OS JAGUNÇOS: TERCEIRA HISTÓRIA



MUDANÇAS DE PLANO

Tudo estava arrumado para ser do jagunço Gaudêncio a terceira história, mas, percebendo o muxoxo que minha leitora deu, achei por bem falar sobre as agruras do amor. Calma, leitor, os jagunços virão, mas como eles têm longa estrada a percorrer temos tempo...

TERCEIRA HISTÓRIA:

FAZENDA CONTRA FAZENDA (OU: Adelita se fora com outro)

Estava ela prometida. Já estavam todos os negócios combinados. Fazenda mais fazenda.E mil gados a repartir. Havia, além do mais, planos acalentados de parte a parte: Os Alves, unindo-se, por sangue, aos Oliveiras. Centos e tantos mil de alqueires a repartir. Repartir não, unificar. Coroação dos sonhos de dois patriarcas.

José Mathias Alves Neto iria concretizar, hoje, seus sonhos, e os do pai, José Mathias Alves Filho, e os de seu avô, Zezão Mathias, que se tornara dono de imensas terras deste Brasil. Imensas e à disposição de quem chegasse primeiro. E foi assim que os Mathias iniciaram seu reinado. Mas, diz o ditado, "avô rico, filho remediado, neto pobre".O neto gastara boa parte das terras em apostas, em noites de fumo, álcool e mulheres perdidas. Sobraram das léguas e léguas, uns tantos palmos de alqueires. Agora se juntariam, pelo casamento, os tantos dos Alves e os tantos e tantos dos Oliveiras. Léguas e léguas juntas de novo.

Adelita e Sebastião, pelo casamento, juntavam estas léguas de terra. Adelita Mathias Alves mais Sebastião Oliveira fortaleceriam o reinado.

Tudo ia se dando conforme planejado, congratulavam-se, dum lado e do outro, o pai da noiva e o pai do noivo, quando, eis que senão quando (e tanta coisa na vida depende deste "eis que senão quando") Adelita, no dia do casamento, fugiu com outro!

Adelita se fora com outro. E este outro era preto. E era pouco mais que o filho bastardo dum branco com uma negra da carvoeira, neta de um antigo capitão do mato.

E o noivo, Sebastião de Oliveira, ficou lá, à beira do altar, vestindo aquele terno novo, terno de risca, ele que nunca, jamais, vestira um terno, ficou lá com aquela cara de "Meu deus, o quê é isto?", não sabendo direito o que estava acontecendo.

Nicolau Capataz cochichou a má notícia no ouvido do patrão, José Mathias Alves Neto:

"Ela fugiu, patrão, com o Júlio Nogueira, o filho daquela crioula da carvoeira".

Acabou a festa! E a notícia correu. Nem os Mathias nem os Oliveiras tolerariam uma injúria daquelas: um preto roubar a branca filha de um, e a honra roxa do outro. Então José Mathias Alves Neto ouviu desaforos do chefe dos Oliveiras:

"Zezinho Mathias! A putinha sua filha... Fugiu com o negro... Deixou meu filho esperando..."

Ódio alimentado por antigas invejas, emergiu. Vinganças prometidas de lado a lado. Agora era fazenda contra fazenda.

Noiva fugir é ruim. Pior se fugir com preto pobre!

Nicolau Capataz se colocou a campo para descobrir o paradeiro dos dois. Indaga daqui, indaga dali, investiga lá, investiga cá. Muito pobre agregado apanhou. Teve algum que contou até o que não sabia. Enfim Nicolau ficou sabendo que o Júlio se acoitara num arraial, um quilombo, cercado de dezenas e dezenas de amigos. Dezenas, não: centenas!

O patrão Mathias ordenou ao Nicolau Capataz que fosse buscar a filha e matar o negro, custasse o que custasse. Nicolau explicou as dificuldades: "Precisaríamos dum exército, patrão! No arraial dos negros tem mais de mil homens!"

"Contrate mais gente!", foi a ordem irada.

Nicolau sabia tratar com o seu patrão Mathias mesmo quando este ficava nervoso:

"Isto num é caso para tropa, patrão, e sim pra esperteza. É serviço pra ser feito com astúcia e pouca bala. Coisa pra gente do ramo".

Nicolau Capataz cochichou de novo no ouvido do patrão que sabia de uns jagunços que poderiam fazer o serviço.

"Manda chamar eles!", foi a ordem imediata.

As instruções foram: "Matar o negro!" Nisto não falhar e se desse, trazer a moça de volta, viva. Mas, precisando, que matassem os dois.

