CRIME E CIÊNCIA PENAL NO ÂMBITO DO SISTEMA CAPITALISTA



Antonio Roberto Xavier*

*Sgt da ativa da PMCE; Graduado em História (Lic. Plena) pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, Especialista em História e Sociologia pela Universidade Regional do Cariri – URCA, Mestre em Planejamento e Políticas Públicas pela UECE e Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela UECE.

RESUMO: Neste artigo abordamos crime e ciência penal a partir da fundação do Estado-Nação pós-revoluções Americana (1776) e Francesa (1789). Declinamos que o crime é tão antigo como a existência da própria humanidade e veio a estar presente a partir da convivência humana em coletividade. Como um acontecimento histórico que vem acompanhando a evolução da humanidade, igual a uma sombra sinistra o crime não pode ser conceituado ou definido de uma única maneira para todas as sociedades e de forma estática. Isto se dá em razão da dinâmica e diversidades histórica e cultural de acordo com suas peculiaridades em cada formação social. Neste prisma, fazemos um apanhado histórico dos conceitos e fundamentos do crime a partir da Escola Penal Clássica ou Racional, estabelecida a partir do Estado-Nação. Com efeito, o advento da fundação do Estado-Nação que se tornou, gradativamente, também Liberal estabeleceu seu Estatuto Jurídico de modo a ser cumprido e respeitado a fim de evitar o retorno ao estado de natureza no qual havia a matança constante e a guerra de todos contra todos. Deste modo, o Estado burguês detentor legal do monopólio da violência se arrolou também como legítimo detentor do poder capaz de manter a ordem social, impondo direitos e deveres aos indivíduos, determinando a forma jurídica que devia prevalecer através de delegações aos poderes e autoridades legítima e legalmente constituídos.

Palavras-chave: crime, direito, ciência penal

CRIME & CIÊNCIA PENAL NO ÂMBITO DO SISTEMA CAPITALISTA NO ESTADO-NAÇÃO[1]

1. A trajetória dos conceitos e fundamentos do crime

A sociedade humana é algo dinâmico que a cada dia descobre novas necessidades a serem supridas visando alcançar novos objetivos, metas e ideais. Neste sentido é que a humanidade e suas diversas estruturas e conjunturas transformam-se no tempo em todas as áreas do conhecimento humano, inclusive, na ciência jurídica que para acompanhar as mudanças e transformações político-social-econômicas buscam dinamizar a Ciência do Direito de acordo com os clamores e reivindicações coletivas comunitárias. 

Com efeito, um dos ramos do Direito é o Penal que ao longo das transformações e avanços da sociedade procura adaptar-se legal e legitimamente, prevendo, definindo e punindo ações e/ou omissões praticadas pelo ser humano. Essas ações ou omissões no âmbito do dispositivo penal são caracterizadas como crimes e têm acompanhado a trajetória da humanidade pari passu ao seu desenvolvimento e evolução. No pensamento do jurista Noronha (1995), é possível afirmar que a história do Direito penal é a história da humanidade. Ele surge a partir do aparecimento do homem e o acompanha ao longo dos tempos, isso porque o crime, qual um vislumbre sinistro, nunca do homem se afastou. Isto significa dizer que o crime é tão antigo como a existência do próprio homem e veio a estar presente a partir de sua vivência em coletividade. 

Como todo fenômeno social, o crime é um acontecimento, um fato, que ocorre no transcurso da vivência do ser humano, surpreendendo e modificando sua trajetória aparente esperada. Deste modo, o crime ao ser estudado não pode ser feito separadamente do comportamento da pessoa humana em sua real convivência coletiva. Se a sociedade é dinâmica em virtude de seu componente principal, o ser humano, um construto, um constante devir como assinala Menezes (1992), o crime, que acompanha a humanidade igual uma sombra funesta, não pode ter um conceito estático, imutável, pronto e acabado em algum momento único. Deste modo, cada crime tem suas características e peculiaridades próprias atinentes às suas individualidades e realidades. Dito de outro modo, assim como não há possibilidades de ocorrerem dois fenômenos ou dois fatos históricos exatamente iguais, também não pode haver a ocorrência de dois crimes exatamente com as mesmas características e com os mesmos intempéries ou sem intempéries. Neste caso, é necessário que se pergunte: o que é crime? Quais são suas definições e conceitos a partir da instalação e consolidação do Estado Moderno? Como o crime tem sido explicado ao longo de suas trajetórias pela Ciência Penal? Qual tem sido a essência da Ciência Penal Moderno-contemporânea? Essas e outras questões serão doravante discutidas.    

Os conceitos e fundamentos sobre crime, ao longo da história humana, evoluem e se modificam de acordo com as estruturas, conjunturas e superestruturas de cada contexto social. Neste raciocínio é que diferentes definições, conceitos e fundamentações foram atribuídos ao crime nas diversas Escolas do Direito Penal no ocidente, tendo como referência o continente europeu e, especificamente, Itália, Alemanha e França. 

Em definição simplista, os dicionários modernos definem crime como sendo transgressão de um preceito legal; infração da Lei ou da moral; todo ato que provoca a reação organizada da sociedade; qualquer infração penal a que a Lei prevê pena; delito; ato punível. Do ponto de vista da Legislação Penal Brasileira, crime é a infração penal que a Lei impõe pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa[2] e contravenção penal, a infração a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente; toda violação imputável dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva, da lei penal; sinônimo de delito ou ainda: para que haja a configuração de crime, consideram-se dois fatores: o material, a ação praticada pelo autor, e o moral, vontade livre e inteligente do agente[3]. 

Com o advento do Estatuto Jurídico da sociedade burguesa a partir do Estado Moderno definido pelos pensadores iluministas, sobretudo por Montesquieu (1982), ficou assegurado à separação dos poderes do Estado em Legislativo, Executivo e Judiciário, como forma de evitar abusos e tiranias dos governantes praticadas no antigo regime absolutista no qual os monarcas agiam como se fossem a própria lei executando ou queimando seus desafetos. Com o advento das idéias humanitárias do iluminismo no Estado Moderno e, posteriormente, no Estado-Nação Liberal, a razão prevalecia e, portanto, os governantes deveriam agir à base do racionalismo humano, do manto da lei. Influenciado pela proposta lockeana de um poder legislativo, Montesquieu definirá a arte de legislar como instrumento capaz de evitar as contradições dos códigos e adequar as leis à natureza e aos princípios dos governos. Starobinski apud Parente (1994, p.13-14), destaca a importância e a colaboração de Montesquieu no sentido da impessoalidade da lei para evitar a ação humana a partir de desejos pessoais e para o controle da violência:

Onde manda a lei, calam-se as paixões. Mas quem garantirá, na prática, a autoridade dessa lei que reprime a violência? É preciso que ela tenha algum poder para se opor aos excessos do poder. De onde viria esse poder? Do céu? Dos homens? É preciso que ela tenha autoridade das coisas celestes, que os homens reconheçam nela o seu interesse comum. Mas ela não é vontade particular de ninguém, nem de Deus, nem do príncipe, nem, do 'eu' coletivo que Rousseau chama de 'vontade geral'. Montesquieu – como quase todos os homens da sua época – recusa a submeter-se a um direito que tivesse sua origem em uma subjetividade. Uma subjetividade começa sempre por querer a si mesma, ela é, portanto, violência. A lei que Montesquieu deseja é um poder impessoal e sem origem, que plana acima das existências subjetivas, para conciliá-las e harmonizá-las. É preciso que, ao se obedecer à lei, não se obedeça ninguém realmente. Na cidade livre, ninguém manda, mas todo mundo obedece.

Além disso, de acordo com Locke (1963), o projeto de Estado Liberal preconizava a responsabilidade pela proteção patrimonial e das liberdades individuais das pessoas, tutelando a ordem social para que o indivíduo não se sentisse no direito de fazer justiça com as "próprias mãos". O Estado, além de detentor legal do monopólio da violência, se arrolou como legítimo detentor do poder capaz de manter a ordem social, impondo direitos e deveres aos indivíduos, determinando a forma jurídica que deve prevalecer através de delegações aos poderes e às autoridades legítima e legalmente constituídas (WEBER, 1982). 

Para cumprir com sua missão jurídica era preciso definir o que podia e o que não podia ser praticado pelas pessoas diante do Estatuto Jurídico burguês o qual guiaria os rumos desse Estado - que aos poucos e se tornando também liberal - no âmbito das ciências penais. Neste sentido, era preciso definir o que era crime e o que não era. A partir de então, decorrente de diversos prismas de várias Escolas Penais, o crime passa a ser analisado sob a ótica e o crivo do Direito Penal na tentativa de se encontrar definições, conceitos e fundamentações capazes de atender as demandas do Estatuto Jurídico burguês. Esta não era uma tarefa fácil de realizar, haja vista a competência da definição de crime pertencer a Doutrina Penal, em função da evolução conceitual de crime, ao longo dos séculos. 

