Interfaces Entre as Linguagens Oral e Escrita: Uma Questão Variacional



Selmo Alves

Doutor em Educação e professor de Língua Portuguesa, Leitura e Produção Textual e Metodologia Científica na Universidade Católica do Salvador (Ucsal), Faculdade Regional da Bahia (Unirb) e Faculdade Metropolitana de Camaçari (Famec).

Resumo:

Este artigo, um recorte da minha tese de doutoramento em Educação, intitulada "A Presença da Oralidade na Escrita: Um estudo de caso com estudantes da 4.ª série do ensino fundamental de uma escola pública da cidade do Salvador (BAHIA)", busca mostrar as interfaces entre as linguagens oral e escrita com base na Sociolinguística Variaconista e, a partir disso, fomentar uma reflexão da realidade do estudante e do professor no âmbito da escola, sendo estes corresponsáveis na compreensão e mudança de conceitos sobre a oralidade e escrita.

Palavras-chave: Fala. Escrita. Variação linguística.

Introdução

Preliminarmente, vale esclarecer a escolha do título da investigação. O título "A Presença da Oralidade na Escrita:um estudo de caso com estudantes da 4.ª série do ensino fundamental de uma escola pública da cidade do Salvador (BAHIA)", expressa a minha inquietação ao longo destes 19 anos na docência da Língua Portuguesa nos vários níveis escolares de estabelecimentos públicos e privados, ou seja, no primeiro e segundo níveis do ensino fundamental, no ensino médio e, hoje, exclusivamente no ensino universitário, o que me permite observar a forte dicotomia que ainda existe na escola entre fala e escrita, fato este que considero um desafio a ser, primeiramente, compreendido e, depois, enfrentado pela escola mediante uma nova reflexão e postura pedagógicas, com vistas a se fazer conhecer melhor o mundo e, assim, possibilitar uma educação significativa e, por isso mesmo, mais humana.

Num cenário em que todos são protagonistas dos processos de comunicação, já que esta se constitui numa ação de mão dupla, esforços coletivos no sentido de melhor aproveitamento do tempo gasto na escola não devem ser poupados. Compreender a linguagem como resultante de práticas sociais variadas, envolvendo espaço, tempo e pessoas diferentes, talvez seja o sucesso de boas relações sociais.

A Sociolinguística Variacionista

A Sociolinguística Variacionista é uma das áreas da Linguística, que estuda a língua em funcionamento e suas variações em uma comunidade de fala, focalizando, principalmente, os empregos linguísticos, em especial, os de caráter heterogêneo.

Ao definir a Sociolinguística, Silva-Corvalán (1989) destaca dois objetos de estudo: um no sentido lato, que aborda a relação dos fenômenos linguísticos com fatores sociais, tais como a organização sociopolítica e econômica de uma comunidade de fala, fatores individuais, como idade, gênero, etnia e nível de escolaridade, e com fatores externos, como os aspectos históricos e a situação de interação; e outro, no sentido restrito, que estuda o fenômeno da variação interrelacionada a fatores sociais, os quais são prerrequisitos básicos no processo de mudança linguística.

Na perspectiva sociolinguística, a linguagem falada é o veículo linguístico de comunicação usado em situações naturais de interação social do tipo comunicação face a face, sendo o vernáculo um sistema de regras categóricas e variáveis. Estas são levantadas, a partir dos dados, e a escolha de uma ou outra forma decorre de circunstâncias linguísticas ou extralinguísticas, aquelas são obrigatórias, não há exceção, pois já acontecem sistematicamente.

A abordagem da Teoria da Variação instrumentaliza a análise sociolinguística. Essa teoria assume a heterogeneidade sincrônica das línguas como sistemática, defendendo a necessidade de se correlacionar língua e contexto social. Além disso, busca sustentar suas hipóteses em amplos levantamentos de dados empíricos da comunidade de fala. O iniciador desse modelo teoricometodológico é o americano William Labov, que, juntamente com Weinreich e Herzog (1994), formulou dois princípios gerais, para a pesquisa sociolinguística, ambos apoiados pela referência a um corpo considerável de evidências, que são: o princípio da normal heterogeneidade e o princípio da gramática da comunidade discursiva. Este toma como objeto de descrição linguística o uso que se constrói na comunidade de fala, aquele considera que a língua em uso não é objeto fixo, mas variado. Assim, a Sociolinguística rejeita a variação livre, o tópico não é uma variação livre, porquanto a ocorrência de variantes pode ser correlacionada com fatores internos e externos à estrutura linguística.

