Guant-su não havia absolutamente nada; era um minúsculo rochedo deserto, com 200 metros de praia,  cercado por centenas de milhas de oceano e  que provavelmente nem constava nos mapas. 

 

Mas para o seu velho barco era uma parada  obrigatória.

Nem ele nem os motores agüentariam a viagem de um fôlego só.

 

A ilha  também servia de abrigo quando  as monções faziam mudar o clima de repente, e os ventos fortes punham em perigo a frágil embarcação.

 

Muitas vezes ele tinha passado a noite em Guant-su, dormindo no barco ancorado a vinte metros da areia.

 

Não conseguiu descobrir – ou lembrar- o que tinha acontecido. Talvez tivesse batido em algum  recife submerso, ou  um súbito golpe de vento o tivesse feito adernar.

 

O barco estava inutilizado, em seca, com uma grande rachadura no casco. Assim como estava, não navegaria mais, a não ser que pudesse ser reformado em um estaleiro. E o estaleiro mais próximo estava 250 milhas ao sul.

 

De repente, percebeu  o inusitado da situação.

 

Sorriu para si mesmo, quando lembrou do “Náufrago” do Spielberg; e deu logo de ombros, dizendo: não me chamo Tom Hanks e não trabalho na FedEx; e nem americano eu sou!

Qual é, gente?

Nem com a ajuda de um bom diretor eu conseguiria me safar desta, como aquele cara....

E o Robinson, então ? como iria criar  galinhas, semear alface, caçar porcos-do-mato  e encontrar algum Sexta feira, para jogar baralho nas preguiçosas tardes de verão ? Mais inverossímil ainda!....

 

O que ele tinha a bordo era uma boa quantidade de comida, água, refrigerantes, coisas que garantiriam sua sobrevivência por um bom tempo - e isso deixava-o sossegado

 

Não precisaria usar arpões mágicos, para pegar peixes oceano adentro, nem esperar por chuvas improváveis, para sobreviver.

   

Durante dois dias examinou todas as possibilidades de ser resgatado. Sabia que ninguém prestaria atenção ao desaparecimento de seu barco, pouco maior que uma barcaça, desprovido dos modernos meios de comunicação, que estão hoje  em qualquer caiaque  americano.

 

Estava perdido, sozinho, sem esperanças; e esta sensação começou a pesar cada vez mais nos seus ombros.

 

Aos poucos, começou a tentar lembrar todos os passos do azarado Tom Hanks, e a examinar quais seriam aplicáveis no caso dele.

 

Hollywood ou não, as coisas estavam correndo paralelamente.

 

Perdeu algumas horas atrás destes pensamentos, mas  era  um homem lógico  e pragmático; a situação difícil aguçava sua percepção de  que,  nada havendo a fazer, tudo estava resolvido.

 

Precisaria acreditar, confiar e aguardar, sem desistir, sem entrar em pânico, sem enlouquecer.

 

Não seria fácil.

 

Começou a organizar-se  fazendo um inventário do que possuía.

 

Ao verificar a carga, notou  uma caixa que não tinha visto antes.

Era destinada à escola primária de Ken-lai e continha – é claro -  material escolar; eram  15  pacotes de 10 cadernos pautados e 140 canetinhas. No momento, não se perguntou por que tinha mais cadernos que canetas, mas estava eufórico: justamente agora, quando as dúvidas começavam a brincar de esconde-esconde com ele, tentando faze-lo fraquejar, a descoberta deste tesouro era uma surpresa maravilhosa.

 

Contou e guardou tudo cuidadosamente, mas decidiu logo que escreveria um diário, contando em detalhes o que viesse a acontecer; lembrou logo do que a publicidade apregoava:  uma caneta pode escrever cem mil palavras.

 

140 canetas, são 14 milhões de palavras.  Elas caberiam em 150 cadernos ?

 

Então, sem titubear, iniciou uma tarefa que lhe pareceu simples e agradável: começou a escrever.

 

Foi fácil relatar os acontecimentos recentes; as sensações, as impressões, tudo o que vinha à sua cabeça - tentando ver algum lado engraçado nisto tudo.

 

Pensava nas crianças de Ken-lai agradecendo aos deuses o sumiço dos cadernos, e a suspensão das aulas por tempo indeterminado;

imaginava Kiu, a sua namorada indecisa, caindo nos braços do seu concorrente, Hang, que a consolaria bem depressa do sumiço do pretendente numero um ; adivinhava a raiva dos que haviam pago um bom dinheiro pelo transporte das mercadorias, transformadas agora em mera lembrança.