Acompanhando o raciocínio de Bitencourt (2000), os fundamentos e definições conceituais de crime dividem-se em 03 (três) fases: a do conceito clássico, a do neoclássico e a do finalismo. O conceito clássico foi elaborado por von Liszt e Beling e baseava-se na ação corporal produtora de modificação no mundo exterior. A estrutura conceitual classicamente distingue dois aspectos do crime: o objetivo, representado pela tipicidade e antijuricidade e o subjetivo, representado pela culpabilidade. Esse conceito oriundo do positivismo científico rejeitava qualquer contribuição valorativa do âmbito filosófico, psicológico e sociológico. Procurava solucionar todas as questões jurídicas a partir, exclusivamente, do Direito positivo-formal na análise do comportamento humano, concebendo a ação puramente naturalística com o tipo objetivo-descritivo, a antijuricidade puramente objetivo-normativa e a culpabilidade subjetivo-descritiva. Essas definições surgiram no final do século XIX. 

Com efeito, o conceito clássico de crime deriva-se de quatro (04) elementos: 1) da ação – puramente descritiva, naturalista e causal, valorativamente neutra; 2) da tipicidade – caráter externo da ação, incluindo somente os aspectos objetivos do fato descrito na Lei; 3) da antijuricidade – o elemento objetivo, valorativo e formal implicando um juízo de desvalor; e 4) da culpabilidade – aspecto subjetivo do crime de caráter essencialmente descritivo. Deste aspecto decorre as formas criminosas dolosa e / ou culposa. 

O conceito neoclássico de crime surgiu no início do século XX. Este conceito não se desvincula completamente dos princípios fundamentais do clássico, porém o transforma essencialmente. Influenciado pela filosofia neokantiana no âmbito jurídico[4], dá especial atenção ao aspecto normativo e axiológico. Destarte, a coerência formal do pensamento jurídico redomado em si próprio é sistematicamente substituído pela teoria teleológica, ou seja, conceito de crime voltado para os fins definidos pelo Direito Penal e por suas perspectivas valorativas embasadoras. Essa teoria do neokantismo utilizava-se do método científico-naturalístico do observar e descrever, próprio das ciências humanas.  

Com efeito, o conceito neoclássico de crime transforma potencialmente os quatro (04) elementos estruturantes do conceito clássico, a recordar: a ação, a tipicidade, a antijuricidade e a culpabilidade. A partir de então, a ação, cuja concepção era restritamente naturalista causal e objetivista de acordo com a vontade de produzir o resultado, ou seja, a ação somente dolosa passa a ser analisada também do ponto de vista culposa, tentada ou da omissão. A tipicidade, antes apenas de aspectos puramente objetivos lhe são acrescidos os aspectos subjetivos baseados nos elementos normativos. A antijuricidade, antes representada apenas como uma contradição formal à norma jurídica, passou a ser concebida de acordo com a materialidade e o grau de danosidade social, possibilitando, assim, novas causas de justificação. Neste sentido, o conceito material de antijuricidade concede o complemento axiológico e teleológico. Por último, a culpabilidade, antes concebida como caráter piamente subjetivo e descritivo passa a ter caráter puramente normativo. 

A partir da década de 1930, o jurista alemão Welzel passou a desenvolver o conceito de crime no finalismo. Opondo-se ao conceito causal de ação, sobretudo à separação entre vontade e seu conteúdo, a teoria do conceito finalista não separa os aspectos objetivos e subjetivos da ação. Através desse conceito, todos os elementos subjetivos que integravam a culpabilidade passam a ser incluídos na ação. O finalismo concentrou na culpabilidade apenas as circunstâncias de reprovabilidade da conduta contrária ao Direito e transpôs o dolo e a culpabilidade para o injusto pessoal. Apesar dessas transformações nos elementos nos elementos estruturantes que compõem os conceitos anteriores de crime, o conceito finalista não altera a essência básica, ou seja, o crime continua conceitualmente como sendo um fato típico, antijurídico e culpável, necessitando ser analisado seqüencialmente cada categoria. 

Pagliuca (2006), resume as definições e conceitos de crime adotados pelos doutrinadores, a partir de três (03) eixos principais. Em primeiro lugar, o crime é conceituado formalmente, levando em conta o aspecto externo e puramente nominal do fato, ou seja, é uma conduta ativa ou omissiva contrária ao Direito a que a Lei atribui uma pena. Em segundo lugar o conceito é material, ou substancial cuja definição legal de crime é acompanhada pelo ponto de vista sociológico-jurídico de que o crime traz sempre consigo uma ameaça a um bem, ou interesse juridicamente tutelado, ou basilar para a sociedade e por isso carece de proteção do Estado considerando aspectos particulares, como caráter danoso ou perigoso socialmente. Assim, é levado em conta o estado emocional-psíquico do infrator e a forma como foi praticado o crime: ativa ou omissiva. Por último, trata-se do conceito analítico de crime. Do ponto de vista da doutrina clássica, como já foi explicitado o crime é definido como sendo um fato típico, antijurídico e culpável. O que muda com a teoria finalista é que a culpabilidade pode ou não ocorrer, isto é, o crime pode existir sem o autor sofrer a pena, pois a culpabilidade é ausente. Neste caso se estaria diante da exclusão de ilicitude penal[5].  

2. Das Escolas Penais a partir do Estado-Nação

Da Escola Penal Clássica pertencente ao ideário iluminista derivou a sistematização do Direito da pessoa humana regulado pelo Penal e a criação dos princípios gerais. Essa Escola, consoante Pagliuca (2006), embasava-se no Direito natural, do qual surgiram a teoria do jusnaturalismo, com a idéia de livre-arbítrio, bem como na teoria contratual cujo método de investigação era o dedutivo ou lógico-formal. Desta forma, o Direito emanava da ordem natural das coisas, devendo ser superior e anterior ao Estado. Postulava pela valorização da dignidade humana e reivindicava a autonomia do ser humano por meio da cidadania perante o Estado. 

Chamada também de Escola Racionalista ou Contratualista, a Escola Penal Clássica surgiu por volta do final do século XVII e século XVIII, com o enfraquecimento do absolutismo monárquico. Essa Escola baseava-se no ideário dos filósofos que defendia o pacto social, sobretudo nas idéias de Hugo Grocio (1583-1645), Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e culminando com o "Contrato Social" idealizado por Jean Jacques Rousseau (1712-1778), como condição sine qua non para que homem pudesse viver em sociedade. Neste sentido, a Escola Contratualista opunha-se a Escola Teológica quando defendia que o Direito não se originava das inspirações divinas, e sim da razão humana, porém, seguia o mesmo ideário da Escola Jusnaturalista da Grécia antiga, pois acreditava ser o Direito universal e imutável. Deste modo,

A teoria jusnaturalista fundamenta os direitos humanos em uma ordem superior universal, imutável e inderrogável. Por essa teoria, os direitos humanos fundamentais não são criação dos legisladores, tribunais ou juristas, estão como que impressos na natureza humana e, conseqüentemente, não podem desaparecer da consciência dos homens (FARIAS, 2003, p. 58).

Pelos parâmetros dessa Escola Penal o Direito podia ser interpretado de acordo com duas vertentes: a natural e a positiva. Os intérpretes da vertente do Direito natural asseguram não haver distinção do jusnaturalismo, apenas que esse tipo de Direito não mais é de caráter divino, mas da razão humana. Quanto aos intérpretes da corrente positiva defendem a idéia de um pacto ou contrato social para se poder viver em sociedade. Desta última vertente surgiria a Escola Positivista[6]. A Escola Penal Clássica definia crime a partir do princípio da reserva legal, segundo a qual não "há crime sem ter lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal" (Art. 1º, do Código Penal Brasileiro). Esse princípio, inclusive, está acostado na Constituição Federal brasileira. Todavia, as argamassas sedimentadoras do campo epistemológico desses princípios definidores do Direito Penal na Escola Clássica assentam, sobretudo, nas idéias de Montesquieu (1973) e Beccaria (1982). Tendo sido, este último, a primeira voz que se levantou contra as injustiças dos processos criminais baseados na tradição jurídica do Direito teológico ou Direito divino, segundo o qual o governante recebia de Deus as leis e o direito de governar, sem prestar nenhuma satisfação aos seus súditos. A teoria do Direito divino coroou o absolutismo monárquico no início do Estado Moderno conferindo aos reis imensos poderes, inclusive, de governar e de julgar ao seu bel prazer com decisões tirânicas e injustas. Foi contra essa tirania que Beccaria levantou-se a favor da justiça, do sentimento e da razão, ou seja,

Beccaria foi a primeira voz a levantar-se, em nome da humanidade e da razão, contra a tradição jurídica e a legislação penal de seu tempo, denunciando os julgamentos secretos, as torturas empregadas como meio de se obter a prova do crime, a prática de confiscar os bens do condenado. Uma de suas teses é a igualdade, perante a lei, dos criminosos que cometem o mesmo delito. Suas idéias se difundiram rapidamente em todo mundo civilizado, sendo aplaudidas por Voltaire, Diderot e Hume, entre outros, e sua obra exerceu influência decisiva na reformulação da legislação vigente da época, estabelecendo os conceitos que se sucederam (CLARET, 2002, p. 138).