Contratada a jagunçada se pôs a caminho.

O AUTOR NÃO ENTENDE PORQUE O MUNDO É ASSIM.

(E o autor, contrafeito, faz um comentário: Quem é que entende as razões do coração?)

E ficamos, nós aqui, nos perguntando por que Adelita fugira com o Júlio, o negro das carvoeiras, deixando no altar o rico noivo Sebastião de Oliveira. Quem é que entende as razões do coração? Ninguém, que eu saiba. Mas procuraremos entender. Vamos nos colocar, discretamente, aí pelas esquinas, tentando escutar os boatos. Não ouviremos, assim de primeira, o que se fala da moça lá na fazenda dos Oliveiras, terra do noivo. Ali o o diz-que-diz sobre a moça é de vermelhar as orelhas: foi chamada de vagabunda pra cima. É até falta de respeito, mesmo que metade fosse verdade.

Na fazenda do José Mathias Alves Neto a esposa dele e mãe da moça, a dona Júlia [oh, que azar, ter nome parecido com o do raptor!], jura que a filha foi raptada pelo atrevido do negro. O pai quer concordar, mas tem dúvidas, conhecia o Júlio que, na opinião dele [não da minha e nem da sua, leitor, pois que não temos ainda opinião formada], mesmo sendo negro, era um sujeito merecedor de confiança. Era.

Saíamos das fazendas e andemos pelas estradas. Ali, naquele rancho à beira do córrego, a comadre Marcolina conta pra duas amigas que a visitam que Adelita andava de caso com o crioulo da carvoeira "já havia tempos", jurava, estalando os dedos maldosos.

Ouçamos. Eu me escondo aqui, atrás desta moita de capim-limão. Você, leitor, fique ali, atrás daquele cupinzeiro, e você, leitora, esconda-se atrás daquela árvore ali, ó, que é um lugar mais apropriado para uma dama.

Ei, leitor! Num sabe o que é um cupinzeiro? É aquele morrote acolá, é, é aquele monte de terra. Vá. Vá.

"Hum..., então já estavam de caso!?" – resmunga comadre Bastiana. – "Eu bem que desconfiava..."

E as três línguas compridas comentam, e nós ficamos sabendo uns desabonos dos dois.

Mas não foram desabonos, somente, o que ouvimos: dona Creusa lembrou que fora o "seu" Mathias que mandava Júlio, quando ainda era moleque, cuidar da moça, toda vez que ela vinha da cidade, de férias da escola. E lembrou daquela vez, quando Adelita tinha uns quinze anos, mocinha travessa, fora nadar no ribeirão e ia-se afogando, e todos em volta ficaram gritando, inclusive o coronel José Mathias, e fora o rapazola Júlio que pulara na água pra salvar a moça.

"É", - concordou dona Marcolina. - porém lembrou: "mas lembra das roupinha que ela usava naquele dia? Tava quase pelada com aquele tal de bequine!".

Todas lembravam. Todas concordaram. No entanto dona Creusa, cravou mais um ponto para o Júlio:

"E daquela vez que ele quebrou o braço tentando salvar ela?".

As comadres lembravam e balançaram a cabeça, quase que comovidas, quase que respeitosas e relembraram. Dona Marcolina, esquecendo-se que sua intenção inicial era denegrir o negro, e sentindo que estava perdendo a liderança para dona Creusa, interveio, rápida:

"E lembra daquele baile?"

"Que baile?", perguntaram ao mesmo tempo as outras duas.

(Creio eu, no entanto, amiga leitora e amigo leitor, que aquelas duas sabiam muito bem de qual baile dona Marcolina falava).

Mas eis que as comadres se põem a andar e não conseguimos ouvir muita coisa mais. Lá se vão elas, santas e trabalhadeiras senhoras, em direção ao rego d'água, a fim de lavar suas trouxas de roupas e ficamos nós com nossa curiosidade mal servida:

Que baile?

CAPÍTULO XX OU XXI - O AUTOR DE NOVO. ETA!

Lá se foram as comadres. E não ficaremos sabendo como foi o "daquela vez que ele quebrou o braço tentando salvar a moça"

Ora, saberemos, sim! Um autor é, ou deveria ser, um demiurgo. E, em assim sendo, há que juntar os retalhos do que ouviu ou viu e adivinhar ou inventar. Eita, eita, juntemos o ouvido e o visto, esclarecendo que o que se vai adiante é quase inteiramente verdade, e quase nada houve que adivinhar ou inventar.