 

Estes e outros pensamentos enchiam a cabeça dele e se transformavam em ordenados garranchos, enquanto as horas e os dias se acumulavam.

 

Foi percebendo, aos poucos, como as coisas, sem a presença do homem,  se mexiam lentamente, preguiçosamente.

Convenceu-se que cabe sempre  a ele, o  homem,  movimentar o  mundo, tomar as iniciativas, sacudir o presente, preparar o futuro, tornar-se  mestre de todas as situações.

 

O tempo do homem é curto, apertado, afunilado; inconscientemente, ele sabe que está sempre para acabar. E tem pressa de fazer qualquer coisa, de criar e cumprir obrigações e horários, de ter relógios e calendários; de dar nome a cada um dos dias, mesmo que sejam  rigorosamente iguais um ao outro e que, se por acaso perder a conta, nunca mais saberá qual era o “quando” em que ficou.

 

A natureza, pelo contrário, joga com o homem,  aguardando pacientemente, por um tempo enorme, como em uma  partida de xadrez, o movimento do adversário. Depois, de repente, ela põe em prática algum plano diabólico. Aí, o céu escurece, as nuvens se amontoam, os ventos sopram furiosamente – e adeus ilha, adeus barco, adeus náufrago.....Para anunciar o fim, bastam duas palavras, em qualquer língua: the end, alles kaput,  tudo acabou, tutto finito. 

 

 

Três ou quatro dias depois, percebeu que um diário em que nada  acontece não é um diário; é apenas um caderno vazio. Não havia como ir para a frente.

 

E nada acontecia mesmo, a não ser a lenta mudança na forma das nuvens no céu, que ele registrou pacientemente, descrevendo os golfinhos, e os anjos e os cones de sorvete que se formavam lentamente, e lentamente perdiam suas formas, dissolvendo-se preguiçosamente no ar.

 

Dois dias mais, descrevendo nuvens, e  ele já não agüentava mais, estava por aqui.

 

Teve que recorrer ao passado. Porque, na verdade, é a única coisa sobre a qual temos controle. Nós podemos  torcer o passado transformá-lo do jeito que quisermos.

 

Assim, aos poucos foi reconstruindo a sua vida, montando fatos e pormenores  que tinha esquecido completamente , indo cada vez mais para trás.

 

O silêncio, a brisa, o mar, o céu,  conspiravam para que ele encontrasse e fiasse longas linhas de fatos, tecendo assim novamente, e devagar,  a tela de sua vida.

 

Aprendeu a ordenar as lembranças, a organizar os pensamentos, a dominar as emoções. Encheu cadernos, esvaziou canetinhas, dia a dia, comprovando que o fabricante tinha razão. Cada uma, cem mil palavras. 

 

Já tinha completado 70 cadernos de besteiras – como ele mesmo já as considerava -, quando deu com algo estranho; ficou intrigado com um pacote, diferente dos outros, no qual todos os cadernos eram usados; em todos eles, páginas e páginas de garatujas, ordenadas com a inconfundível precisão oriental,  contendo nomes , datas,  valores, fatos.

 

Uma infinidade. Uma montanha de dados. A sua experiência e o seu instinto disseram-lhe imediatamente que era algo ilegal. Mais que ilegal: criminoso.

 

Era a contabilidade de um sindicato mafioso, estabelecido em Insan, e registrava a coleta de milhares de dólares – nenhum sindicato que se respeite recebe em moedas menos nobres - arrecadados com meios pouco convencionais.

 

Provavelmente acossados pela polícia, os “bosses”  tinham decidido transferir os arquivos para outro lugar, Ken-lai talvez, usando a remessa de material escolar; numa operação simples, a mudança aconteceria tranquilamente, sem levantar suspeitas.

 

E agora os livros não estavam mais em Insan  e nem tinham chegado a Ken-lai .

 

A Máfia devia estar bem atrapalhada – e assustada – com isso.

 

Sensações confusas amontoaram-se na cabeça do náufrago.

 

Com certeza – raciocinava - neste momento  alguém deve  estar louco para pôr as mãos nas anotações; são valiosas e importantes demais, para os chefões da Máfia.

Já as estarão procurando por todo lado, por todos os meios, interrogando, ameaçando e assustando sabe-se lá quantas pessoas. Se vierem a saber que a caixa foi carregada em minha barcaça, poderão facilmente calcular a minha  rota e descobrir  onde ela foi parar. É apenas uma questão de tempo. A Máfia matará sem dó qualquer um que tenha posto os olhos naquelas folhas.  