Reconhece-se que o esforço de Beccaria e de outros juristas contemporâneos seu estava contido na necessidade de limitar e controlar os abusos de poder do Estado absolutista e de seu monarca. Para que isso fosse possível reivindicava-se o estabelecimento dos princípios básicos da igualdade e da legalidade a serem efetivadas no Estado-Nação no intuito de proteger a dignidade da pessoa humana. Esta era a razão do sistema jurídico existir, conforme Comparato apud Farias (2002).

Na segunda metade do século XIX, com a sedimentação e ápice das Ciências experimentais e a ineficácia da Escola Penal Clássica em diminuir a criminalidade, surge a segunda Escola Penal, a Positiva. Com o apoio das pesquisas biológicas e evolucionistas da espécie humana de Charles Darwin (1859), desponta soberanamente sobre a Escola Penal Clássica, destacando a função sociológica dos seres, sobre a função jurídica. Conforme seus postulados, a Escola Penal Positiva nega o jusnaturalismo, afirmando que o Direito deve ser compreendido como produto humano e social; prega o determinismo da ordem, haja vista a responsabilidade de organização coletiva derivar-se da vida social; a genética e a patologia criminal e a pena como recurso em defesa da sociedade. Por esta ótica, o crime deve ser analisado e avaliado sob o crivo sócio-criminológico, e não jurídico. Além disso, a teoria positivista difere da Clássica quando prescreve que a existência dos Direitos Humanos é de ordem normativa e baseia-se na manifestação da soberania popular. Destarte, somente são considerados Direitos Humanos fundamentais aqueles previstos no ordenamento jurídico positivado. 

Segundo Bitencourt (2000), o surgimento da Escola Penal Positiva deveu-se (além da ineficácia da Escola Penal Clássica em diminuir a criminalidade): ao descrédito das doutrinas espiritualistas e metafísicas e a difusão da filosofia positivista; a aplicação dos métodos de observação ao estudo do homem, especialmente em relação ao aspecto psíquico; aos novos estudos estatísticos realizados pelas Ciências Sociais de Quetelet e Guerri que possibilitaram a comprovação de certa regularidade e uniformidade nos fenômenos sociais, inclusive a criminalidade; e as novas ideologias políticas que pretendiam responsabilizar o Estado pela assunção positiva na realização dos fins sociais, mas, ao mesmo tempo, entendiam que o Estado havia ido longe demais à proteção dos Direitos Individuais, em detrimento dos Direitos Coletivos.  

Conforme observa Pagliuca (2006), a Escola Penal Positiva divide-se em três fases: a de Lombroso (1875), cujos estudos antropológicos consideraram o criminoso como nato, isto é, ao nascer o indivíduo já traz consigo o estigma delituoso, inclusive com compleição corpórea adequada para a prática do crime; a de Enrico Ferri (1933), com seus estudos sociológicos definindo o criminoso em cinco categorias: o criminoso nato, o louco, o habitual, o ocasional e o passional; e a de Rafael Garófalo (1891), que através de suas abordagens criminológicas sistematizou juridicamente as idéias positivistas, caracterizando a pena como recurso preventivo ao crime e o direito de punir como meio de defesa social. A noção de que os verdadeiros crimes (aqueles que são repudiados em todas as sociedades, pois, ofendem a moralidade elementar de um povo civilizado e revelam anomalias em seus praticantes) estão vinculados ao natural fazia com que o criminalista sociólogo empenhasse-se em descobrir suas causas e os remédios para curá-los.

Com efeito, a Escola Penal positivista baseia-se, sobretudo no ideário de Friedrich Hegel (1770-1831), permanecendo até os dias atuais e tem influenciando jusfilósofos como Hans Kelsen (1881 – 1973) e Norberto Bobbio (1909- ), na tentativa de encontrar uma regra perfeita e um método pronto e acabado como nas ciências exatas.

O positivismo jurídico exclui o Direito natural e toma como verdade somente o Direito numa adequada ciência, com as mesmas características das físico-matemáticas e naturais.... seus defensores pregam que só deve interessar aos estudiosos o Direito, a moral e a ciência positiva, ditados pela observação, pela experiência e pela necessidade. Tais fatos só ocorrem quando há conflito entre duas partes, que cria a necessidade de um terceiro – no caso, o Estado -, responsável por criar normas e resolver as controvérsias. Por ser ditada pelo bem da sociedade, essa lógica não deveria ser questionada. Atualmente, porém, os filósofos do Direito consideram que o pensamento positivo não é suficiente por si só, uma vez que pressupõe a legitimidade, característica inerente ao Direito natural (FERREIRA, apud Visão Jurídica, 2006, p.71-72).

Conforme o pensamento de Ferreira (op. cit.), o Direito é ao longo do tempo visto sob duas vertentes. Primeiro, como Direito natural, originário de um ordenamento ideal, correspondente a uma justiça superior e suprema. Segundo, o Direito positivo, advindo de um ordenamento jurídico que vigora em diferentes países e épocas. As duas formas de interpretação do Direito surgiram na Roma antiga e são utilizadas até hoje em meio a grandes controvérsias nos diferentes contextos e teorias sobre o Direito. 

A terceira Escola Penal, a crítica, surgiu no final do século XIX, com o princípio básico da separação do Direito Penal das outras ciências. Define a responsabilidade penal como determinação psicológica e o crime como um fenômeno social e natural, mas também pessoal e a pena como defesa e preservação da sociedade. Os principais representantes dessa Escola são os juristas Carnevale (seu principiador), Alimena, Impallmeni, Merkel, Liepmann, Stern e Detker. Essa Escola Penal possuía características ecléticas seguindo, às vezes, princípios de uma ou outra Escola Penal anterior. 

A quarta Escola penal, a sociológica criminal ou da política criminal é originária da Alemanha e tem como fonte inspiradora o pensamento do renomado jurista alemão von Liszt. Além de Liszt, outros juristas como: Adolphe Prins, Gerard von Hamel e Karl Stoos deram importantes contribuição para o estabelecimento e consolidação dessa Escola criando a União Internacional de Direito Penal, atualmente, representada pela Associação Internacional de Direito Penal. Essa escola também de caráter eclético mesclava concepções das Escolas Penais abordadas anteriormente conservando, inclusive, a separação do Direito Penal das demais Ciências Penais. Em sua concepção, o crime figura como um evento fenomenológico jurídico perigoso e imputável. A pena como recurso de prevenção especial, geral e interligada com a política criminal. Entretanto, sua tese é separatista em relação a Política Criminal e o Direito Penal. Em oposição a essa tese separatista, cuja visão é totalizadora ou globalizadora no âmbito do Direito Penal proposta por Liszt, em Gomes e Cervini (1997, p. 26 - 27).

Existe, na realidade, uma relação de complementaridade entre todas as ciências criminais, por isso nada justifica que sejam estudadas em separado; a visão integralizadora é, provavelmente, o caminho melhor e mais correto do penalista atual. Isso significa, desde logo, que nenhum diploma legal pode ser interpretado isoladamente. Mas, diferentemente do sistema idealizado por Liszt, a tendência consiste na realização de um intercâmbio total entre todas as ciências criminais, é dizer, entre o jurídico-normativo e o empírico.

