Resenha: COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga



Historiador francês, Fustel de Coulanges nasceu em Paris a 18 de Março de 1930 e morreu em Massy a 12 de Setembro de 1889. Em 1850 matriculou-se na École Normale Supérieure de Paris, transferindo-se em 1853 para a Escola francesa de Atenas. Entre 1853 e 1858, esteve ocupado em estudos e pesquisas arqueológicas na ilha de Quio. Em 1858, doutorou-se, defendendo a tese Polybe ou La Grèce conquise par lês romaim (Políbio ou a Grécia conquistada pelos romanos), e em 1860 foi nomeado professor de história na faculdade de letras de Strasbourg, onde permaneceu até 1870. Lecionou a seguir na faculdade de letras de paris e em 1878 assumiu a cadeira de história medieval na Sorbonne. Seu último cargo importante foi o de diretor da École Normale Supérieure, a partir de 1880.

Fustel de Coulanges reformou o método dos estudos históricos na França, sendo responsável por uma abordagem mais científica dos temas da história antiga. Opunha-se à mera erudição livresca, preferindo valorizar o testemunho dos fatos históricos, fornecido pelos textos da época e pelas tradições, de modo a imprimir maior objetividade aos seus estudos. Pretendia assumir uma total imparcialidade diante dos fatos, em atitude bem diversa da dos historiadores românticos que o precederam, como Michelet, sobretudo pela determinação de evitar a confusão entre o estudo histórico e outros interesses. Seu método, bem como suas concepções da história antiga e da história francesa, suscitaram muitas polêmicas e acusações. Aqueles que o defendem asseguram o respeito e a confiança que inspiram as obras de Coulanges por terem sido baseadas em documentos e na análise direta dos textos. Em contraponto, seus críticos ferrenhos o acusam de demonstrar pouco conhecimento paleográfico, o que o teria induzido a numerosos erros de interpretação. Além disso, para estes, sua filologia era duvidosa e sua concepção de história mecanicista. Apesar das críticas, sua obras possuem uma imensa riqueza de informações. A maior parte dos estudos de Coulanges versa sobre as instituições feudais da França antiga, entre eles o mais importante, a Histoire dês institutions politiques de l´ancienne France (1875; História das instituições políticas da França antiga), em que minimizou o papel das invasões germânicas na organização política e no estabelecimento das instituições feudais, cujas origens procurou entre as antigas instituições gaulesas. Essa obra e várias outras em que sustentou as origens do sistema feudal provocaram acirradas polêmicas.

Contudo, o trabalho que o consagrou foi La cite antique (1864; A cidade antiga), em que estuda a evolução política e social das antigas Grécia e Roma. Nesta obra o historiador dá singular destaque às crenças religiosas e seu papel ímpar como causa de um processo evolutivo ocorrido tanto em Roma quanto na Grécia. Josep Fontana em a Historia dos homens style="">[1]. Para este autor, a cidade antiga serve à visão da direita francesa, pois defende a propriedade privada como eterna e combate a quem imagine que tenha existido alguma vez o comunismo. No fim de sua vida Fustel extremou sua atitude nacionalista, defendeu “a erudição francesa” contra a crítica hermenêutica e filosófica alemã e, além disso, estudou as instituições políticas da antiga França para combater a visão liberal. Contudo, Fontana observa que Fustel não foi apenas o historiador da direita, estimado pela corte de Napoleão III, onde deu cursos especiais para a imperatriz Eugênia foi, pelo contrário, muito influente em outros meios. A cidade Antiga até hoje é citada em inumerosas obras realizadas por filósofos, sociólogos e, claro, historiadores, além das influências diretas como a transmissão da preocupação pelo religioso aos sociólogos Durkheim e Mauss[2].