 

A descoberta virou pelo avesso toda a sua perspectiva:

 

Antes, estava em uma incômoda situação de solitário, abandonado numa ilha deserta, mantendo uma ilógica esperança -  sem nenhuma convicção – de ser resgatado um dia, por milagre.

 

Agora, passou de repente a ficar assustado, a temer por sua vida,  a desejar ardentemente ter um abrigo, uma proteção; queria fugir, se esconder, sumir para sempre.

 

Mas num homem racional, a emoção dura pouco. Reconstruiu os fatos, como os imaginava, estudou o que poderia acontecer e decidiu enfrentar esta nova  realidade, por mais feia que fosse.

 

Como sempre,  se não houver mesmo mais nada a fazer, tudo já está feito. Mas sempre sobra alguma coisa a fazer.

 

Pôs mãos à obra, com o que tinha: 60 cadernos em branco (mais dez assustadores) e 70 canetas.

 

Durante uma semana, cuidadosamente, reescreveu e reescreveu. Não o diário, não; mas tudo o que estava nos dez cadernos da Máfia. Fez uma cópia completa, perfeita, de todas as anotações, de todos os pormenores.

 

Às vezes, cansado de escrever, perguntava-se se valia a pena todo este trabalhão.  Mas era o instinto de sobrevivência que mandava nele.  

 

Quando acabou, refez o pacote como pôde, dobrou, colou, amarrou e repôs tudo na caixa. 

 

Estava metido em um enrascada braba; tinha usado a metade dos cadernos;  se não os recolocasse todos na caixa, sobraria muito espaço, levantando imediatas suspeitas ; se os repusesse, os mafiosos veriam o diário e descobririam que ele lera as anotações; isto selaria  a sua sentença de morte.

 

Escolheu a primeira alternativa, a menos pior. Encheu com papelão todos os espaços vazios, e fechou definitivamente a caixa, agora com 7 pacotes,  60 canetas e uma grande quantidade de seu medo. 

 

Embrulhou depois cuidadosamente em um plástico grosso as cópias feitas, fez um buraco profundo na areia e enterrou o pacote, marcando com precisão o lugar. O diário, escrito com tanto carinho, teve o mesmo destino. Um profundo buraco na areia.

 

Estava ainda rezando, três dias depois, quando um veloz barco patrulha da guarda costeira se aproximou e atracou ao lado da barcaça .  Dele desceram três policiais armados, mal encarados, que pareciam já saber tudo sobre o naufrágio. Sem perguntar nada, sem falar com ele,  inspecionaram a carga, descobriram a caixa fechada e a carregaram para o barco patrulheiro.

Não deram a mínima ao náufrago, não falaram com ele, não o ameaçaram. Como se não existisse.

 

Nesta altura, ele não sabia se seria melhor pedir para ser resgatado, ou continuar onde estava.

Tinha descoberto os perigos reais do mundo civilizado; bem piores do que poderia ter imaginado.

 

De qualquer forma, porém, não estava nas intenções dos policiais levá-lo com  eles. Foram embora, deixando-o lá, novamente sem esperanças, mas - pelo menos por enquanto – vivo.

 

A adrenalina subiu de novo e agitou seus pensamentos .

Se a policia sabe dos cadernos – pensava - com certeza foi por obra de algum informante.  E se me deixaram aqui, é para servir de isca para a máfia.

Seu pavor era evidente. Ia desconsolado de um lado para outro, parava, recomeçava a andar, parava novamente. Nada mais poderia fazer.

Finalmente, sentou-se na beira do mar e esperou pacientemente que a maré, subindo, começasse a lamber-lhe os pés. Era uma sensação agradável, tranqüilizadora. A única atitude lógica que poderia tomar.

 

Depois de mais dois dias de expectativa, finalmente, outro barco apareceu. O náufrago tinha uma história ensaiada, prontinha para contar aos mafiosos; uns policiais tinham vindo, tinham levado uma caixa, só uma caixa e mais nada  – e ele não tinha a menor idéia do porquê .

E tinham-no deixado lá, sozinho, para apodrecer na maldita ilha.

 

Ainda pensou nas crianças da escola de Ken-Lai, cuja folga estava acabando, porque logo receberiam os cadernos; mas concluiu que o que tinha acabado, de verdade, era a sorte dele.

