Nota à influência das minorias sobre as maiorias - O caso Alice Moderno



Segundo Maria da Conceição Vilhena, Alice Moderno (A.M.) foi "a primeira mulher a frequentar o liceu de Ponta Delgada. A primeira mulher a cortar o cabelo nos Açores. A primeira mulher directora de um quotidiano em língua portuguesa. A primeira mulher que, naquele meio, decidiu viver só do seu trabalho. A primeira mulher que, nos Açores, se preocupa com a condição feminina" (in Insulana, 60 (2004): 31). Além de ser, como se pode ler na continuação dessas linhas, escritora, empresária, professora… Pretendo aqui co-mentar brevemente esse texto, não o tomando como meu objecto, mas como sugestão para pensar a partir dele.

Alice Moderno e a valorização micaelense do trabalho.

"Relativamente às mulheres da classe mais favorecida, A.M. tentou despertá-las para a dignidade que vem do trabalho e da independência financeira, falando da nobreza que lhes adviria, quando deixassem de ser apenas a que dá um herdeiro ao marido, para se tornarem participantes e responsáveis da sociedade em que viviam" (ibid.). O itálico é meu – acentua a opção e defesa de uma das duas concepções tradicionais do trabalho. Com efeito logo no Livro do Génesis o trabalho é apresentado, por um lado, como uma condenação, um castigo como o do tripalium, instrumento de tortura instituído depois em sugestão semântica da conotação de "trabalho". Mas também o é, por outro lado, como acto de assunção da semelhança humana ao Criador, visto que o trabalho se constitui precisamente como um processo de criação. Pelos vistos A.M. bateu-se em S. Miguel por esta segunda concepção.

Mas no país que a despeito da sua pequena população e relativa pobreza parece ser onde mais se deseja a riqueza sem trabalho do euromilhões, no país que tem preferido manter baixa a taxa de desemprego a despeito de se manter igualmente baixa a da produtividade,... aparentemente essa não será a concepção majoritária. O que seria defensável, não fosse o caso da generalidade dos portugueses aparentemente ter adoptado o usufruto (não necessariamente a produção...) de telemóveis, SUV's, viagens para o sol e praias,... como grande objectivo de vida. Este último, e uma produtividade pouco superior a metade da média europeia, é que porém não são compatíveis. Pelo que, mesmo já nem visando aquela valorização mais profunda do trabalho, ainda que não seja apenas para que cada um possa disputar ao vizinho o maior bronzeado ou o SUV com mais cromados, restarão uma de duas possibilidades: a frustração, ou a alteração da nossa cultura do trabalho.

Como porém se altera uma concepção majoritária? Que as minorias influenciam a evolução cultural das populações, isso hoje parece ser pacífico às ciências sociais. A questão porém é a dos modos eficazes de tal influência. Penso que o caso de A.M. poderá ser significativo a esse respeito.

Da influência de Alice Moderno na cultura micaelense.

Podemos avaliar a influência cultural dessa mulher a partir de duas fontes: uma, directa, são os documentos da época que se refiram a ela e à sua obra, incluindo o testemunho de contemporâneos (A.M. morreu em 1946). Uma outra fonte é a memória associada ao seu nome. Isto é, o modo como porventura se usa, ou até ao contrário se silencia (!) esse nome, as conotações eventualmente atribuídas a este último, constituem-se como vestígios indirectos da imagem que os seus contemporâneos terão legado às gerações seguintes. A primeira fonte é imprescindível. Todavia, além de que resta garantir a representatividade de cada notícia pontual, desde Freud sabemos bem que os vestígios indirectos podem ser mais fiáveis do que os explícitos e intencionais. Como complemento portanto dos documentos em que M.C. Vilhena se baseou – nomeadamente para usar o advérbio "muitos" em expressões como "seus muitos amigos" (ibid.), e "muitas pessoas da sua amizade e admiradores" (op. cit., 41) – introduzo aqui esta outra abordagem indirecta.