"E daquela vez que ele quebrou o braço tentando salvar ela?".

CAPÍTULO TANTO DE TANTO: A HISTÓRIA AVANÇA.

O pai de Adelita dera à mocinha um potro de raça como presente de aniversário. Manga-larga bonito. Mangalargão de queixo empinado, vistoso, bom de arreio, que andava macio, mas duro de queixo e rebelde de rédeas em certas ocasiões. E deu que certa tarde a moça montou o potro, julgando-se amazona, e desfilou com muito garbo, para orgulho do pai. Era dia de festa! Muitas fazendas reunidas, presentes sobrenomes imponentes, somassem os gados de cada um!

Chegou o Sebastião de Oliveira, filho herdeiro das fazendas à direita do morro dos Bálsamos, aquelas que se estendiam até à beira do rio das Antas. Chegou o rapaz montado numa caminhonete zerinha, brecou dentro do curral, e já desceu soltando foguetes. O potro manga-larga de Adelita se espantou e desabalou numa carreira que freio nenhum conseguia frear. Por sorte ou por coincidência, Júlio estava a cavalo. Talvez porque sempre estivesse de olho na menina. E o cavalo matungueiro do pretinho correu mais que o potro de raça, e quando o potro de raça ia desavisado, pular um barreiro, pronto para quebrar as canelas nobres e machucar a mocinha, sofreu um encontrão do esperto e experiente cavalo de lida que Júlio montava. E Júlio arrebatou a moça, trazendo-a para o colo, segura, no cavalo de lida, sem um arranhão.

O potro de raça pulou, sim. E caiu do outro lado. E quebrou uma perna. E foi sacrificado depois. Júlio e Adelita ficaram do lado de cá. Montados. Mas, não sei se por sorte, ou por malícia de Júlio, escorregou o casal do cavalo, caindo, de manso, abraçados ele e ela, sobre a grama. Abraço apertado, daqueles de sentir o coração de um batendo bem junto do coração do outro. E deu que os olhos agradecidos e assustados de Adelita bateram nos olhos amorosos e protetores do crioulo Júlio.

E deu no que deu!

E jogue a primeira pedra quem, em tendo coração amoroso, não sucumbisse a este pecado de se apaixonar por uns olhos assim.

E jogue a primeira pedra quem der mais valor à cor que ao coração!

Não eram os olhos de Júlio, o crioulo, nem negros nem brancos. Não eram amarelos nem vermelhos, eram azuis!

Mas não foi por causa disto, a cor, que Adelita amou Júlio: foi por causa de uma flor e de um livro.

Um dia...

CAPÍTULO TAL E TAL: O LEITOR IMPACIENTE QUESTIONA:

"E os Jagunços?"

CAPÍTULO TAL E TAL Nº 2: O AUTOR TOLERANTE RESPONDE

"Os Jagunços? Voltaremos a eles mais tarde."

CAPÍTULO TAL E TAL Nº 3: A LEITORA IMPACIENTE INTERVÉM:

"Esqueça os jagunços! Conte do baile! Fale da Adelita e do Júlio! Fale de Amor!"

CAPÍTULO TAL E TAL Nº 4: O AUTOR CONCORDA COM A LEITORA

Sim, falemos de amor!

CAPÍTULO ZEROPONTOUM - O AUTOR AQUI, DE NOVO, OUTRA VEZ.

Nada como uma boa redundância. Uma redundância é boa para sacudir o leitor. Não que eu vá sacudir assim, sem mais nem menos, você leitora minha. Sou muito respeitoso, por mais que a tentação me tente. E longe de mim pensar em sacudir você, leitor meu, pesadão que está, por falta de exercício e caminhadas! É que, me veio agora, um desses repentes que caem sobre a cabeça do escritor como trovoadas ou chuvas de estrelas. Me perdoem este "chuva de estrelas" mas é uma imagem muito boa..

"Poderia parar esta conversa mole e continuar com a história da Adelita e do Júlio?"

É assim que pensam, leitora e leitor? Não estariam de prevenção comigo? Quanta impaciência! Que pressa é esta? Podíamos descansar um pouco aqui apreciando a chuva de estrelas, conversando amenidades!

"Conversar? Só você que fala!", murmura a leitora.

Só que ouvi, viu, leitora ingrata! E fiquei magoado.

"Chuva de estrelas? Ora, sua história é uma coleção de clichês e de redundâncias! Ora, ora, melhor que caísse um raio sobre esta cabeça chata, não me fazendo perder tempo!"- reclama você, leitor.