 

Entretanto, uma outra surpresa o esperava; em lugar de um barco pirata, como imaginava, este também era um  barco patrulha – e também da  guarda costeira,  em tudo parecido com o primeiro.

Atracado, dele desceram três policiais armados. Tudo se repetia, exatamente como da primeira vez. Um “déja-vu” perfeito.

Estes policiais também eram sérios, secos, com cara de poucos amigos, e não fizeram perguntas. Simplesmente o ignoraram.

Decididamente, pensou, estes também não são mafiosos; todos os mafiosos se parecem, e agem de forma semelhante;claro que, dependendo de sua origem, eles adquirem algumas características exteriores  diferentes.

Um mafioso italiano usa terno preto clássico, com paletó envelopado de seis botões, , (os mais velhos não conseguem abandonar o padrão “risca de giz”), camisa branca de mangas compridas, abotoaduras de ouro, gravata berrante com alfinete de ouro decorativo, quase sempre com  as iniciais , sapatos de grife, meias brancas. E os chapéus, então: feltro macio, abas largas – curvas suaves, cores cinza pastel; um luxo.

Em tudo, eles têm  estilo, classe.

Parece incrível; todos os mafiosos continuam   imitando  o Marlon Brando. Há séculos, é ele que vem ditando o padrão.

Os mafiosos russos, não; eles usam ternos mais comedidos, pretos também, e não muito destacados dos padrões tradicionais.

Usam gravatas pretas, mais simples, mais finas, sem adereços inúteis, atraindo bem menos a atenção. Até os chapéus são mais simples. Mas usam  as mesmas meias brancas .Os sapatos são ordinários, resíduo genuíno  de algum plano qüinqüenal  stalinista. Infelizmente, não usam mais as famosas polainas cinzentas, à la George Raft .

Mas a grande diferença está nas medidas dos russos: eles têm vinte centímetros a mais. Em altura, em largura e em profundidade. São como umas paredes, mas  bem mais consistentes.  

Os mafiosos chineses , então, são incorrigíveis; não seguem absolutamente o padrão ocidental; pior, acabaram com ele.

Usam calças jeans, camisetas pretas  curtas, às vezes  sem mangas,  com inscrições não raro vulgares ou ofensivas.

Atrevem-se a usar tênis horríveis e na cabeça enfiam uns inomináveis gorros pretos de lã. Pode fazer  40 graus no convés, os gorros pretos continuam lá.

Quebram assim uma tradição séria e antiga  e estragam , definitivamente o protótipo do mafioso original, autêntico, genuíno.

 

Bem, estes eram policiais como os anteriores; decididamente,  não eram, não poderiam ser mafiosos; mas não ficavam devendo nada aos da primeira invasão. E estavam procurando a mesma coisa: a caixa de cadernos.  

Não a encontrando, pensaram que o náufrago a tivesse escondido; começaram a berrar, a ameaçar, a exigir a entrega, com maus modos,; custaram a acreditar que um barco igualzinho ao deles, tinha levado a caixa, menos de 48 horas antes.

 

As caras deles, já feias, pioraram muito com esta descoberta. E embarcaram logo, sem dar mais bola ao coitado, que, pela segunda vez, se via abandonado ao seu destino. Ele ainda estava repetindo a estória ensaiada, enquanto o barco se afastava rapidamente.

 

Tentou raciocinar: dois barcos da polícia, duas tripulações truculentas, duas ações agressivas praticamente iguais. Um grupo seria policial, mas o outro, só poderia ser da Máfia, disfarçado.

 

Mas qual ? Os primeiros tinham levado os cadernos – se fossem policiais, a Máfia estaria perdida. Se fossem mafiosos, eles estariam novamente de posse dos seus dados e tudo voltaria ao “normal”.

 

Ambas as ações tinham sido tão rápidas que os pormenores não ficaram gravados na sua mente. E não era o caso de continuar com conjeturas.

 

Alguém voltaria ?

 

Alguém viria, para resgatá-lo, e fazê-lo testemunhar que tinha encontrado os cadernos? Ou para elimina-lo; e com ele a única prova de que os cadernos existiam ?

 

Os dias continuaram passando, as horas transcorrendo sem pressa, uma após a outra, sinal evidente que as vicissitudes humanas pouco importam ao Cosmo.