Confesso que logo na leitura o uso desse advérbio me surpreendeu, nomeadamente por nunca me esquecer de quem disse "Um profeta só é desprezado na sua pátria, entre os seus parentes e em sua casa" (Mc 6, 5). É certo que "muito" é um conceito qualitativo e não quantitativo.Em todo o caso o seu uso tende a sugerir uma razoável aceitação social, quando isto não é costume em relação a quem apela ao desenvolvimento pessoal.

Essa suspeita foi consolidada quando uns meus interlocutores, a quem eu havia falado do referido artigo da Insulana, me contaram as respostas que obtiveram de duas pessoas de meia idade ao lhes mencionaram o nome de A.M. Pedi então a algumas pessoas que perguntassem a outras das suas relações, de preferência nascidos nas décadas de 40 e de 50, pelo que lhes dizia a expressão "Alice Moderno". Também eu a mencionei a outras duas pessoas. Devo salientar que o número das respostas obtido é manifestamente insuficiente para se constituir uma amostra representativa da população micaelense. Além disso a selecção desses jovens não foi aleatória, pelo que essa colecção de respostas poderá representar um universo limitado. Todavia as chamadas "colecções de números" – definidas como conjuntos de valores similares qualquer que seja a forma como foram recolhidos – são reconhecidas como um primeiro estádio da análise exploratória de dados, válidas portanto que mais não seja para o lançamento de hipóteses. É precisamente com esta última intenção que consideraremos a seguinte tabela:

Frequência absoluta

Frequência relativa

Reconhecimento (porventura parcial) da figura e/ou da obra

0

0%

Desconhecimento absoluto da figura e da obra

4*

40%

Atribuição a A.M. de loucura, excentricidade, ou outra diferença, sem referência à obra

5** + 1

60%

* um dos inquiridos terá nascido na década de 70, sendo porém de realçar que trabalha no apoio social à condição feminina;

** um dos inquiridos terá nascido na década de 30, habitando no Nordeste.

Dessas dez pessoas, seis atribuíram algum significado pessoal ao nome desta mulher. Já a sua obra, porém, ou não recebeu qualquer comentário, ou foi mesmo declarado um absoluto desconhecimento a seu respeito. Posso acrescentar que a pessoa cuja resposta destaquei comentou que se dizia ter sido A.M. homossexual, e que usaria trajes masculinos. Mais sentido faz assim a conotação comum que os outros cinco inquiridos que reconheceram o nome lhe deram: quando alguém não estava bom da cabeça dizia-se "'Tás como a Alice Moderno!". Pelos vistos, o uso desta expressão poderá ter-se estendido até à vila de Nordeste.

Entre o que a tradição nos sugere, e a radicalidade dessas respostas, parece-me que se torna assim aceitável a hipótese de que A.M. pouco (ou nada) terá influenciado, directamente, a cultura micaelense na valorização do trabalho, na emancipação feminina, etc. Sem prejuízo da sua influência na evolução de regras pontuais – veja-se a luta pela igualdade de salários a despeito do género sexual – ou de uma influência cultural indirecta, seja como efeito psicológico dessas novidades pontuais, seja pela acção dos amigos e admiradores que M.C. Vilhena menciona, mas que à época, possivelmente, constituiriam uma minoria social.

É precisamente para a sua influência através de uma recuperação contemporânea da sua obra e exemplo que as seguintes notas talvez tenham utilidade.

Apontamentos sobre a influência das minorias sobre as maiorias.

Segundo os conhecidos estudos de Serge Moscovici (Social Influence and Social Change, Londres: Academic Press, 1976), as minorias influenciarão tanto mais as maiorias i) quanto mais consistentes (as primeiras) forem. Isto é, se por um lado convergirem na mesma mensagem por diversos meios – ex. comunicação verbal, exemplo pessoal,... – em vez de insistirem numa única forma de expressão; e se por outro lado essa multiplicidade de comunicações não se contradisser, antes pelo contrário se concertar entre si.

