ANARQUISMO E EDUCAÇÃO: UMA PERSPECTIVA



1 INTRODUÇÃO 

A crise em que se encontra o sistema educacional brasileiro pode abrir brechas à inclusão de diferentes concepções de ensino, em muito divergentes dos paradigmas ditos tradicionais que vigoram nas escolas. Ao mesmo tempo, pode-se dar oportunidade a teorias que podem vir a contribuir significativamente com o desenvolvimento educacional do Brasil, ou contribuir para sua verdadeira falência intelectual.

Entre as diversas concepções de ensino, algumas que merecem destaque, no sentido em que podem contribuir, são as construtivistas, sócio-interacionistas, bem como algumas que não são tão largamente discutidas nos cursos de formação de professores: as teorias anarquistas. Talvez devido ao preconceito popular em relação ao termo (geralmente associa-se anarquismo à desordem), pode-se haver dificuldades de discutir o tema, de forma mais aberta, entre os profissionais de educação.

Por acreditar que estas concepções podem, efetivamente, contribuir para o desenvolvimento das práticas educativas, bem como proporcionar uma verdadeira maturidade intelectual ao meio educacional brasileiro, procura-se discuti-las dando um enfoque na sua relação com a educação de forma direta. Por isso, as próximas duas seções discutem as relações entre anarquismo e educação, bem como anarquismo e a educação contemporânea, seguindo-se às considerações finais.

2 ANARQUISMO E EDUCAÇÃO

Os anarquistas sempre deram muita importância à questão da educação ao tratar do problema da transformação social (Carrão, 2008): não apenas à educação dita formal, aquela oferecida nas escolas, mas também àquela dita informal, realizada pelo conjunto social e daí sua ação cultural através do teatro, da imprensa, seus esforços de alfabetização e educação dos trabalhadores, seja através dos sindicatos seja através das associações operárias.

Foi com relação à escola, porém, que vimos os maiores desenvolvimentos teóricos e práticos no sentido da constituição de uma educação libertária (Marques, 2008). Os esforços anarquistas nesta área principiam com uma crítica à educação tradicional, oferecida pelo capitalismo, tanto em seu aparelho estatal de educação quanto nas instituições privadas - normalmente mantidas e geridas por ordens religiosas. A principal acusação libertária diz respeito ao caráter ideológico da educação: procuram mostrar que as escolas dedicam-se a reproduzira estrutura da sociedade de exploração e dominação, ensinando os alunos a ocuparem seus lugares sociais pré-determinados. A educação assumia, assim, uma importância política bastante grande, embora ela se encontrasse devidamente mascarada sob uma aparente e propalada "neutralidade" (Marques, 2008).

Os anarquistas assumem de vez tal caráter político da educação, querendo colocá-la não mais ao serviço da manutenção de uma ordem social, mas sim de sua transformação, denunciando as injustiças e desmascarando os sistemas de dominação, despertando nos indivíduos a consciência da necessidade de uma revolução social (Gallo, 1996). A proposta anarquista de educação vai procurar trabalhar com o princípio de liberdade, o que abre duas vertentes de compreensão e de ação diferenciadas: uma que entende que a educação deve ser feita através da liberdade e outra que considera que a educação deva ser feita para a liberdade; em outras palavras, uma toma a liberdade como meio, a outra como fim.

Tomar a liberdade como meio pode parecer um equívoco, pois significa considerar que a liberdade seja uma característica naturaldo indivíduo, posição já duramente criticada por Bakunin (Gallo, 1996); por outro lado, equivale também à metodologia das pedagogias não-diretivas, alicerçadas no velho Emílio e consolidadas nos esforços escolanovistas (Gallo, 1996), delas diferenciando-se apenas nos pressupostos políticos, mas sem conseguir diferentes resultados práticos além daquela suposta liberdade individualizada, característica das perspectivas liberais.

Tomar, de outro modo, a pedagogia libertária como uma educação que tem na liberdade o seu fim pode levar a resultados bastante diferentes. Se a liberdade, como queria Bakunin (Gallo, 1996), é conquistada e construída socialmente, a educação não pode partir dela, mas pode chegar a ela. Metodologicamente, a liberdade deixa de ser um princípio, o que afasta a pedagogia anarquista das pedagogias não-diretivas; por mais estranho que possa parecer aos olhos de alguns, a pedagogia anarquista deve partir, isso sim, doprincípio de autoridade (Gallo, 1996).

A escola não pode ser um espaço de liberdade em meio à coerção social (Marques, 2008); sua ação seria inócua, pois os efeitos da relação do indivíduo com as demais instâncias sociais seria muito mais forte. Partindo do princípio de autoridade, a escola não se afasta da sociedade, mas insere-se nela. O fato é, porém, que uma educação anarquista coerente com seu intento de crítica e transformação social deve partir da autoridade não para tomá-la como absoluta e intransponível, mas para superá-la. O processo pedagógico de uma construção coletiva da liberdade é um processo de des-construção paulatina da autoridade.

