OS AVANÇOS DO PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA (PSF) NO BRASIL



Idelcy Silva Santos

Shirlei Alves dos Santos

Rita de Cássia Oliveira

RESUMO

O Programa de Saúde da Família é hoje uma das principais respostas do Ministério da Saúde à crise vivida no setor, nascido exatamente no bojo do Sistema Único de Saúde (SUS).Em sendo um modelo assistencial centrado no usuário, propõe-se um processo de trabalho multiprofissional, determinado pela "produção do cuidado", entendido enquanto ações de acolhimento, vínculo, autonomização e resolução. Este artigo, que consistiu numa reflexão sobre o PSF no Brasil, realizou-se a partir dos seguintes objetivos: Geral: Refletir sobre os avanços do PSF no novo modelo de atenção à saúde; Específicos: Analisar o modelo de assistência do PSF como um dos componentes do SUS; Verificar a prestação da assistência do PSF de acordo com as diretrizes da Norma Operacional Básica do SUS/NOB-SUS/96; eAnalisar os elementos facilitadores e dificultadores da assistência do PSF.

Palavras-Chave: Programa de Saúde da Família (PSF); Modelo Assistencial; SUS; Gestão do SetorSaúde.

ABSTRACT

The Family Health Program (PSF) is today one of the principals response of the Health Ministery to crisis lived in the sector, borned exactly in the Health Unique System (SUS).In been a assistencial model centrated in the usuary, propose a process of multiprofessional work, determinated for "cared production", understood while action of welcome, entail, autonomination e resolutions. In this article, consist in a reflection about PSF in Brazil, realize of the next objectives: a) Generality: reflect about the advances of the PSF in model of attention to health; b) Specify: 1. Analys the model of attendance of the PSF like one of the components ofSUS; 2. Verify the instalment of attendance of the PSF about like theguidelines of basic operational norm of the SUS/NOB-SUS/96; and 3. Verify the facilitators elements and dificultators of the attendance of the PSF.

Key Words:Family Health Program (PSF); Assistencail Model; SUS; Health Sector Administration .

1 INTRODUÇÃO

Este artigo, cujo principal objetivo foi fazer uma reflexão crítica sobre os avanços do Programa de Saúde da Família (PSF) no Brasil e suas implicações no setor saúde, insere-se, num plano mais geral, nos domínios da gestão da saúde. Um trabalho intelectual que pretende delinear a atenção básica em saúde como um dos aspectos mais importantes da atual política do SUS.

Para melhor compreendê-lo, algumas considerações se fazem necessárias, a fim de contextualizá-lo politicamente e estruturalmente no cenário nacional e internacional.

O PSF foi criado oficialmente no Brasil em 1994 pelo Ministério da Saúde, inspirado nas experiências desenvolvidas na área da saúde pública em países como Cuba, Inglaterra, Canadá e outros, que iniciaram os primeiros passos nessa direção, no início da década de 80, como pioneiros das mudanças nos serviços primários de saúde de reconhecida resolutividade e impacto, mundialmente. Com características próprias, adaptado à realidade dos estados brasileiros, o Programa é um marco importante no setor saúde, utilizado como mecanismo para atender ao disposto na Constituição Federal de 1988 e, especificamente, na Lei Orgânica da Saúde, de 1990, que dispõe sobre a promoção, proteção e recuperação da saúde.

Reconhecido nacionalmente como um recurso para levar a saúde para mais perto da família e, com isso, melhorar a qualidade de vida das pessoas, o PSF é desenvolvido por equipe multiprofissional, com intensa participação da comunidade. Por causa disso, o Ministério da Saúde vem estimulando a ampliação do número de equipes de saúde da família no Brasil, até mesmo incluindo outras categorias profissionais, como ocorreu mais recentemente, em 2002, com a inclusão de dentistas e auxiliares de saúde bucal.

 Nesse sentido, este trabalho justifica-se por oportunizar uma reflexão crítica sobre a política do PSF no Brasil, a partir dos eixos que o vem norteando desde a sua criação, por exemplo, a Constituição Federal de 1988 , que trata da integralidade e hierarquização da assistência à saúde, a Lei Orgânica da Saúde de 1990, que dispõe sobre a promoção, proteção e recuperação da saúde, e a Norma Operacional Básica do SUS/NOB-SUS/96, que disciplina a habilitação dos municípios na prestação do PSF. Teve como metodologia o levantamento de bibliografias que identifiquem o surgimento e a evolução do PSF no Brasil e de legislações e/ou instrumentos similares que reflitam sobre a real função do PSF no cenário da saúde pública nacional e, por fim, a interpretação dos elementos facilitadores e dificultadores do PSF no Brasil, de modo a propor mecanismos talvez mais eficazes que possam destacar o seu valor.