Esta tese aliás parece-me ficar claramente reforçada pela reacção das maiorias precisamente à imagem de consistência: quando alguém apela ao desenvolvimento pessoal, e, muito principalmente, à autenticidade ética, é costume aparecem logo uns quantos que procuram realçar, por mais deturpadamente que seja, qualquer sinal de eventual inconsistência entre o que a/o primeira/o diz e algum aspecto da sua vida. Não fosse a consistência dessa pessoa o que lhes dói e não procurariam defender-se aí.Por exemplo, classificam uma pessoa como louca, excêntrica,... dado um qualquer comportamento que lhe atribuem, para denegrirem depois a sua obra não por algum aspecto desta, mas por aquela classificação de quem a produz. Em contra-ponto, porém, ergue-se a velha máxima (creio que) do Presidente Lincoln: pode-se enganar poucas pessoas durante muito tempo, e pode-se enganar muitas pessoas durante pouco tempo, mas não se pode enganar muitas pessoas durante muito tempo. Se portanto a obra resiste à crítica racional, isto é, se não se contradiz, e se as consequências lhe dão razão, ao fim de algum tempo apenas uns poucos conseguem persistir na reacção das gerações anteriores.

Na sua liberdade, com consciência disso ou sem ela, A.M. terá optado por condutas que porventura destruíram a consistência entre a sua credibilidade pessoal e o seu apelo de modernização social. Para que este apelo surta efeito cabe pois a quem hoje o assuma, dando corpo à influência indirecta de A.M. na cultura actual, realçar agora as respectivas coerência lógica e adequação histórica.

A recuperação dessa obra pode, ou talvez melhor, estrategicamente deve considerar os outros dois aspectos focados por Moscovici: por um lado ii) a autoconfiança percebida pelas maiorias nas palavras e actos dos elementos minoritários. A segurança que estes demonstram constitui-se como sugestão de uma força interna que desmente a debilidade associada à pretensa inconsistência. Note-se que é fácil ser-se confiante quando se tem o apoio geral – ex. nunca os líderes nazis mostraram sofrer qualquer falta de confiança própria enquanto vociferavam contra os judeus. Mas a prova faz-se é na adversidade da falta desse apoio, quando não mesmo perante a hostilidade pública – ex. não só após a Guerra a primeira tentativa alemã e austríaca foi a de negar o facto do Holocausto, como mesmo, na iminência da derrota, o Governo de Berlim tinha feito deslocar tropas leais da frente de combate para irem desenterrar e cremar os cadáveres de modo a que esses governantes, e toda a ideologia nazi, não tivessem que responder pelo Holocausto uma vez desfeito o apoio geral. Neste aspecto da autoconfiança já a evocação do exemplo de A.M. poderá ser eficaz.

Por outro lado iii) revela-se mais fácil que a mensagem de progresso seja acolhida na intimidade do que na praça pública. Seja portanto a palavra ou acto original, seja já a palavra ou acto posteriores que respondem à reacção (frequentemente caluniosa) contra a primeira, qualquer delas exercerá mais influência se começar por ser lida, em solidão, num artigo como o de M.C. Vilhena. Encontramos aí o exemplo de A.M. sem sermos chamados a confessar a nossa impressão sequer a um único interlocutor que nos falasse disso, quanto mais a todo um grupo que presenciasse a comunicação. O peso da intimidade faculta assim a diferença entre o que os autores chamam "submissão", ou influência da maioria, e a "conversão" em que se constitui a influência das minorias. Acrescente-se que se a primeira costuma vencer no curto prazo, a segunda pode triunfar no longo prazo. E só esta leva por diante qualquer processo histórico complexo como o do desenvolvimento a que me referi no início desta nota.