Continuando na mesma discussão, Claus Roxin apud Gomes e Cervini (op.cit), afirma que o caminho é a permissão da penetração das decisões valorativas político-criminais no sistema do Direito Penal, "em que sua fundamentação legal, sua clarificação e legitimação, sua combinação livre de contradições e seus efeitos não estejam por debaixo das configurações do sistema positivista formal proveniente de Liszt". Nesta ótica, o Direito Penal e a Política Criminal não são Ciências contraditórias como é considerado tradicionalmente. Ao contrário, podem ser complementares cientificamente e de grande serventia para a sociedade. Para isso é preciso a análise conjuntiva e integralizadora de ambas. O passo decisivo é a desconstrução do conceito do Direito Penal formalista que o transforma em Ciência de professores, concebida como mera reprodução da lei, de texto frio, isolada da realidade sócio-político-econômica e histórico-cultural de cada nação.

Alcançamos, assim, uma nova e fundamental conclusão metodológica: o método adequado para o estudo da Ciência Penal não pode deixar de lado a Política Criminal; esta, consoante o autorizado magistério de Quintero Olivares, deve influenciar a interpretação do Direito Penal positivo e, por conseqüência, a formação do sistema dogmático e a muito importante matéria da determinação da pena, ponto fundamental dos problemas político-criminais.... Em virtude do positivismo-legalista o Direito Penal foi isolando-se das Ciências empíricas e da Política Criminal. O momento agora é de reunificação, sem que cada uma das Ciências perca sua autonomia investigativa e científica. O correto parece ser a integração da Criminologia, com seu método empírico, indutivo e interdisciplinar com a política criminal, bem como desta com o Direito Penal (idem).

A quinta Escola Penal, a técnico-jurídica, surge como resolução da problemática influenciadora da escola positivista no Direito Penal. Essa Escola Penal tem como principais representantes: Arturo Rocco, Vicenzo Manzini, Giácomo Delítala, Vannini, Conti, Cicala, Massari e Binding, que a impulsionou definitivamente. Pelo caráter técnico-jurídico, o crime passa a ser analisado por um método restrito à Ciência do Direito Penal que apresenta um objeto e finalidade própria, reafirmando a superioridade da dogmática penal. Pagliuca (2006, p. 29-30) explica:

Aníbal Bruno assinala muito que a chamada Escola do tecnicismo jurídico é mais uma corrente de renovação metodológica do que propriamente uma Escola, constituindo um movimento de restauração do critério propriamente jurídico na Ciência do Direito Penal. Não se nega a necessidade e a importância das pesquisas causal-explicativas em torno do crime como realidade fenomênica: apenas se afirma que elas são substancialmente distintas do estudo científico do Direito vigente, sendo assim, uma ciência normativa, cujo único método de estudo é o técnico-jurídico ou lógico-abstrato.

A sexta Escola Penal, a Correcionalista, surgiu na primeira metade do século XX, na Alemanha. Os principais representantes dessa Escola foram Carlos Roder, Sanz Del Rio e Pedro Dorado Montero. Como o próprio nome sugere essa Escola tinha a função precípua de corrigir o indivíduo através da pena. Consoante Pagliuca (2006), os adeptos desta Escola consideram que a Pena é uma prevenção social e que o mais importante é aplicar sanções punitivas ao indivíduo, a fim de curá-lo ao invés de punir o delito. Sua tese é a de que o criminoso é considerado por completo maléfico ao convívio social e, portanto, deve ser execrado de todas as formas do seio da sociedade para não impulsionar outros a praticarem delitos penais. 

Caminhando com o raciocínio do penalista Franco (1994), esse tipo de modelo político-criminal de cunho positivista da law and order, estaria presente na desigual sociedade contemporânea. Esse modelo passa a ver o criminoso como "o outro", o anormal, o louco, o desajustado, o marginal, o patológico. Pelo discurso desse modelo político-criminal a sociedade passa a ser dividida em duas categorias de pessoas: por um lado existem os cumpridores da lei (as pessoas de bem) e há as que não cumprem a lei (as pessoas más). No primeiro grupo de pessoas, segundo o discurso positivista da law and order, estão os homens íntegros, incapazes de cometerem crimes, são verdadeiros cidadãos que precisam ser protegidos do outro grupo de pessoas, "os foras-da-lei", selvagens, anormais, bandidos, vagabundos, que mancham a sociedade dos "homens bons". É necessário que o Estado com sua lei forte puna com todo rigor os homens maus para poder restabelecer a paz e a ordem e purifique a sociedade, tornando-a sadia, livre da delinqüência e dos criminosos. Somente assim, a família dos homens "bons", seus bens e a própria sociedade não serão poluídas pela desgraça do mundo: o crime. Esse é o discurso demagógico e moralizador da atual sociedade: de uma classe que manda e outra que deve obedecer, caso contrário, esta última sofrerá sanções implementadas pelo Estado e suas impiedosas leis (apud Gomes e Cervini, 1997, p.36-37). 

Finalmente, foi criada a Escola Penal da nova defesa social. Aliás, como ressalta Pagliuca (2006), essa foi mais do que uma Escola Penal foi um movimento de análise crítica do que havia sido apresentado até então em termos de Ciência Penal. Os principais representantes desse movimento foram Adolphe Prins e depois por Filipe Gramática em 1945, na Itália. Em 1954 surgiu a Nova Defesa Social, idealizada por Marc Ancel. A tese desse movimento é a de que a sociedade como um todo é capaz de prevenir o crime e reinserir o indivíduo delituoso, novamente, no convívio social. Atualmente, esse movimento está caracterizado pelo funcionalismo de Roxin e Jakobs. Ao contrário da escola correcionalista, essa nova Escola apresenta um caráter analítico-crítico da visão discriminadora e excludente do sistema punitivo atual e dá ênfase a interdisciplinaridade das Ciências Penais. Seus pressupostos são de que o Direito Penal tenha uma finalidade humanitária objetiva ou uma função social. Isto significa que se está buscando a humanização do Direito Penal para que este vise alcançar a recuperação ou a ressocialização daquele que esteve sob seu julgo. Nas palavras de Bitencourt (2000, p. 64):

A primeira teoria de defesa social aparece somente no final do século XIX, com a Revolução positivista. Em 1945, Felipe Gramática funda, na Itália, o Centro internacional de Estudos de defesa Social, objetivando renovar os meios de combate à criminalidade. Para Gramática, o direito Penal deve ser substituído por um direito de defesa social, com o objetivo de adaptar o indivíduo à ordem social. No entanto, a primeira sistematização da Defesa Social foi elaborada por Adholphe Prins....Marc Ancel publica em 1954, a nova defesa social, que se constituiu em um verdadeiro marco ideológico, que o próprio Marc Ancel definiu como "uma doutrina humanista de proteção social contra o crime". Esse movimento político-criminal pregava uma postura em relação ao homem delinqüente, embasava nos seguintes princípios: a) Filosofia humanista que prega a reação social objetivando a proteção do ser humano e a garantia dos direitos do cidadão; b) valorização das Ciências Humanas, que são chamadas a contribuir interdisciplinariamente no estudo e combate do problema criminal.

Essa é uma forma que vem se aproximar do que propunha o humanista jurista Beccaria (1982), que primava pela punição do delito e não pelo castigo individualizado ao delinqüente. Beccaria defendia a proporcionalidade das penas de acordo com os delitos praticados e que a lei deveria ser aplicada de forma rápida, certa e infalível, a fim de evitar a impunidade. Nesse ângulo acrescentou: "não é a crueldade das penas um dos maiores freios dos delitos, senão a infalibilidade delas... a certeza do castigo, ainda que moderado, causará sempre maior impressão que o temor de outro castigo mais terrível, mas que aparece unido com a esperança da impunidade" (apud Gomes e Cervini, 1997, pp. 39-40). 

O pensamento de Beccaria expresso no século XVIII vem corroborar com a moderna e contemporânea orientação científica no atual modelo político-criminal. Essa é uma postura metodológica que parte de uma premissa de uma política criminal ressocializadora e intensamente democrática que visa de todas as formas evitar suprimir direitos e garantias constitucionais. Com efeito, dentro dessa perspectiva elimina-se, dentro das possibilidades, evitar o cerceamento da liberdade até das prisões de curta duração. Isto explica o fato de que nas últimas décadas terem as penas alternativas tido atenção maior. Esse tipo de pena, de acordo com Deleuze (1990), seria próprio das Sociedades de Controle, a atual, marcada pela setorização, informalidade, virtualidade, especulação, enfim, das sociedades cibernéticas. Nesse tipo de sociedade há a presença de um panoptispo mais constante do que nas Sociedades Disciplinares analisadas por Foucault (2001a, 2001b). As pessoas nos centros urbanos, apesar de livres, sentem-se vigiadas e olhadas o tempo todo pelas câmeras digitais, chips, etc. Nas prisões, esses sistemas estão ao redor o tempo todo tanto interna como externamente. Nessas Sociedades de Controle é possível que os apenados cumpram suas sanções à distância, em locais pré-estabelecidos, porém visualizados ou conectados através de chips, coleiras eletrônicas, satélites ou câmeras visuais.