Variação e Mudança

Para a Sociolinguística, variação e mudança não são vistas separadamente, nem externas ao sistema, mas como parte integrante do seu caráter heterogêneo, em que o aparente caos resultante da variação é altamente sistematizável. A variação é a existência de formas que competem para dizer a mesma coisa, em um mesmo contexto, com o mesmo valor de verdade. As duas formas existem na mesma sincronia, até uma delas ocupar todos os espaços. Assim, a relação entre elas é muito próxima, pois toda mudança implica uma variação, mas nem toda variação determina uma mudança. Esta não ocorre de forma abrupta, por isso não há interferência na comunicação entre os membros da comunidade de fala.

No estudo da variação, parte-se do pressuposto de que as alternâncias de uso são influenciadas por fatores estruturais e sociais, no sentido de que os usos de estruturas linguísticas são motivados e as alternâncias configuram-se sistemática e estatisticamente previsíveis, por isso passíveis de serem analisadas e descritas cientificamente. Assim, não há probabilidade de relacionar a aleatoriedade aos usos de formas linguísticas.

No referido estudo, as formas linguísticas que competem são chamadas de variantes, as quais, em conjunto, configuram a variável. As variantes podem permanecer estáveis nos sistemas (as mesmas formas continuam alternando-se) durante um período curto ou até por séculos, ou podem sofrer mudanças quando uma das formas desaparece. As variáveis podem ser independentes e dependentes.

As variáveis independentes constituem grupos de fatores linguísticos e extralinguísticos que não agem isoladamente, mas operam em um conjunto complexo de correlações que inibem ou favorecem o emprego de formas variantes semanticamente equivalentes.

As variáveis dependentes correspondem ao fenômeno linguístico em estudo. As mudanças representam no campo da Sociolinguística a correspondência análoga das mudanças históricas em geral, que são próprias da humanidade, imersas no decurso temporal, conforme Lausberg (1963).

Na Sociolinguística Variacionista, destacam-se cinco problemas para resolver a questão crucial da mudança linguística. Esses cinco pontos de reflexão foram reunidos em sua totalidade e sistematizados pela primeira vez por Weinreich, Labov e Herzog (1968) com as seguintes denominações:

1.O problema das restrições remete à questão de definir quais as condições que favorecem ou restringem as mudanças e, por conseguinte, qual o ponto das mudanças possíveis.

2.O problema da transição coloca para a teoria da mudança a necessidade de definir e analisar o percurso através do qual cada mudança se realiza.

3.O problema do encaixamento apoia-se em grande parte na máxima do estruturalismo diacrônico de que uma mudança lingüística só poderá ser compreendida, considerando-se a sua inserção no sistema linguístico que ela afeta.

4.O problema da avaliação levanta uma importante discussão acerca do papel do indivíduo frente à mudança e frente à própria língua.

5.O problema da implementação coloca a necessidade de se definir o que significa explicar alguma coisa em Linguística.

Segundo Labov (1994, p. 69), "para a obtenção da mudança em curso, deve- se separar a variação decorrente de fatores sociais da variação resultante de fatores internos". Ele conseguiu provar que a mudança é observável na sincronia pela avaliação da heterogeneidade linguística dos grupos sociais, embora os fatores sociais não causem propriamente a mudança linguística, eles determinam a sua expansão.

O citado autor propõe também a utilização de princípios sincrônicos para estudos diacrônicos, ou seja, o estudo do presente para explicar o passado, pois o exame minucioso mostra que boa parte do passado ainda está entre nós. Ele assume que, em termos gerais, as forças condicionantes da variação que operam hoje não diferem substancialmente daquelas que operaram no passado. Enfim, o estudo da história se beneficia da continuidade do passado e das analogias com o presente.

Assim, pode-se observar que os fenômenos variáveis podem manter-se estáveis ao longo de toda a sobrevida de uma língua ou podem operar-se como mudança. Modificações em um sistema podem ser de curto, médio, longo e longuíssimos prazos.

A Sociolinguística, através da sua objetividade, do seu arcabouço teórico e metodologia matematicamente quantificada, permite, ao estudar a fala de gerações distintas, mas coexistentes, apreender um fenômeno linguístico em variação, um fato em processo de mudança ou como variável estável na comunidade. Esta última é uma das hipóteses em relação às construções tópicas.

