O SERMÃO AUTOBIOGRÁFICO



O SERMÃO AUTOBIOGRÁFICO

 

Um dos dias mais tensos para qualquer seminarista no SPN (Seminário Presbiteriano do Norte) do Recife, era o fatídico dia do sermão de prova. Naquele tempo o curso de seminário era um curso de muita bagagem – cinco anos. Aulas diárias de segunda a sexta, muitos trabalhos escritos, professores que eram verdadeiras sumidades e alunos realmente exemplares.

 

Os sermões de prova eram proferidos pelos concluintes. Atrevo-me a dizer que eram verdadeiras conferências teológicas ou poesias em forma de sermões. Quem se esquece do sermão de Edésio Chequer sobre Bartimeu:

 

“Senhor, que eu veja!”

 

 “Que eu veja as folhas das árvores agitadas pela brisa. Que eu veja o sorriso daqueles que me ajudam. Que eu veja o rostinho das crianças, o regato cristalino descendo das colinas, as flores multicores dos prados verdejantes, os belos animais, grandes e pequenos... Senhor que eu veja as mãos que para mim se estendem. Senhor Jesus, que eu veja teu rosto”.

 

“Vê, Bartimeu, a tua fé te salvou!”

 

Nos dias de sermões de prova  de Adauto Magalhães, os alunos já diziam:

 

- Hoje a coisa vai esquentar!

 

Antes de cada sermão de prova professores e alunos recebiam um esboço para o acompanhamento. Quando o sermão terminava, começando pelo professor de Homilética, Dr. Othon Guanais Dourado, seguido pelo professor de Arte de Falar, Rev. Thomas Folley, todos os professores faziam um comentário público a respeito do sermão. Era realmente para estressar qualquer um.

 

Qualquer deslize teológico, tínhamos os dois “cobrões” da Teologia para ajeitar a coisa, Rev. João Dias de Araújo e Rev. Áureo Bispo dos Santos. Qualquer deslize em relação à História e Geografia da Bíblia, tínhamos o erudito Rev. Paul Pierson para consertar o relevo. Se houvesse alguma referência ao Grego, tínhamos o Rev. Victor Pester para conferir e ao Hebraico, tínhamos o Rev. Hans Neumann, com seus 220 quilos de peso, quase dois metros de altura e seu domínio de 17 idiomas.

 

Desnecessário dizer que esse foi um tempo esplêndido do SPN.

 

Nós tínhamos um colega bem “galego”, chamado Oswaldo Hack. Creio que ele viera de Santa Catarina ou do Paraná. Ele tinha um sotaque diferente para nós nordestinos, que lhe davam uma característica toda especial. Ele era bastante estudioso, inteligente até demais, meio fechado, talvez por conta de ser “estrangeiro” entre nós, mas um amigo leal.

 

Chegou, finalmente o dia do sermão de prova de Oswaldo Hack. Por um fenômeno meio inexplicável, a estudantada esperava com ansiedade aquele dia. Tínhamos um culto diário entre as aulas, que durava trinta minutos. O candidato tinha que preparar uma liturgia e pregar o sermão. Depois da pregação, como já dissemos, ele era crivado pelos professores. Nós chamávamos esta sessão de “alta crítica”. Do lado de fora tínhamos um pequeno recreio depois do culto e os estudantes aproveitavam para fazer seus comentários. Era a nossa vez. Esses comentários eram chamados de “baixa crítica”.

 

Quando recebemos o roteiro do sermão do Hack, ficamos meio intrigados em relação ao estilo do sermão. Depois do tema e do texto bíblico estava escrito “Sermão Autobiográfico”. Houve um zum zum no meio da turma. Que raio de sermão era aquele? Autobiográfico? Estávamos acostumados com a seguinte nomenclatura: Sermão Tópico, Sermão Expositivo Sobre Parábola, Sermão Expositivo Sobre Milagre, Sermão Biográfico, Sermão Expositivo Sobre Incidente Histórico e por aí, mas Autobiográfico?!!!

 

Será que o Oswaldo ia contar a vida dele desde menino lá em Santa Catarina?

 

Bem, só nos restava esperar.

 

Chegou o tão aguardado momento. O Hack não subiu ao púlpito. Aliás, procurávamos o cidadão por toda parte do auditório e ele não estava lá. De repente subiu ao púlpito um colega nosso o qual assim nos saudou:

 

Povo do Senhor, arraial do Todo-poderoso, relembrando nossa abençoada História, chamo à vossa memória o testemunho dos patriarcas que nos legaram nossa bendita Lei, etc, etc, etc. A linguagem era tipicamente veto testamentária. Ele foi por aí, com uma voz solene, abrindo os braços com as mãos espalmadas, parecendo um antigo levita. Lá pelas tantas, ele anunciou o pregador:

 

Congregação de Jeová apresento-lhes neste momento, para trazer uma mensagem de  alerta para todos nós, o profeta Amós.

 

O Oswaldo veio ao púlpito, olhou-nos a todos com uma expressão profética e destampou:

 

- Casa de Israel, eu sou Amós. Não sou profeta, nem filho de profeta, mas boieiro e colhedor de sicômoros, e o Senhor me tirou de após o gado e me enviou a vós. Eis que vós estais vendendo o pobre por um par de sapatos e dormis em camas de marfim sem atentar para as necessidades do povo.

 

E o Hack continuou seu sermão profético e lançou um libelo tão feroz, que até vivenciamos a situação e trememos em nossos lugares. 

 

Quando ele terminou e o Dr. Othon tomou a palavra, interpretou o pensamento de todos nós. Ele disse:

 

- Irmãos, o Hack nos tomou de surpresa. Rapaz inteligente. Não tenho nada a comentar sobre este sermão. Quem sou eu para criticar um dos grandes profetas de Israel?

 

Demos uma sonora gargalhada e os outros professores comungaram da mesma opinião. Foi um dia histórico para o Seminário Presbiteriano do Norte.


Autor: Paulo de Aragão Lins


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