3. Crime e Direito Penal na perspectiva sociológica

Influenciado pelo ideário da Escola Penal Positiva da segunda metade do século XIX, o sociólogo Émile Durkheim (1978) explicará que alguns sentimentos coletivos estão tão fortemente gravados em nossas consciências que o Direito Penal de proteção social, sobretudo o Direito Positivo estabelecido pelas diretrizes do Estado burguês conservador é lento e não acompanha a evolução da sociedade cujos costumes mudam mais rápido.

Que se observe, por exemplo, o que fez a legislação desde o começo do século nas diferentes esferas da vida jurídica; as inovações nas matérias de direito penal são extremamente raras e restritas, enquanto que, ao contrário, uma variedade de disposições novas foi introduzida no direito civil, no direito comercial, no direito administrativo e Constitucional. Que se compare o direito penal, tal como a Lei das Doze Tábuas fixou-o em Roma, com o Estado em que se encontra na época clássica; as mudanças constadas são muito poucas ao lado daquelas que sofreu o direito civil durante muito tempo (DURKHEIM, 1978, p. 39).

Apoiado na Criminologia de Garófalo, Durkheim (op.cit.) argumenta que o Direito Penal define e se encarrega de prescrever a pena do crime natural, ou seja, daquele ato praticado que contraria os sentimentos que em toda parte são a base do Direito Penal, isto é, a parte invariável do sentido moral. Adverte que há atos que mesmo sendo muito mais nocivo a sociedade, como uma crise econômica, a quebra da bolsa ou uma falência, não sofrerá a devida repressão, isto se dá em virtude daquilo que é prescrito no direito penal positivo como crime. Crime seria todo ato que causa ruptura do elo da solidariedade social e, num certo grau, determina contra seu autor a reação característica geral denominada pena. Dito de outro modo, crime é todo ato reprimido por castigo definido e em todas as espécies de crimes há sempre uma parte característica comum em todos os tipos sociais.

O que prova é que a reação que eles determinam por parte da sociedade, a saber, a pena, é, salvo diferenças de grau, sempre e em toda parte a mesma. A unidade do efeito revela a unidade da causa. Não apenas entre todos os crimes previstos pela legislação de uma única e mesma sociedade, mas entre todos aqueles que foram ou que são reconhecidos e punidos nos diferentes tipos sociais, existem seguramente semelhanças essenciais. Por mais diferentes que pareçam à primeira vista, é impossível que os atos assim qualificados não tenham algum fundamento comum (idem).

Ao definir crime, Durkheim (1978), resume dizendo que um ato é criminoso quando ofende os estados fortes e definidos da consciência coletiva. Todavia, o crime é um fenômeno normal presente em todas as sociedades de que se tem conhecimento e por ser comum em toda e qualquer sociedade, o crime deve ser classificado como um fenômeno de sociologia normal, não significando apenas que seja um fenômeno inevitável, muito embora lastimável produzido pela maldade dos homens. É um caso de saúde pública e parte indissociável de qualquer sociedade sã, ao invés de uma patologia, apenas. Se é um caso de saúde pública por que punir os crimes?  

As sociedades precisam punir em primeiro lugar: para evitar a ameaça geral à segurança das pessoas e de seus bens; em segundo lugar, por que é nos rituais punitivos que se dá o fortalecimento das normas sociais do direito e da moral tornando as sociedades mais integradas e coesas. Neste sentido é que o crime é um fenômeno do ponto de vista sociológico, integrante da constituição das sociedades "normais" e a pena é o remédio necessário à sua cura. "O crime é, portanto, necessário; está ligado às condições fundamentais de qualquer vida social e, precisamente por isso, é útil; porque estas condições a que está ligado são indispensáveis para a evolução normal da moral e do direito" (DURKHEIM, 1978, p.121). Neste prisma, é possível se dizer que todas as sociedades conviverão com o crime de uma forma ou de outra, pois,

Para que, numa dada sociedade, os atos considerados como criminosos pudessem deixar de existir seria necessário, portanto, que os sentimentos que chocam se encontrassem, sem exceção, em todas as consciências individuais e possuíssem a força necessária para conterem os sentimentos opostos. Ora, admitindo que esta condição pudesse efetivamente ser realizada, o crime não desapareceria por isso e apenas mudaria de forma; seria a própria causa que assim eliminava as origens da criminalidade, que viria a gerar as novas fontes desta (Idem).

Além dessas definições no âmbito da discussão sobre o crime, suas características e peculiaridades, a teoria positivista influenciada pelos métodos experimentais em seu contexto, legou a posteridade contribuições, tais como:

... a descoberta de fatores até então desconhecidos em razão das experiências com os delinqüentes, a formalização da Criminologia como ciência, com a realização de diversos trabalhos de fôlego tendentes a explicar o crime e o aprimoramento de alguns institutos penais, como as medidas de segurança. Também integraram o positivismo Grispigni, Pozzolini, entre outros. No Brasil tivemos, ainda exemplificativamente, Pedro Lessa, Viveiros de Castro, Sílvio Romero, Artur Orlando, Tobias Barreto, Cândido Mota e Vieira Araújo. Além disso, o Projeto Sá Pereira para o Código Penal, que serviu ainda de base para o Código de 1940, era marcadamente positivista (PAGLIUCA, 2006, p.28-29).

Segundo o raciocínio durkheimiano a Criminologia surge sob uma nova visão contrariamente a da Escola Penal Clássica. A partir dessa nova visão criminológica o criminoso não mais aparece como um ser estranho, insociável, parasitário e inassimilável, mas como um agente da vida social. Por outro lado, o crime não deve mais ser concebido como um mal necessário que nunca é demais limitar. Ao contrário, deve-se ficar atento para que o índice de criminalidade não ultrapasse o habitual, o tolerável.

Com efeito, se o crime é uma doença, a pena é o remédio para ele e não pode ser concebido de modo diferente; assim, todas as discussões que levanta incidem sobre a questão de saber em que deve consistir para desempenhar o seu papel de remédio. Mas, se o crime não tem nada de mórbido, a pena não pode ter como objetivo curá-lo e a sua verdadeira função deve ser outra (DURKHEIM, 1978, p.122).

A questão, porém, trata-se de saber a quem, como e o porquê da aplicação da pena. Como esclarece Hegel (2003), na moderna ciência positiva do direito, a teoria da pena é uma das matérias que mais infeliz sorte tiveram. Argumenta o filósofo alemão que o problema está no fato de se conceber o crime como um mal e a sua supressão depender de um outro mal que se há de produzir: a pena, a qual se constitui numa intimidação, ameaça, correção, coação ou restrição. O fato é que não se trata de um mal ou de um bem; o que está em questão é o que é justo e o que é injusto, ou seja, se a pena é justa em si e para si. 

Nesta discussão apenas se trata do seguinte: o crime, considerado não como produção de um mal, mas como violação de um direito tem de suprimir-se? Esta existência é que é o verdadeiro mal que importa afastar e nela reside o ponto essencial. Enquanto os conceitos não forem conhecidos claramente, a confusão tem de reinar na noção de pena" (HEGEL, 2003, p.88).

Na perspectiva durkheimiana, apesar do crime ser considerado um fato normal na sociologia, não devemos deixar de odiá-lo. Assim como se odeia a dor e por ela não se tem desejo, apesar dela fazer parte da fisiologia humana, assim se deve odiar o crime. Segundo ele, seria uma deformação de nosso pensamento não ojerizar o crime. Seria uma inutilidade querer viver em sociedade se se fizesse qualquer tipo de apologia ao crime e a contravenção penal.

Entretanto, o movimento político-ideológico do positivismo criminológico adequa-se ao modelo ideal de sociedade que o Estado burguês incopora como uma de suas premissas básicas. "Se caracteriza pela manutenção do Status quoao conceber a sociedadecomo consensual, a lei como fruto do interesse geral e o criminoso como marginalizado selvagem que se desviou da conduta 'majoritária' praticada pelos 'homens de bem', respeitadores da lei"' (GOMES & CERVINI, 1997, p. 37). Dentro desta perspectiva criminológica positivista é que, ainda, se fala abertamente em 'guerra ou luta' contra o crime, esquecendo-se que ele é um fenômeno pertinente a todo agrupamento social, portanto, é algo da vivência coletiva, da comunidade, que nasce nela e que por ela deve ser solucionado. Desta feita, adotar leis duras repressivas ou preventivas penais pode parecer uma forma mais econômica – que ao final não é – porém, mais demagógica de dar uma resposta estatal à população. Mediante o pensamento de Molina apud Gomes e Cervini (1997), isto ocorre devido ao fato de que o fenômeno da delinqüência é complexo e plurifatorial o que exige políticas diversificadas e mais onerosas em curto prazo se se quer resolver o problema.  