 

No náufrago, como sempre, a um primeiro momento de desesperada incerteza, seguiu-se um período de reajuste, como acontece aos olhos, quando tentam se acostumar a uma luz repentina. Depois, enfim, chegou aquela sensação de  calma resignada, que antecede um desfecho qualquer, não importa qual.  

 

Andava pela praia, sem conseguir resolver o dilema que o torturava, e ao mesmo tempo sem conseguir afastar-se dele e deixa-lo, como deveria, para os dias ou as semanas seguintes.

 

Passou distraído por umas pedrinhas bem ordenadas, que já vira, sem vê-las realmente, um ou dois dias antes.

Eram seis pedrinhas brancas, dispostas como um triângulo: três, depois duas, depois uma.

Voltou para observa-las melhor, sentou no chão, pensando, refletindo, povoando a memória de lembranças antigas.

 

Quando crianças, ele e os primos, brincavam,  todos os verões, num amplo terreno atrás da casa.

Aquilo era para eles o próprio oeste selvagem; patos e galinhas eram índios e como tal eram perseguidos  a estilingadas e sofriam fortes baixas em emboscadas noturnas; montados em cavalos de pau, os meninos riscavam a areia levantando poeira e galopavam à rédea solta pelas pradarias; um gato indisciplinado e dois cachorros sofredores, eram as manadas de búfalos que os garotos levavam cutucando-os sem trégua, para novos pastos, nas montanhas distantes. 

Justamente para não se perderem naquele enorme quadrado de 100 metros por 100, tinham estabelecido um marco, que era também um sinal de reconhecimento. Seis pedrinhas brancas, arrumadas em três fileiras, com três, duas e uma pedra, formando um pequeno, mas inconfundível triângulo  

 

Golfadas de alegrias passadas, rios de carinhosas lembranças, lhe chegaram aos borbotões, quase sufocando-o de emoção.

Este era o sinal. Um dos primos, provavelmente o Meh, tinha deixado uma mensagem silenciosa, mas clara. O náufrago não estava só.

Mas a qual grupo ele pertenceria? E ainda, de novo: o que era cada um deles ? Bandido ou mocinho ?

 

A resposta chegou alguns dias depois. Era tarde da noite, uma noite de lua cheia, e o náufrago dormitava  calmamente na praia, coberto por uma lona rasgada. 

Apesar do murmúrio do mar, ele pôde distinguir claramente o pipocar dos motores de uma lancha.

Depois o barulho parou e a lancha branca surgiu, avançando lentamente, iluminada pelo luar. 

A bordo estavam seus dois primos, Meh e Chuh, ambos policiais.

Desceram do barco, puxando pela praia uma grossa corda, que amarraram na barcaça destroçada.

Com o barco seguro, correram a abraçar carinhosamente o náufrago. Este gesto de carinho, depois de tanta solidão e de tantas emoções, foi a gota final.

Ele desabou em um pranto incontido, soluçando e abraçando os primos, quase pulando de alegria.

Logo vieram as explicações: nenhum dos dois barcos era da polícia; eles pertenciam a duas facções rivais da máfia e, evidentemente, só a primeira tinha conseguido reaver os cadernos.

A segunda tinha chegado tarde, perdendo o jogo.

A polícia – bem, a polícia tinha conseguido apenas colocar um olheiro a bordo do segundo barco.

Por sorte do náufrago, esse espião era o Meh. O resto foi fácil de adivinhar. A mensagem em código secreto, deixada pelo Meh, foi percebida pelo náufrago, que esperou ansiosamente a chegada do resgate.

 

Mas a maior surpresa, para os policiais,  foi descobrirem o trabalho enorme que ele tinha feito, copiando os 10 cadernos de notas.

Finalmente, a Polícia teria provas de todas as ações criminosas da Máfia naquelas ilhas. 

 

O resultado disso seria uma limpeza tão completa, uma redução tão drástica das atividades ilegais,  que dificilmente a Máfia voltaria a  agir antes de dez anos.

 

A festa foi rápida. A longa viagem de volta para Insan devia ser concluída antes do amanhecer

Recolheram tudo que podia caber na lancha, abandonando muitas mercadorias. O náufrago ficou de repente com saudade da “sua” ilha. Deu uma longa olhada à estreita faixa de areia que fora seu lar nos últimos dois meses e lamentou não poder voltar aqui, para passar a lua de mel com a namorada, Kiu.

 

O barco partiu. Trezentos metros adiante, a ilha já era apenas uma sombra, misturando-se lentamente com a escuridão do mar.

 

 


Autor: Romano Dazzi


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