 A Cidade Antiga é escrita de forma linear progressista, forma que vai ao encontro dos conceitos e hipóteses defendidas pelo autor. Na obra há uma clara concepção progressista de história, a sociedade humana está num processo de evolução e desenvolvimento. Assim o autor inicia sua explicação desta evolução a partir das instituições gregas e romanas, instituições resultantes das crenças religiosas destas sociedades. A tese de Fustel centra-se no papel das crenças religiosas para a formação dos diferentes tipos de organização social e instituições políticas de um grupo humano. A partir desta concepção traça-se um paralelo entre o processo histórico de diferentes sociedades com base em uma classificação das crenças religiosas, ou seja, crenças semelhantes resultam em instituições e processo histórico semelhantes. Apesar da obra possuir um grande volume sua linguagem e forma didáticas de expor seu raciocínio tornam a leitura fácil e prazerosa, por isso A Cidade Antiga também é considerada uma obra literária. Por ter um grande volume foi dividida pelo autor em cinco livros ou partes, onde cada livro destes se subdivide em pequenos capítulos. Pelos títulos destes livros pode-se perceber a linearidade da obra e o papel protagonista dado às crenças religiosas e à família. Além disso, vê-se a concepção da idéia de causa e efeito, por isso a idéia linear teleológica da história.

Os títulos de tais livros são os seguintes: o primeiro livro se chama Crenças Antigas, o segundo A Família, o terceiro A cidade, o quarto As revoluções e o quinto Desaparece o regime municipal. Assim, Fustel inicia a obra caracterizando as crenças dos antigos, pois para ele são delas que resultam as formas de instituições e a leis que regulam estas sociedades. As leis e o direito ganham nesta obra grande destaque na medida em que estes são reflexos das crenças e das formas de organização política e social de uma sociedade humana. O historiador busca no passado a explicação para o presente, nas suas palavras “o homem é o produto e o resumo de todas as suas épocas anteriores[3]”. E, a maneira de se de se compreender uma sociedade, incluindo a que vivemos, é conhecer suas crenças e relações familiares a partir de suas leis e regulamentos, pois não são as regras que impõem os comportamentos, mas, pelo contrário, surgem como necessidade de especificar e organizar os costumes em um corpo unificado de leis. “Se as leis da associação humana já não são as mesmas das da antiguidade, o motivo está em que algo do próprio homem se transformou[4].”

Pelas razões acima informadas Fustel de Coulanges atribui significativa importância às constituições e conjunto de leis. Além de usar obras de autores da época como fonte, as leis e a própria língua são importantes meios de reunir informações sobre uma sociedade, ou seja, são também fontes indispensáveis para a compreensão de uma sociedade de determinado contexto histórico. A forma, as linhas gerais da obra e seus objetivos são definidos e expostos já na introdução pelo autor, assim suas concepções são apontadas e deixadas bem claras para o leitor. Ao longo da obra se percebe o uso freqüente da citação das fontes utilizadas e, o que é elogiável e impressionante, a variedade delas, vão desde Aristóteles e Platão até as leis das constituições de tais povos.

A Cidade Antiga, como o título informa, é a história das origens, do ápice da cidade e do desaparecimento delas no mundo grego e romano. Grécia e Roma são analisadas sob a mesma perspectiva, por isso os processos históricos de ambas são narradas concomitantemente como se fossem um único. Isso se deve a tese do autor que se sustenta na compreensão das crenças para se entender a formação das instituições. Em algumas passagens, para enaltecer e comprovar sua tese, até mesmo a sociedade hindu contemporânea à obra é citada como exemplo de associação humana semelhante às gregas e romanas, pois é politeísta e local. Portanto, suas concepções vão ao encontro da idéia de progresso da humanidade, uma evolução natural que todos os povos do mundo estão passando. O espírito humano caminha espontaneamente em direção à unidade e ao Deus único, os povos que não compartilham da crença no Deus único estão “atrasados”, mas caminham naturalmente para tal crença. Para Fustel, o ser humano em qualquer época e/ ou sociedade deseja a liberdade proporcionada por crenças mais “elevadas”. Aqueles que não crêem na unidade universal do Deus único e não possuem as instituições dela derivada é porque não são inteligentes o suficiente para tal. Desta forma, esses devem ser vistos com compreensão, pois não fazem de propósito, mas por incapacidade. Contudo, um dia se livrarão de suas crenças supersticiosas. Nas palavras do autor: “a inteligência está sempre em evolução, quase sempre em progresso, e, por esta razão, as nossas instituições e leis estão sujeitas as flutuações da inteligência do homem[5]”.