Há de se ressaltar o pensamento de Gomes, Prado e Douglas (2000), de que os efeitos da chamada era pós-moderna sobre as Ciências que analisam o controle social e, sobretudo, acerca do Direito, requerem mudanças profundas indispensáveis para nos orientar em um ambiente aparentemente desconhecido. Neste sentido,

A Ciência, cuja evolução projetou-se na sofisticação dos meios de produção e no domínio das forças hostis da natureza, as artes, fazendo convergir ideais de identidade e comunhão, e o Direito, responsável pelo mínimo ético, com vocação universal, deviam representar, nos limites do paradigma da Modernidade, os mecanismos capazes de articular a transformação e a resolução da questão social, que têm na desigualdade social sua principal vertente (p. 106).

Com efeito, o Direito penal como Ciência não pode ser apenas matéria de reprodução intocável, estática e restrita somente à interpretações unilaterais fora da realidade de contextos pertinentes a cada comunidade. Já que é Ciência, o Direito penal, Munhoz diz que ela

Não pode ficar reduzida à mera interpretação e sistematização do Direito Penal positivo. Para ser Ciência falta-lhe ainda algo fundamental na atividade intelectual do científico: a crítica. A missão da dogmática não consiste, portanto, unicamente em interpretar e sistematizar o Direito; também tem que pôr em relevo suas lacunas, seus problemas que estão muito mal resolvidos e os que ainda falta resolver. Para isso serve-se a dogmática dos conhecimentos que lhe fornecem as outras ciências fundamentalmente os das chamadas ciências penais, e se converte assim em uma dogmática crítica do Direito Penal (apud GOMES e CERVINI, 1997, p. 30).

Isto significa dizer que o penalista da atualidade não deve interpretar sistematicamente o Direito Penal positivo de forma isolada de acompanhamento vinculado por parte das outras ciências. É de suma necessidade que se desfaça da norma formal, muitas vezes obsoleta, claro, respeitando os limites constitucionais, para procurar a solução do problema do modo mais justo e socialmente eficaz, ou seja, "... o penalista atual não pode ignorar a seletividade do sistema, a desigualdade perante a Lei penal, a marginalização da vítima dentro do sistema penal etc" (idem). 

Indubitavelmente, as mudanças e transformações ocorridas nas sociedades ocidentais a partir do final do século XVI e XVII, fundamentadas nos ideais iluministas cujos pilares baseavam-se na regulação responsável pela organização do cosmo social cujos princípios guiadores são os do Estado, da Comunidade e do Mercado; e no pilar da emancipação humana, da qual se esperava a concretitude dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, vêm exigindo novos modos de conhecimento e organização das sociedades. Isto equivale a necessidade de novas interpretações e interações com a realidade social.

Posicionando-se nas ciências penais em lugar privilegiado no desenrolar histórico, uma vez que delas se esperou durante muito tempo a elaboração de teorias descritivas, explicativas, de justificação e legitimação do funcionamento das instâncias formais de controle social, além, é claro, da própria compreensão e definição do crime e da criminalidade. Para que entendamos como esta tarefa de configuração teórica esteve sendo levado a cabo, é preciso observarmos que, em um determinado momento, a Modernidade foi absorvida pelo capitalismo, confundida com ele e, finalmente, pelo menos até o instante atual, absorvida e solapada nas promessas de melhorar as condições de vida da maioria das pessoas (idem, p. 107).

O advento da Modernidade exigia uma nova reorganização social, política, econômica, religiosa e cultural. Concomitantemente a ela expandiu-se e foi fortalecido um sistema econômico, o capitalismo, o qual foi pautado no liberalismo e nos princípios fisiocráticos do laissez faire, laissez passer, le monde va de lui même (deixai fazer, deixar passar, que o mundo anda por si mesmo) que reivindicava por completo o afastamento do Estado da intervenção na economia. Conforme os escritos de Gomes, Prado e Douglas (2000), o trotear desses ideais, embora muitos insistam em duvidar, tornou-se incompatível, no âmbito geral, com o equilíbrio social. Nesta direção, é que no limiar deste século XXI se postula por uma nova ordem que acompanhe contínua e celeremente o conhecimento, a técnica, a razão, porém, com equilíbrio econômico e sócio-cultural. Nunca é demais relembrar que as promessas da modernidade de possibilitar a emancipação do ser humano através dos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade não foram cumpridas. Nesta ótica, as ciências penais que em seu cipoal teórico inicial, prometiam dar conta da criminalidade na Modernidade, perderam o seu objetivo do controle do crime e de seus axiomas que atualmente comprometem o equilíbrio social. 

Corroborando com esse pensamento, Santos (1995) esclarece que a trajetória histórica da modernidade imbricou-se a do capitalismo vigorado pela primeira grande Revolução Industrial moderna. Ambas as trajetórias seguiram paralelamente seus rumos, o Capitalismo liberal convidando ao individualismo e à competição e a Modernidade queria uma mudança social profunda, pautada em mais justiça social, fraternidade, liberdade, autonomia e eqüidade. O resultado, porém, até o momento tem sido:

Ambos, no entanto, Capitalismo liberal e Modernidade sofreram, ao fim do século XIX, um baque, que em uma ponta bloqueou o ímpeto sócio cultural moderno, em virtude da incapacidade prática de atender às demandas vicejantes, inaptidão que assumimos como provisória e contingente, e na outra, tendo em vista a emergência do marxismo, obrigou o Capitalismo, nos países centrais, nos quais a economia estava mais avançada a se organizar, tal seja, a ser administrado como Capitalismo organizado, de sorte a produzir uma mais eqüitativa distribuição social de bens.... Em uma proposital apreensão fragmentada dos fatos históricos e da realidade social, é válido sublinharmos que, no contexto político, social e econômico antecedente à conversão do capitalismo liberal em capitalismo organizado, surgiram simultaneamente a crença no caráter infalível das ciências, além de manifestações de socialismo científico, estas últimas tendentes a explicar, a partir de um determinismo econômico e com emprego de uma hermenêutica crítica, o destino transcendental da classe social dos trabalhadores (apud GOMES, PRADO & DOUGLAS, 2000, pp. 107-108). 

Combinando com o capitalismo e a modernidade, o projeto das ciências penais positivistas baseou-se na insustentável tese de que o fenômeno da criminalidade na sociedade industrializada e pós-industrializada era resultado de desvio de padrões normais os quais deveriam ser analisados pela observância de causa e efeito. De conformidade com Pablos de Molina, a Criminologia tradicional não questiona o conceito legal de delito. Aceita pacífica e consensualmente o crime como fruto do princípio da diversidade patológica do homem delinqüente e da disfuncionalidade do comportamento criminal e a pena serve como fins de resposta justa e útil por si só ao crime, sem, contudo, importar-se com as condições sociais dos infratores das leis pré-estabelecidas. Neste sentido, a visão do Direito Penal positivo foi incapaz de explicar as causas do crime e de conceituá-lo. Em contrapartida, a alternativa marxista elevou o Direito ao nível da superestrutura social como idealizador da afirmação do Sistema Capitalista injusto. Assim, o Direito Penal, nos parâmetros marxistas ortodoxo, tem sido utilizado "[c]omo instrumento de controle dos segmentos sociais desfavorecidos ou descontentes com a ideologia peculiar a este tipo de capitalismo" (apud Gomes, Prado e Douglas, 2000, p.108).

Apesar do desenvolvimento da Criminologia crítica nos sistemas jurídicos contemporâneos, não tem sido ela suficiente nem para enquadrar o crime dentro da justiça real de incriminação nem de freá-lo. Isto decorre da enorme desigualdade e exclusão sociais provocadas por um sistema cada vez mais agudo e agonizante que é o capitalismo. Sob esse mesmo prisma

A miséria social, o desemprego, a destruição de conquistas trabalhistas e o aviltamento do trabalho, a flexibilidade e a precarização, a exploração ímpar das nações oprimidas (via dívida externa e dezenas de outros mecanismos), a tendência sistemática para crises internacionais cada vez mais freqüentes e agudas, e para guerras imperialistas de conquistas, o desenvolvimento da criminalidade sob todas as suas formas e sua penetração até a medula dos ossos do estado, a tendência para Estados cada vez mais criminosos e cada vez mais policiais, as ameaças e os ataques ao meio ambiente e às próprias condições de sobrevivência da espécie humana, não são tendências conjunturais, nem sua simultaneidade inédita um produto do acaso, mas manifestações visíveis da crise mais profunda e duradoura do Capitalismo em toda sua história (COGGIOLA, 2002, p. 489).            