É importante ressaltar que, quando se trata de mudança em direção à norma ou em oposição à norma, a influência do gênero exerce grande influência, segundo a literatura que aborda tal aspecto. Assim, quando as mudanças consistem na implementação de uma forma linguística não-padrão, as mulheres mostram-se mais conservadoras. Quando as variantes não são de prestígio e são estigmatizadas, o sexo masculino as utiliza mais, visto que os homens são mais inovadores.

Em se tratando de variação estável e de mudança em curso, a variável idade dos falantes é crucial para maior clareza nas análises. Em função da variável idade dos falantes, Lobo (1996) considera que três padrões clássicos podem emergir, a partir da forma como se comportam as variantes padrão e não-padrão:

  • primeiro, ou padrão curvilinear, caracterizaria-se por apresentar a maior incidência da variante padrão nas faixas etárias intermediárias e estaria relacionado a fenômenos de variação estável;
  • segundo, ou padrão plano, também estaria relacionado a fenômenos de variação e não apresentaria qualquer gradação em função das faixas etárias;
  • terceiro, ou padrão inclinado, apresentaria a maior incidência da variante padrão entre os falantes mais velhos, e a maior incidência da variante não-padrão entre os falantes mais novos. Estaria relacionado a fenômenos de mudança em curso.

Após essas abordagens, pode-se inferir que, através da Sociolinguística, diagnosticam-se as variantes que contextualizam uma variável, descreve-se o seu comportamento preditivo e investiga-se o grau de mutabilidade ou estabilidade de uma variação.

A Relação entre fala e escrita: Uma discussão muito recente

A proposta de trabalho envolvendo aspectos da fala e escrita em sala de aula e tantas outras atividades nessa complexa e recente área do ensino podem levar o professor a mostrar aos seus estudantes – e com eles interpretar e produzir - as diversas possibilidades de expressão na sua língua.

A importância de um trabalho de tal natureza só poderá ser compreendida se se partir do pressuposto de que a língua não é um objeto estático e homogêneo, que se impõe ao indivíduo, mas sim, ao contrário, os indivíduos é que dispõem da língua de acordo com a situação comunicativa em que estão inseridos e os objetivos que pretendem alcançar. Sendo assim, não basta ensinar regras estanques que caracterizam a norma culta com a pretensão de que esse conhecimento possa ser aplicado em qualquer situação comunicativa.

Cada modalidade da língua tem seu conjunto de normas às quais os seus usuários devem adequar-se; os estudantes precisam conhecer esses padrões para adequar-se a eles. Segundo Luiz Antônio Marcuschi (2001), "Falar ou escrever bem não é ser capaz de adequar-se às regras da língua, mas é usar adequadamente a língua para produzir um efeito de sentido pretendido numa dada situação".

Pensando nisso, a função do professor de língua materna, de acordo com Bechara (1987, p.14): "No fundo, a grande missão do professor de língua materna é transformar seu estudante num poliglota dentro de sua própria língua, possibilitando--lhe escolher a língua funcional adequada a cada momento [...]".

Seguindo essa mesma linha, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), em seu volume sobre o ensino de Língua Portuguesa, sugerem que a escola deve garantir aos seus alunos os seguintes aprendizados:

Considerando os diferentes níveis de conhecimentos prévios, cabe à escola promover sua ampliação de forma que, progressivamente, durante os oito anos do ensino fundamental, cada aluno se torne capaz de interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes nas mais variadas situações.

Para garantir que os educandos se tornem produtores competentes de textos escritos e falados, é importante que a escola crie condições para que eles conheçam as características particulares de cada uma dessas modalidades e possam construir seus textos de forma adequada e consciente, de acordo com cada padrão, sem que uma formulação de língua falada interfira em outra de língua escrita. É comum se encontrar nas produções de estudantes formas típicas da oralidade. Pode-se reconhecer essas interferências, por exemplo, no uso excessivo do "e" como conectivo, no uso de marcas de oralidade, como "aí" com a função de conectivo, na escolha de um vocabulário de sentido pouco preciso, entre outras. As atividades de adaptação de textos falados em textos escritos podem contribuir para que os educandos percebam como efetivamente se realiza, se constrói e se formula cada uma dessas modalidades.