Tal processo é assumido positivamente pela pedagogia libertária como uma atividade ideológica (Marques, 2008); posto que não há educação neutra, posto que toda educação fundamenta-se numa concepção de homem e numa concepção de sociedade, trata-se de definir de qual homem e de qual sociedade estamos falando. Como não faz sentido pensarmos no indivíduo livre numa sociedade anarquista, trata-se de educar um homem comprometido não com a manutenção da sociedade de exploração, mas sim com o engajamento na luta e na construção de uma nova sociedade. Trata-se, em outras palavras, de criar um indivíduo "desajustado" para os padrões sociais capitalistas. A educação libertária constitui-se, assim, numa educação contra o Estado, alheia, portanto, aos sistemas públicos de ensino.

3 ANARQUISMO E EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA

O mote progressista nas discussões pedagógicas contemporâneas é a defesa da escola pública. A atual Constituição brasileira afirma que a educação é um "direito do cidadão e um dever do Estado", definindo desde o início a responsabilidade do Estado para com a educação. Ela é, porém, um empreendimento bastante dispendioso, como sabemos, e por certo esse interesse do Estado não pode ser gratuito ou meramente filantrópico. A história nos mostra que os assim chamados sistemas públicos de ensino são bastante recentes: consolidam-se junto com as revoluções burguesas e parecem querer contribuir para transformar o "súdito" em "cidadão", operando a transição política para as sociedades contemporâneas. Outro fator importante é a criação, através de uma educação "única", do sentimento de nacionalidade e identidade nacional, fundamental para a constituição do Estado-nação (Marques, 2008).

Os anarquistas, coerentes com sua crítica ao Estado, jamais aceitaram essa educação oferecida e gerida por ele (Carrão, 2008; Gallo, 1996); por um lado, porque o Estado certamente utilizar-se-á deste veículo de formação/informação que é a educação para disseminar as visões sócio-políticas que lhe são interessantes. Nesse ponto a pedagogia anarquista diverge de outras tendências progressistas da educação, que procuram ver no sistema público de ensino "brechas" que permitam uma ação transformadora, subversiva mesmo, que vá aos poucos minando por dentro esse sistema estatal e seus interesses.

O que nos mostra a aplicação dos princípios anarquistas a essa análise é que existem limites muito estreitos para uma suposta "gestão democrática" da escola pública. Ou, para usar palavras mais fortes, mas também mais precisas, o Estado "permite" uma certa democratização e mesmo uma ação progressista até o ponto em que essas ações não coloquem em xeque a manutenção de suas instituições e de seu poder; se este risco chega a ser pressentido, o Estado não deixa de utilizar de todas as suas armas para neutralizar as ações "subversivas".

É por isso que, na perspectiva anarquista, a única educação revolucionária possível é aquela que dá-se fora do contexto definido pelo Estado, sendo mesmo esse afastamento uma atitude revolucionária. A proposta é que a própria sociedade organize seu sistema de ensino, à margem do Estado e sem a sua gerência, definindo ela mesma como aplicar seus recursos e fazendo a gestão direta deles, construindo um sistema de ensino que seja o reflexo de seus interesses e desejos. É o que os anarquistas chamam de autogestão.

Exemplos dessa autogestão existem (a educação proporcionada por alguns assentamentos dos sem-terra; promovida por algumas ongs ou organizações sociais, entre outras). O desafio agora é procurar uma forma de se afastar o Estado do controle da Educação, sem cair nos "lugares-comuns" dos liberais que pregam a melhoria da Educação por meio da privatização do setor. Cabe aos educadores começar a se aprofundar na discussão do assunto e procurar conscientizar a sociedade da necessidade desta mudança.

4 CONCLUSÃO

Se há um lugar e um sentido para uma escola anarquista hoje, esse é o do enfrentamento; uma pedagogia libertária de fato é incompatível com a estrutura do Estado e da sociedade capitalista. Marx já mostrou que uma sociedade só se transforma quando o modo de produção que a sustenta já esgotou todas as suas possibilidades; Deleuze e Guattari mostraram, por outro lado, que o capitalismo apresenta uma "elasticidade", uma capacidade de alargar seu limite de possibilidades.

É certo, porém, que sua constante de elasticidade não é infinita: para uma escola anarquista hoje trata-se, portanto, de testar essa elasticidade, tensionando-a permanentemente, buscando os pontos de ruptura que possibilitariam a emergência do novo, através do desenvolvimento de consciências e atos que busquem escapar aos limites do capitalismo.

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARRÃO, P. A Pedagogia Anarquista Brasileira. Disponível em: http://www.nodo50.org/insurgentes/textos/educa/05pedagogiabrasileira.htm. Acesso em: 04 de dez. de 2008.

GALLO, S. O Paradigma Anarquista em Educação. Nuances – Revista do curso de Pedagogia. FCT, UNESP, nº 2, 1996.

MARQUES, R. Pedagogia Libertária e Anarquista. Disponível em: http://www.eses.pt/usr/ramiro/docs/etica_pedagogia/ebook_hist_idpedag/Cap%2039%20Pedagogia%2 0libert%C3%A1ria%20e%20anarquista.pdf. Acesso em: 04 de dez. de 2008.
Autor: Augusto dos Santos Freitas


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