Induvidosamente, o avanço do capitalismo e a tentativa imposta pelo mercado de uma sociedade global, conforme de Otávio Ianni (2002), têm produzido mais do que nunca, desigualdades, sociais econômicas políticas e culturais em escala mundial. O processo de globalização que se desenvolve a interdependência, a integração e a dinamização das sociedades nacionais, produz desigualdades, tensões e antagonismos, debilita o Estado-Nação, ou redefine as condições de sua soberania, provoca o desenvolvimento de diversidades e contradições, em escala nacional e mundial. Nesse sentido, quando o Estado-Nação se debilita, em função do alcance e da intensidade do processo globalizante, surge outras realidades características de uma sociedade global com novas relações processos e estruturas. Em conseqüência emerge modificações substancialmente nas condições de trabalho, nos modos de ser, sentir, pensar e imaginar, pois, 

Na sociedade global, generalizam-se as relações, os processos e as estruturas de dominação e apropriação, antagonismo e integração. As realidades sobre as quais habitualmente debruçam-se a historiografia, geografia, demografia, sociologia, economia política, ciência política, antropologia, lingüística e outras ciências sociais, essas realidades universalizam-se em escala crescente. Adquirem outras conotações, recriando as anteriores. Modificam-se os indivíduos, as coletividades, as instituições, as formas culturais, os significados das coisas, gentes e idéias, vistos em configurações histórico-sociais. Recriam-se as articulações entre o indivíduo e a sociedade, em âmbito global... Este é um aspecto das metodológicas que têm sido deixado em segundo plano, ou na sombra: modificou-se substancialmente o objeto das ciências sociais. O indivíduo e a sociedade, que inspiraram a formação e boa parte de seu desenvolvimento, localizavam-se no âmbito da nação. Ao passo que o indivíduo e a sociedade que desafiam as ciências sociais nesta altura da história localizam-se em algum lugar da sociedade global, determinados também pelos movimentos dessa sociedade (IANNI, 2002, p. 171).

Com efeito, se por um lado a globalização é um fenômeno produtor de intercâmbio social, econômico, político, legal, religioso e cultural num emaranhado de complexidade, por outro, ao invés de uniformidade, acirra a diferença e a fragmentação. É no âmago dessa fritura cultural da mundialização que a criminalidade e a violência, por vez, se traduzem em atos defensivos e contra-ofensivos, de grupos que anseiam afirmar culturalmente sua identidade. Wieviorka (1997) acredita que a violência tende a se alastrar nesse terreno de fraturas sociais no qual não é perceptível um poder ou uma fórmula política que seja capaz de frear os conflitos e antagonizações gerados e alimentados pelos sentimentos das injustiças, da discriminação e exclusão sociais. Neste caso, Velho (2002), reafirma que o conflito, a tensão e a diferença fazem parte da vida social deste tempo, porém são impossibilitados da troca e da reciprocidade gerando obstáculos socioculturais que fomentam e fazem emergir a violência dentro de grupos e sociedades.  

Por outro lado, o tardo capitalismo ou capitalismo desorganizado, expropriador e marginalizante das grandes massas tornou-se uma força econômica e culturalmente hegemônica que se baseia na ideologia de naturalizar o mercado e a exploração econômica. Nesse tipo de capitalismo a acumulação rentável é ilimitada e produz desigualdade real e jurídica entre as pessoas, entre amigos, parentes, entre povos e nações. Nesse prisma, o aumento da violência e novas formas de criminalidade são proporcionados em função da produção de desigualdades sociais que assolam as nações tornando as comunidades inteiras anômicas, destruindo valores, princípios e referenciais éticos. Diante desse quadro de perspectivas rebaixadas, as ciências penais, sobretudo o Direito Penal busca desatinadamente resolver o problema da criminalidade. Todavia, os insucessos têm sido visíveis. Conforme Gomes, Prado e Douglas (2000, p. 113):

Por maiores que sejam os sucessos das suas múltiplas análises e por mais elaboradas e sofisticadas que sejam as ferramentas usadas na abordagem das distintas realidades sociais, a sociologia crítica do Direito penal não logrou até o momento vencer as barreiras culturais do individualismo exacerbado, que dá à questão criminal o tom de sua difusão, aparentemente, não controlável e violenta, como preconizam os grandes meios de comunicação de massas, questão a ser resolvida nesta linha discursiva mediante disciplina e repressão.

As práticas de discriminação, vulnerabilidade e exploração sociais no moderno capitalismo têm no Direito Penal um instrumento auxiliador de legitimação sendo também esse Direito reacionário às reivindicações das classes sociais por melhores condições de vida seguridade social, emprego, educação, saúde e segurança civil. Porém, como esclarece Castel (2003), mesmo com a instalação do Estado-Nação Liberal e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, não significou emancipação ou garantia da cidadania ativa aos trabalhadores, pois, "em nome do direito que deve ser imposto a todos, os proletários devem ser de fato excluídos da cidadania plena" (p.271).

Continuando com o pensamento de Ianni (2002), a cidadania do homem mundial está apenas em esboço, pensada, prometida, imaginada. Assim, as organizações governamentais, tais como a Organização das Nações Unidas - ONU, a Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO e outras, inclusive não-governamentais, pouco podem fazer, de modo a concretizar a vigência dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais em escala mundial. "A Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada pela ONU em 1948, permanece como uma declaração de intenções, de ideais, a despeito da sua importância social, política, econômica e cultural" (IANNI, p.111). Deste modo, concorda-se com Hegel (2003), de que uma determinação jurídica pode apresentar-se plenamente fundamentada e coerente com as circunstâncias e instituições existentes e ser, no entanto, irracional e injusta em si e para si.  

A agudização da globalização e de sua pretensão de transformar o mundo numa aldeia global atingiu em cheio as ciências penais. Assim, é que as práticas judiciárias que sempre apareceram como imperturbáveis sofreram alterações legislativas, sobretudo para proteger interesses de classes dominantes e reprimir duramente aqueles que se desviem das normas do estatuto jurídico burguês. Nesta diretriz, Gomes, Prado e Douglas (2000) explicam:

Assim é que foram reconhecidos novos e complexos interesses, turbados, em grande parte, por ações socialmente negativas atribuídas a membros dos estratos sociais e econômicos mais favorecidos, interesses que careciam de tutela penal. Os danos sociais ao meio ambiente, à poupança, ao consumo popular e ao fisco geraram novas formas de criminalidade reconhecidas, cuja prevenção e repressão incorporaram o significado de uma relativa igualdade de tratamento penal aos desiguais. Se a realidade das instituições carcerárias e de outros menos votados métodos penais de reação não é capaz de demonstrar uma equilibrada distribuição de prêmios negativos aos agentes dos variados segmentos sociais, o discurso das instâncias oficiais tende a dar por satisfeitas as demandas democráticas neste campo, pela mera previsão normativa de incriminação das graves condutas apontadas, realçando-se, destarte, a forma superficial de tratamento das questões da criminalidade, no contexto do divórcio entre Estado e sociedade civil (p. 113).

Com efeito, concebe-se à ciência jurídica como um sistema fechado e autônomo cuja dinâmica de desenvolvimento só pode ser compreendida no meio interno. Isto se constitui na reivindicação de uma autonomia absoluta do pensamento e da ação jurídicos, ou seja, num modo específico, independente e alheio ao peso social. Segundo Bourdieu (2002), esta é a meta da "teoria pura do direito" tentada por Kelsen[7] cujo esforço é o da construção de um corpo de juristas, de doutrinas e de regras completamente independentes dos constrangimentos e das pressões sociais, tendo por si só seu próprio fundamento. Por isso, 

Quando se toma a direção oposta a esta espécie de ideologia profissional do corpo dos doutores constituída em corpo de "doutrina", é para se ver no direito e na jurisprudência um reflexo directo das relações de força existentes, em que se exprimem as determinações econômicas e, em particular, os interesses dos dominantes, ou então, um instrumento de dominação, como bem o diz a linguagem do Aparelho, reactivada por Louis Althusser. Vítimas de uma tradição que julga ter explicado as "ideologias" pela designação das suas funções ("o ópio do povo"), os marxistas ditos estruturalistas ignoraram paradoxalmente a estrutura dos sistemas simbólicosos e, neste caso particular, a forma específica do discurso jurídico (sic) (BOURDIEU, 2002, p. 210).