A questão do tratamento da oralidade no ensino de língua materna é muito recente, haja vista que somente a partir da segunda metade da década de 90 vêm sendo publicados livros que abordam esse assunto. Embora muitas pesquisas sobre a língua falada tenham sido realizadas, quer nas ciências humanas, quer nas sociais, pouco se está realizando no campo educacional, devido a um hiato entre a pesquisa científica e a sala de aula. Vale destacar que os pressupostos teóricos que estão embasados na concepção da língua como forma de interação social norteiam essas pesquisas.

Com a inclusão dessa abordagem nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa, muito se tem discutido como trabalhar a oralidade nas salas de aula. Se a função da escola não é ensinar o aluno a falar, visto que ele já é um falante da língua, o que se deve fazer, então? É por esse viés que esforços por parte dos educadores precisam ser feitos no sentido de se compreender melhor o processo de entrecruzamento da fala e escrita, a fim de traçar um plano de trabalho e ação efetivamente eficiente e eficaz que possa ao menos minimizar lacunar existentes, com resultados pedagógicos satisfatórios e convincentes.

Nesse sentido, um trabalho escolar nessa área deverá ser norteado pelos seguintes objetivos:

  • Focalizar os processos de retextualização, sendo esta compreendida como a passagem do texto falado para o escrito e vice-versa, que interfere tanto no código como no sentido e evidencia uma série de aspectos nem sempre bem--compreendidos da relação oralidade-escrita.
  • Evidenciar que a fala e a escrita são duas modalidades de um mesmo sistema linguístico.
  • Nortear atividades pedagógicas para a retextualização.
  • Esclarecer que o aprendizado das operações de transformação do texto falado para o escrito garante melhor domínio da produção escrita.
  • Promover práticas de oralidade e de escrita de forma integrada a fim de se identificarem as relações entre oralidade e escrita.
  • Ressaltar que os processos de retextualização se utilizam dos conhecimentos prévios da língua para o aprimoramento do texto.

Considerações Finais

Esta breve reflexão sobre as interfaces entre fala e escrita, à luz da teoria variacionista, pode evidenciar quão próximas estão estas duas modalidades linguísticas, apesar das particularidades de cada uma delas.

A flutuação existente entre linguagem oral e escrita é uma realidade cada vez mais evidente. Pode-se afirmar que não há limites rígidos entre uma e outra; é o que tem sido constatado em pesquisas feitas com o código oral e escrito de diferentes grupos de indivíduo.

Câmara Jr. (1985), ao falar sobre os resultados da análise de ditados e descrições executadas por 62 crianças, entre 11 e 13 anos de idade, refere-se a "erros" mais frequentes e constantemente repetidos, com índice de tendências da língua coloquial culta. Se são "erros" ou não, o fato é que esse autor atribui o uso de determinadas formas e construções à linguagem oral usada por esses estudantes.

A partir do que se viu aqui, pode-se afirmar que se faz necessária a intensificação de um trabalho pedagógico que permita ao estudante atingir uma melhor compreensão de como se dá a produção dos textos falados e escritos, bem como de que, dependendo do gênero textual, há diferenças maiores ou menores entre fala e escrita.

Assim, o papel do professor no trabalho de produção de textos narrativos infantis é o de mostrar à criança a diferença entre os aspectos pragmáticos do oral e da escrita, mostrando seu impacto na produção textual.

Com os resultados deste estudo, conclui-se que a proposta dos PCN de que o ensino da gramática deve-se dar amparado nos gêneros textuais, uma vez que eles são o meio pelo qual a língua funciona, é adequada e possível de ser executada.

Referências

BECHARA, Evanildo. Ensino da Gramática. Opressão? Liberdade?São Paulo: Ática, 1987.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB N.º 9394/1996): Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

­____. Ministério da Educação e dos Desportos. Secretaria de Educação Fundamental / MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais – Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília, 1998.

____. PCN Ensino Médio: orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Vol. Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/Semtec, 2002.

CAMARA JR., Matoso. Manual de expressão oral e escrita. Petrópolis: Vozes, 1985.

LABOV, William. Principies of línguistic change. Cambridge: Blackwel, 1994.

MARCUSCHI, Luís Antônio. Concepção de língua falada nos manuais de português de 1º. e 2º. Graus: uma visão crítica. Trabalhos em Lingüística Aplicada, 30: 39-79, 1997.

_____ . Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.

_____ . Oralidade e ensino de língua: uma questão pouco "falada". In: DIONÍSIO, Ângela & BEZERRA, Ma. Auxiliadora. O livro didático de português: múltiplos olhares. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p. 21-34.

_____ . Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1987.


Autor: Selmo Alves


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