Assim, o autor desenvolve a obra no sentido de evidenciar as flutuações da inteligência humana, mostra o tempo todo como as concepções culturais do homem se interligam e refletem-se nas instituições sociais e políticas. A partir desta idéia Fustel explica o processo histórico grego e romano, onde tal processo parece surgir naturalmente a medida em que se compreende o modo de pensar dos antigos. “Se ao lado das instituições e das leis colocarmos as suas crenças, os fatos tornar-se-ão mais claros e a sua explicação apresentar-se-á por si mesma[6].”

Por conseguinte, na primeira parte da obra se define as crenças, o modo de pensar e agir dos povos antigos. Tais povos davam valor singular à morte e à alma, acreditavam que a morte era apenas uma mudança de estado, a alma continuava a viver na terra perto dos vivos, daí a importância dos túmulos e ritos fúnebres, já que, por continuarem a “viver” debaixo da terra também conservavam o sentimento de bem-estar e de sofrimento. Este é um ponto muito interessante do texto, pois segundo Fustel é esta a origem da necessidade de sepultura para o homem. Segundo esta crença aquele que não possuía túmulo não possuía morada, portanto não era feliz, assim temia-se mais a privação de sepultura do que a própria morte. Assim, rapidamente estas crenças resultaram em normas de conduta nos mais recuados tempos e introduziram-se como costumes. Para estes povos os mortos eram tipos como entes sagrados, seus túmulos eram templos destas divindades. E, cabia aos descendentes a responsabilidade de garantir a felicidade do morto, por isso dever-se-ia fazer oferendas alimentares e acender um fogo para aquecer a alma do antepassado. Cada lar grego e romano possuía um altar onde se fazia sacrifícios, acendia-se o fogo e oferecia-se aos ancestrais. “É preciso esclarecer esta importante situação porque sem o fazermos nunca se compreenderá a íntima correspondência estabelecida entre as velhas crenças e a constituição das famílias gregas e romanas[7]” (cap. IV). O culto dos mortos representa verdadeiramente o culto dos antepassados, o antepassado vivia no grêmio dos seus familiares, invisível, mas sempre presente. Cada família tinha suas cerimônias, que lhe eram próprias, e do mesmo modo as suas festas particulares, as suas fórmulas de oração e seus hinos.

A religião, portanto, era o principal elemento constitutivo da família antiga. A família não se constituía por conta do afeto ou nascimento, mas se fundamentava no poder do pai como sacerdote do lar. A família era um grupo de pessoas a quem a religião permitia invear o mesmo lar e oferecer o respasto fúnebre aos mesmos antepassados. Desta forma a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica foi o casamento, pois era praticamente um novo nascimento, já que era ela que instituía um lar, ou seja, um altar onde se manteria a felicidade de seus ancestrais e, onde os descendentes manteriam a felicidade de seus ancestrais das almas dos familiares. É aqui, segundo Fustel, a origem do casamento sagrado, sendo em a dissolução do casamento religioso sempre difícil e, claro a dificuldade da poligamia. “As crenças relativas aos mortos, juntamente com o culto devido a esses mortos, constituíram a família antiga e facultaram-lhe a maior parte das suas regras[8].”

A propriedade privada derivaria da crença da necessidade de se ter um pedaço de terra para o altar doméstico, pois os mortos viveriam nesta terra. Assim, as populações da Grécia e as da Itália, desde a mais remota antiguidade conheceram e praticaram a propriedade privada, pois a idéia de propriedade privada estava na própria religião, o solo onde repousavam os mortos converte-se em propriedade inalienável e imprescritível. O direito de propriedade, tendo-se estabelecido para a efetivação de um culto hereditário, não podia acabar com a morte de um único indivíduo. A propriedade não pertencia ao indivíduo, mas à família e, o pai é o primeiro do lar, é o seu sumo sacerdote. “A família é um Estado organizado, uma sociedade que se basta a si própria [9].” Contudo, esta família era bem maior que a família moderna, lembra o autor.