Pois bem, entrego os pontos: saio com minha chuva de estrelas e não conto a idéia que me veio de repente. Voltemos aos olhos do Júlio. Ou à flor e um livro. Antes devo esclarecer que naquela queda, em que nenhum fio de cabelo de Adelina se feriu, o Júlio destroncou o braço. Mas isto, para ele, naquele momento, não importava. Nem sentiu.

CAP TANTO DE TANTO – AGORA SIM, A HISTÓRIA VAI ADIANTE.

O livro, a flor, e os olhos de Júlio que aguardem. Avancemos no tempo. O tempo este senhor de nossas vidas que...

"Epa! Não venha com divagações!" - alerta o leitor. Pois bem...

Certo que, logo depois daquele dia, as férias de Adelita findaram, ela voltou para a cidade. E ficaram alguns anos sem se verem.

Júlio, garoto sério e ambicioso, deixou a fazenda à caça de estudo, sabedor que, analfabeto e negrinho, teria futuro rasteiro. Voltou anos depois, moço feito e formado. Engenheiro agrônomo ou Médico Veterinário, não estou certo quanto ao curso quefez.

Mas então o "crioulo da carvoeira" não era bem isto de "filho da crioula da carvoeira". Júlio era moço estudado. Filho da puta, sim, pois que sua mãe fizera ponto, quando moça, na Casa da Isaura, mas fora tirada de lá por um engenheiro, o doutor Júlio Batista de X.

(Esclareço que X era nome estrangeiro, cheio de letras difíceis, que não me lembra agora. Acrescento que dona Marcolina, nem os demais do povoado, jamais souberam pronunciar direito o nome completo do doutor Júlio Batista, o pai do crioulo Júlio).

"Uai, mas o nigrinho num era filho dum ex-capitão do mato?" – me pergunta o leitor, sempre tentando me pegar no contrapé, pois esta história me veio de muitas fontes e eu me confundo.

Era mas não era. Eu não sei quem foi o pai. E acho que nem a mãe dele sabia! Antes, quando estava barriguda, andara espalhando que ficara grávida daquele crioulo grandão, que tinha boa posição na fazenda dos Alves, um tipo de faz tudo, ou seja: um capitão do mato. Depois, quando estava chegadinha a parir, quando apareceu o gringo branquelo que se engraçou com ela, deu de dizer que o doutor Júlio X era o pai. Mas não nos preocupemos com isto: Júlio não sofreria por falta de pai: tinha muitos. Nisto a dona mãe dele fora generosa e caprichosa.

Júlio ingressara na faculdade. Concluíra o primeiro período com méritos. Tão dedicado e capaz que fora selecionado pelo professor de infectologia, Valdo Martinez, para secretariá-lo, com boa remuneração.

Júlio não ficara todo este tempo sem retornar à fazenda, reaparecia nas férias. No final de junho daquele ano, saudoso, voltou à fazenda. Dia de São João, festa junina, dia de baile e quadrilha.

O baile? Que baile?

"Lembra daquele baile?"

CAPÍTULO DA PAUSA

Por favor, me aguardem um momento, leitor e leitora, vou ali e já volto.

CAPÍTULO DA VOLTA

Nem lhes conto do que fui fazer. O pudor me inibe.

CAPÍTULO DAS CONFISSÕES

Um autor não deve, jamais, revelar suas fraquezas e seus vícios!

CAPÍTULO TRÁGICO

Acabaram-se os cigarros e a cerveja.

CAPÍTULO DA LEITORA E DO LEITOR

"Eu sabia! É um viciado!", afirma a leitora, voltando-se para sua chávena de chá e bolachas dietéticas.

"Um cidadão de segunda classe: fuma! E um autor de terceira: não sabe contar uma história, costura retalhos fora da ordem", assevera o leitor, deitado na poltrona, sorvendo seu refrigerante diet, seu hamburger, certo de que com uma dose de bicarbonato, e um plasil tudo se resolve.

CAP X.O – O BAILE, OU MELHOR: A QUADRILHA

Homem vistoso como aquele, bem vestido, simpático, alto e forte, um sorriso confiável e cativante de trinta e tantos dentes brancos de causar inveja, e de olhos azuis, herdados do pai estrangeiro, fez sucesso no meio das moças, brancas e negras. Este era o Júlio, o engenheiro, orgulho da peonada mais velha, que ficara na roça, analfabetizada, cumprindo a obrigação do destino.

Adelita estava no baile.

CONTINUA...

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Autor: Onivaldo Paiva


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