CORES DE ONTEM



O automóvel vermelho estaciona. A mulher branca, jovem, bonita, deixa-o e debruçando-se na porta ao lado da direção, fica conversando, despedindo-se do motorista. Quantos segundos assim? Ela, de preto, torna-se mais atraente, com o físico alto, esguio, os cabelos longos, negros que reluzem à iluminação do poste na esquina.

- Tchau!

- Tchau.

Sorrindo, ela se afasta, enquanto o carro parte, retornando a avenida transversal para, logo desaparecer na noite alta. Na rua as residências estão fechadas e as pedras do calçamento se parecem molhadas com a iluminação dos postes. Nenhum pedestre transita na rua. Tudo isso dá um quê silencioso e poético à rua.

A mulher empurra o portão e cruzando o jardim, com uma das chaves retiradas da bolsa ao ombro, abre o gradeado, adentra no terraço em "L" e, com outra chave abrindo a porta, entra na sala, onde fecha a porta. Procurando então não fazer barulho para não despertar a tia e o filho. Cruza o corredor, chega a outra sala e desta a cozinha, onde esquenta a comida guardada no forno do fogão.

Do quintal vizinho, um cachorro ladra. Da avenida chega a zoada da moto passando em velocidade. Uma voz de homem conversa com outro, na rua. Os característicos sons noturnos. Retira do armário ao lado o prato, os talheres e pondo o arroz, a carne, a farofa neste, e segurando a garrafa com o café, senta-se à mesa na outra sala. Devagarzinho se alimenta. Pensativa. O Germano anda mais "frio", assim como se estivesse ausente. Nesses dias ele lhe dará um "fora"... Conhece os homens: chega uma hora em que se ver sozinha, como se fosse uma "coisa", um objeto descartável. Mas, o quê fazer? Quisera ter uma vida normal, de casa para o trabalho, com o marido aguardando-a, a tia também lhe esperando, sorridente, atenciosa, cuidando bem do sobrinho... Mas, um dia (quem sabe?) terá essa vida. Enquanto estiver viva...

- A esperança não morrerá.

Diz, concluindo, em voz baixinha e, finda a refeição, na pia no terraço atrás da casa, lava o prato, os talheres, a garrafa e vasilhas. Amanhã, é dia de trabalho, de luta e Germano, como encarregado de turma, estará sempre próximo, e ela fará como se não o percebesse, no fingimento de ocultar (ocultar?) o que há entre ambos, mas, bem sabe que as colegas já lhe descobriram sua "relação" amorosa com o chefe...

- Basta de "encucações!".

Então toma o banho e no quarto, vestindo a blusa e o short velhos, deita-se, para o repouso merecido pelo exaustivo expediente na fábrica. Fecha os olhos. Aos poucos, o corpo relaxa e... Adormece.

No quarto vizinho, a tia está desperta. Por mais cautela que a sobrinha buscou, ela lhe percebeu os passos na sala ao entrar, na outra, na cozinha e conclui que ela já tomou o banho, jantou e está agora no quarto, dormindo. Tão nova, graciosa, mais uma vez chegando da fábrica no carro vermelho do sujeito mulato, que provavelmente, deve ser o seu amante. Ah, se pudesse não ter de presenciar, saber dessas coisas! Mas, o que poderia ela, D. Carmem esperar? Neide é nova, charmosa... E não lhe falta "paqueradores", buscando apenas os prazeres carnais, e tudo isso porque a sobrinha ficou viúva e teve de trabalhar, para sobreviver com o filho e ela, a tia.

Rebola-se insone. Ao lado, na cama, o menino também lhe parece, está acordado. O que o Eduardo aos poucos vê, com certeza, se lembrará no futuro. E até que ponto o passado lhe prejudicarão o presente, a própria vida? Ah, os mistérios de nossa existência!

O cão da casa vizinha continua latindo. O guarda-noturno apita nas proximidades. D. Carmem se vira, procurando melhor posição, no leito, na tentativa de adormecer. Apenas adormecer.

Em sua cama, o menino está também desperto. Os olhos nas telhas do forro descoberto. Por que mamãe chega tarde do emprego, não vem cedo, como o pai do Carlinhos, seu amigo de brincadeiras? Se ela chegasse cedo, conversaria com ele, lhe contaria as novidades lá da fábrica, assistiriam a televisão... Seria tão bom! Com a tia, fica um "negócio chato", a tia é calada, como se ele não estivesse ali na sala. Por que esse cachorro ai do vizinho late tanto? Bicho cabuloso! O guarda vem de novo, apitando, apitando... Adormece.

A mãe está velha, sempre na cadeira de balanço, bordando, ou cadenciando-se em silêncio. Entregue ao seu mundo de idosa, ao que viveu, às cenas em seqüência, como num filme. A tia Carmem já faleceu, vítima de um infarto fulminante. E ele, Eduardo, está um homem feito, ainda solteiro, sempre se lembrando das noites nas quais a mãe chegava no carro vermelho do chefe, que um dia, entendeu lhe ser o amante. Ele desperto, aguardando-a. A tia na outra cama, também sem conseguir dormir. Os passos sutis na sala, na outra, na cozinha. O cão do vizinho latindo. Um ou outro pedestre cruzando a rua. O apito estridente do guarda-noturno, no fingimento de que vigiava as residências. O barulho de uma moto na avenida, um pouco adiante... Um mundo de lembranças. Um mundo perdido, contudo, com a força de fazê-lo se recordar, se recordar.

Empurra o portão. Com a chave retirada do bolso das calças abrindo o gradeado, entra no terraço.

Na sala conjugada, a idosa mulher cochila no sofá, à frente da televisão ligada. Ele a fita e, devagarzinho se avizinha, com o coração cheio de amor.

- Pobre mãe.

Ai está uma vida que poderia ter sido diferente...

- Bem diferente.

Repete-se, dando voz ao que sente e passa devagarzinho para não despertar a mãe, trazê-la ao presente de novas cores, de outra realidade.


Autor: Paulo Valen�a


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