Nesse prisma, é relevante esclarecer que se mantendo indiferente à realidade social, o Direito, que é positivo pelo seu caráter formal de validade num Estado e cujo conteúdo exprime-se num elemento positivo que é derivado do caráter de um povo, tem como oposição os sentimentos, a inclinação e o livre-arbítrio (Hegel, 2003). Contra estes, amparadas pelo Direito, há as tomadas de posição ideológica dos dominantes que utilizando estratégias de reprodução dominadoras tendem a reforçar dentro da classe e fora dela a crença na legitimidade da dominação desta. Retornando ao pensamento de Bourdieu, o direito enquadra-se como "sistema simbólico" a serviço da ideologia dominante. É enquanto instrumento estruturado e estruturante de comunicação e de conhecimento que cumpre a função política de instrumento de dominação, contribuindo "Para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a "domesticação dos dominados" (idem, p. 11).

Nesta ótica, as ideologias dominantes dos sistemas simbólicos (como instrumentos de conhecimento e de comunicação) servem a interesses particulares que tendem a apresentar como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo. Neste aspecto, a cultura dominante contribui: para a integração real da classe dominante através da comunicação imediata e formal entre todos os seus membros distinguindo-se e isolando-se de outras classes; para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções. O objetivo é exercer o poder simbólico que é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) (idem, p. 9).

4. Considerações finais

Desde que o homem passou a viver coletivamente mantendo relações sociais de aproximação, de detenção de poder e de propriedade, o crime também se fez presente. O crime vem acompanhando a história do homem de acordo com suasrealizações, transformações do meio, seu desenvolvimento e progresso. Durante essa escalada progressiva do homem os diversos tipos de crimes foram sendo coibidos e punidos de acordo com as Leis e normas de cada contexto histórico. Nessa escalada coube à Ciência do Direito Penal normatizar os tipos de delitos e suas respectivas penas. 

Na Europa durante a Idade Moderna, prevaleceu a Escola Teológica cuja concepção era a do Direito Divino pelo qual o governante recebia plenos poderes de Deus para governar sobre seus súditos e decidir sobre suas vidas. Foi nesse período que o absolutismo monárquico conheceu seu apogeu e os reis que se julgavam investidos por Deus para governar e decidir sobre seus súditos praticavam inúmeras tiranias com espetáculos de execuções sumárias de pessoas subjugadas pelo poder dominante. Com o fim do absolutismo pós-Revoluções Americana (1776 e Francesa (1789) e ascensão de uma nova classe social ao poder, a burguesia em substituição à nobreza, o Ancien Regime foi substituído por uma nova organização político-social-econômica e cultural que resultou na fundação e consolidação de um novo Estado, o Estado-Nação que, gradativamente, também foi se tornando liberal.  

Esse advento ficou conhecido como o fim da Idade Moderna e início da Idade Contemporânea que contou com o surgimento de uma nova Escola no ramo do Direito: a Escola racionalista ou Contratualista. Essa nova Escola manteve o ideário de um Direito universal e imutável como a Escola Jusnaturalista. Porém, acreditava que o Direito era fruto da razão humana e não de inspirações divinas. Nesse reordenamento jurídico do Estado burguês os poderes foram separados em Legislativo, Executivo e Judiciário e as tiranias de caráter pessoal foram abolidas pelo que prescrevia a Lei. Coube a Montesquieu, representante dos primeiros momentos do Iluminismo, defensor do debate e do uso da razão na solução dos problemas políticos e sociais. A tarefa e a colaboração de mostrar o sentido da impessoalidade da lei para evitar a ação humana a partir de desejos pessoais e para o controle da violência. 

A partir da fundação e consolidação do Estado-Nação Liberal os delitos penais passaram a ser punidos e controlados por ordenamento jurídico e os julgamentos passaram a ser públicos em por tribunais de magistrados e não de Reis como no antigo regime. O Estado passou a ser o legítimo detentor do monopólio da violência cabendo-lhe a tarefa de manter a ordem social, impondo direitos e deveres aos seus membros, determinando a forma jurídica que deve prevalecer através de delegações aos poderes e instituições legais. Na perspectiva sociológica positivista o crime é visto como uma normalidade, uma doença cuja cura é a pena, sempre existirá e tem até uma função: a de fortalecer o Direito e a moral dos indivíduos. Ao mesmo tempo essa teoria acredita que a Ciência do direito Penal não acompanha a evolução do crime na sua escalada crescente. O berço das escolas do Direito penal positivista é a Itália, Alemanha e França.

O novo Estado burguês capitalista prima pelo desenvolvimento científico e pelo progresso de forma decisiva para atender ao seu projeto ocidental: as leis mercadológicas como determinantes de uma possível aldeia global sem qualquer fronteira restritiva. Por esse projeto é exigido do tripé economia-tecnologia-telecomunicação o progresso a qualquer custo sem se importar com os meios empregados. A lógica da nova classe social dominante é a ciência e o progresso. O Estado deverá ser mínimo para o social e máximo para o capital. No desenrolar desses objetivos os meios e técnicas também são usados para a prática de novas formas de crimes de maneira sutil e perigosa é, concomitantemente, ao desenvolvimento tecnológico e ao progresso que a criminalidade também se desenvolve e alcança um tipo de criminalidade difusa e impossível de ser captada em tempo real para ser evitada: a criminalidade organizada. Utilizando um simples mouse de um computador um criminoso pode retirar milhões de reais de uma conta bancária de outra pessoa e lançar num paraíso fiscal a milhares de kilômetros de onde está. Enfim, na mesma proporção que a ciência e o progresso humano atingiram resultados nunca vistos antes, o crime também conseguiu se evoluir e se expandir de maneira perigosa e comprometedora da soberania do Estado legal.

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[1]CHÂTELET, François, DUHAMEL, Olivier & PISIER – KOUCHINER, Evelyne. História das Idéias Políticas; tradução, Carlos Nelson Coutinho. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000, pp. 85-86: Para captar mais precisamente o devir dessa forma de Estado no decorrer do século XIX e analisar as tomadas de posição e as concepções do poder que ela suscitou, é preciso voltar atrás e interrogar essa experiência e os textos partidários, programáticos ou críticos dos que participaram dos eventos.... Doravante, o Estado-Nação constitui o quadro obrigatório da existência social: ele é a realidade política por excelência, em torno da qual se organizam os atos históricos..., surgido certamente com a Restauração Inglesa de 1690, afirma-se fortemente com a Revolução Americana de 1776 e com a Revolução Francesa (e, para essa, desde 1790, quando ela é ainda "realista"). E esse Estado-Nação é ainda hoje a trama do mundo político, quaisquer que sejam suas diversidades e novidades.  

[2]De acordo com a Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), art. 1º: "Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa".

[3]Art. 1º do Código Penal: Mini / obra coletiva de autoria da editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Luiz Eduardo Alves de Siqueira. – 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2001 (Legislação Brasileira).

[4]KANT, Immanuel. Princípios Metafísicos de la doctrina del Derecho. México, 1978.

[5]Art. 23 do Código Penal Brasileiro.

[6]FERREIRA, Eduardo Oliveira.Vários prismas do Direito. In: Revista Visão Jurídica, nº. 09, São Paulo: Editora Escala, 2007.

[7]BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico; tradução Fernando Tomaz (português de Portugal) – 5º ed. – Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2002, pp. 209-211: A tentativa de Kelsen, firmada no postulado da autolimitação da pesquisa tão-só no enunciado de normas jurídicas, com exclusão de qualquer dado histórico, psicológico ou social e de qualquer referência às funções sociais que a aplicação prática destas normas pode garantir, é perfeitamente semelhante à de Saussure que fundamenta a sua teoria pura da língua na distinção entre a lingüística interna e a lingüística externa, quer dizer, na exclusão de qualquer referência às condições históricas, geográficas e sociológicas do funcionamento da língua ou das suas transformações.... Para romper com ideologia da independência do direito e do corpo judicial, sem se cair na visão oposta, é preciso levar em linha de conta aquilo que as duas visões antagonistas, internalista e externalista, ignoram uma e outra, quer dizer a existência de um universo social relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica legitima cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exercício da força física. As práticas e os discursos jurídicos são, com efeito, produto do funcionamento de um campo cuja lógica especifica está duplamente determinada: por um lado, pelas relações de força especificas que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas.


Autor: Antonio Roberto


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