Assim, a cidade-estado surgiu como resultado deste tipo de organização familiar, a cidade era uma grande família. Família, fátria, tribo, cidade são, portanto, sociedades perfeitamente análogas e nascidas umas das outras por uma série de federações. No mundo antigo era o culto que constituía o vínculo unificador de toda e qualquer sociedade, cada cidade tinha seus deuses como, a família. O sacerdote máximo da cidade era chamado rei, como era o pai dentro da família. E, aquele que era da “família” chamada cidade era o cidadão, portanto era cidadão todo o homem que tomava parte no culto da cidade e estrangeiro aquele que não compartilhava do mesmo culto. A cidade nos seus primeiros tempos nada mais era do que a reunião dos chefes de família. Plebeu era o excluído do culto, não tinha família, nem autoridade paterna, nem direito de propriedade ou direitos públicos. Todo bastardo era repelido pela religião das famílias puras e relegado na plebe. O patriciado formou então um governo conforme os seus princípios, mas sem pensar em estabelecê-los para a plebe.

Contudo, a desigualdade não durou muito tempo, pois, segundo Fustel, as sociedades tendem para a igualdade, assim a democracia chegou inevitavelmente. Porém nem mesmo a democracia conseguiu acabar com os problemas, afinal jamais constituição alguma suprimiu as fraquezas e as imperfeições da natureza humana, segundo o autor, pelo contrário, a democracia acentuou as desigualdades. Então os pobres conclamaram o tirano, a democracia tornou-se em tirania. “Os tiranos só enquanto satisfazem as ambições da multidão e alimentavam as suas paixões podiam manter-se no poder[10].”

Assim, pois, a religião, o direito, o governo eram todos municipais. Porém o espírito humano aumentou as suas forças e concebeu novas crenças. “O espírito ficava embaraçado perante a grande quantidade de divindades e sentia a necessidade de reduzir o seu número[11]”, escreve Fustel em uma concepção claramente teleológica. Esta tendência ao uno facilitou a conquista romana, ou seja, levou ao império romano, à unidade. Todo este processo discreto culminará na sociedade ocidental do século XIX através de legados deixados por cada sociedade que existiu anteriormente, em especial Grécia e Roma.

Apesar de hoje em dia a tese de Fustel de Coulange nos parecer um tanto quanto simplória, para o século XIX sua obra inovou em muitos aspectos. E, mesmo para nós A Cidade Antiga é indispensável como fonte de informações para os historiadores que se ocupam dos estudos da antiguidade. Além de ter construído muito bem a defesa de sua tese, por isso é muito convincente, por mais que se seja contrário a este tipo de historiografia, dificilmente alguém negue seu poder de convencimento. Depois de ler este livro entende-se como este tipo de pensamento conseguiu penetrar tão profundamente na mentalidade ocidental. Mesmo que já tenha sido combatida nos meios acadêmicos, sua influência é indiscutível. A forma linear e didática, quase literária, sedutoramente convence o leitor. Porém, como os seus críticos mais ferrenhos alertam, é esta forma sedutora que é perigosa, pois sem perceber alimenta-se a idéia de superioridade de raças e povos. Para o século XIX A Cidade Antiga sem dúvida ajudou a legitimar o domínio, por exemplo, dos países hegemônicos europeus sobre os povos ditos inferiores, como os africanos. Mas, para quem sabe filtrar informações, a obra continua tendo o seu devido valor.

 

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

 

ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL. Volume 6, CINEMA-CRUSTA. São Paulo – Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica do Brasil, 1982.

 

FONTANA, Josep. História dos homens.

 

 


Autor: Francieli Ferreira Pontes


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