Esses resultados pioneiros de Moscovici e seus pares têm vindo a ser confirmados e desenvolvidos em estudos mais recentes, como o de Howard Gardner (autor da célebre teoria das inteligências múltiplas; v. Changing Minds: The Art and Science of Changing Our Own and Other People´s Minds, Boston: Harvard BusinessSchool Press, 2004). Este professor de Harvard reforça o primeiro aspecto acima focado (a consistência de uma diversidade de manifestações), e distingue sete factores de influência na mudança de mentalidades que precisamente devem ser reunidos tanto quanto possível:

i)a argumentação racional, afinal o modo de se testar directamente qualquer consistência;

ii)a procura de exemplos convincentes;

iii)a "ressonância" com aqueles que se pretende convencer, ou no velho ditado índio (que na Bíblia é formulado como a "Regra de Oiro"), devemos pôr-nos nos mocassins dos outros, e deixar que estes se ponham nos nossos;

iv)a redescrição, isto é, a descrição da mesma ideia sob várias formas;

v)a recompensa, ou na velha imagem do pau e da cenoura, dir-se-á que mesmo quando há alguma coisa a recusar, e portanto se tem que usar o pau, é bom que se use alguma cenoura de tal modo que os receptores da mensagem se não constituam logo como adversários do emissor;

vi)o simples reconhecimento de quaisquer acontecimentos que sejam significativos para o assunto em causa;

vii)a detecção das resistências à mensagem.

Gardner sublinha este último factor como ponto de partida do comportamento intencional de influenciar: independentemente da conveniência geral de se usarem diversos factores, revela-se particularmente eficaz enfatizar algum que mais se conforme ao meio concreto da comunicação – os contra-exemplos são particularmente relevantes em ciência, a redescrição no ensino, etc. Mas a escolha da estratégia deve começar pela identificação das resistências à mensagem. É em conformidade a estas que se deve montar toda a estratégia dos seis factores anteriores.

Parece avisado, pois, que quem intente influenciar a cultura micaelense e açoriana em ordem a valores como aqueles pelos quais pugnou Alice Moderno comece por essa identificação, orientando-se em seguida pela restante teoria contemporânea da influência das minorias sobre as maiorias. É que assim aumentará a sua probabilidade de sucesso.E este sucesso é condição imprescindível do consistente desenvolvimento humano – social, económico, pessoal – que todos dizemos pretender.

Post Scriptum (dimensionando expectativas...): The Mystic River termina com a festividade colectiva na qual segue, alheado e triste, o filho do homem injustamente assassinado depois de já ter sido violado em criança. À margem do cortejo a mãe, ansiosa e desesperada porque nem ela havia confiado no marido, e agora entrevia a vitimação do filho ao perder um pai extremoso, tenta debalde acompanhá-lo. Sob a expressão satisfeita da mulher do assassino, que o aprova quando este, por um momento, parece lamentar a injustiça que cometera, pois para ela apenas importa a estabilidade do que lhe cerca o umbigo. Tal como para o inspector de homicídios, que daí lava as suas mãos, ainda para mais agora que a sua mulher voltara a viver com ele. À vítima sucede-se a vítima, quem se importa é incapaz, quem é capaz não se importa ou é mesmo o algoz, e todos os outros fazem a festa. Todavia uma coisa não se terá perdido: aquela que fará valer a pena não fazer silêncio. O que motiva o próprio filme. E me parece que Clint Eastwood a explicita numa sua outra obra.

Se não me falha a memória, em A Million Dollar Baby, quando o jovem deficiente que ao levar uma sova perdera as ilusões de vir a ser um grande pugilista volta a querer treinar, o velho empregado do ginásio fala de milagres que às vezes acontecem.Suspeito ser apenas essa a influência que o cineasta considera. A tantas outras pessoas, restará olhá-las como o próprio Eastwood, no papel do treinador, o faz em relação à família da sua pupila enquanto a desconsideram na casa que ela lhes acabara de oferecer (poucas cenas de cinema recordo tanto quanto essa). À margem das questões pontuais tratadas por Moscovici e Gardner, a única influência de fundo que nós outros, que não somos Jesus, Sócrates, Confúcio,...poderemos garantir será sobre as nossas próprias vidas – como aquela empregada de mesa que com pior técnica, menos experiência, e mais idade, avançou para a sua adversária no ringue. Qualquer influência mais virá por acréscimo.

[Texto adaptado do artigo in Insulana, 61 (2005): 125-131]
Autor: Miguel S. Albergaria


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