2 OS PRINCÍPIOS DA UNIDADE DE SAÚDE DA FAMÍLIA

São três a seguir, os princípios sobre os quais o PSF está organizado:

2.1 Integralidade e Hierarquização: A Unidade de Saúde da Família está inserida no primeiro nível de ações e serviços do sistema local de saúde.

De acordo com as condições de desenvolvimento da atenção básica, três condições dinâmicas que podem ser úteis à conversão dos modelos de atenção: a de Modelo Inaugural da Atenção Básica; a de Modelo de Reforço da Atenção Básica; e a de Modelo de Reestruturação do Sistema.

Parâmetros utilizados para a caracterização do estágio de desenvolvimento de cada um desses grupos de situações locais incluem:a) a condição de habilitação da gestão local;b) a cobertura por consultas de atenção básica por prestador público; c) a cobertura por consultas especializadas na rede pública; d) a cobertura com o PACS; e) a cobertura com o PSF; f) a cobertura dos programas de saúde para a atenção básica de Vigilância Nutricional, Vigilância Epidemiológica, Imunização, Saúde da Mulher, Hipertensão Arterial e Diabetes; g) o mapeamento das condições sanitárias, dos indicadores de saúde e de acesso aos serviços de saúde por áreas da cidade; h) a existência de central de marcação de consultas; i) a existência de central de leitos; j) a presença de atendimento de emergência pré-hospitalar; l) o grau de resolutividade das unidades básicas de saúde com incorporação de profissionais de saúde mental, nutrição, serviço social e incorporação de novas tecnologias assistenciais; m) articulação entre os diversos níveis de assistência à saúde; n) efetividade das estratégias de educação e de promoção em saúde; o) informatização das unidades de saúde; p) existência de mecanismos de regionalização da gestão/gerência do sistema de saúde por distritos; q) pactuação regional pelos critérios da NOAS/01; e r) estratégias de articulação intersetorial da área social da prefeitura.

2.2 Territorialização, Adscrição de Clientela. Discutindo seu núcleo estrutural.

Consiste no trabalho com território de abrangência definido.

O PSF tem sua matriz teórica circunscrita prioritariamente ao campo da vigilância à saúde. Sendo assim, seu trabalho está quase que restritivamente centrado no território, de acordo com as concepções desenvolvidas pela Organização Pan-Americana de Saúde. Isto significa que em grande medida a normatização do Programa inspira-se nos cuidados a serem oferecidos para ações no ambiente. Não dá muito valor ao conjunto da prática clínica, nem toma como desafio a necessidade de sua ampliação na abordagem individual nela inscrita, no que se refere a sua atenção singular, necessária para os casos em que os processos mórbidos já se instalaram, diminuindo "as autonomias nos modos de se andar a vida" (CAMPOS, 1992; MERHY, 1998).

Dessa forma, o PSF desarticula sua potência transformadora, aprisionando o trabalho vivo em ato, em saúde, em normas e regulamentos definidos conforme o ideal da vigilância à saúde, transformando suas práticas em "trabalho morto" dependentes. Assim, como a Medicina Comunitária e os Cuidados Primários em Saúde, ao não se dispor a atuar também na direção da clínica, dando-lhe real valor com propostas ousadas como a da "clínica ampliada", age como linha auxiliar do Modelo Médico Hegemônico.

O Programa de Saúde da Família adota a diretriz de vínculo e propõe a adscrição de clientela, de 600 a 1.000 famílias, em um determinado território, que se adscrevem a uma equipe de saúde, que passa a ser a "Porta de Entrada" do serviço de saúde. É dada ao PSF a missão de mudar o modelo assistencial para a saúde, e essa mudança deve se caracterizar quando tiver um modelo que seja usuário-centrado. Contudo, ao que parece, não há uma real desburocratização do acesso aos serviços, visto que o atendimento às urgências, que é muito importante do ponto de vista do usuário, não se torna ponto forte de sua agenda de trabalho. Os serviços que não conseguem criar esta agenda têm- se mostrado como de baixa credibilidade para os usuários (CHAKKOUR e all., 1992). Assim, o PSF parece cometer um erro de saída.

2.3 Equipe Multiprofissional: A equipe de Saúde da Família é hoje composta minimamente por um médico generalista ou médico de família, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem, um dentista, um auxiliar de saúde bucal e de quatro a seis agentes comunitários de saúde (ACS).

Se, por um lado, o PSF traz na sua concepção teórica a tradição herdada da Vigilância à Saúde, por outro, reconhece que a mudança do modelo assistencial dá-se a partir da reorganização do processo de trabalho. Partindo de uma crítica ao atual modelo, que tem nas ações e saberes médicos a centralidade dos modos de fazer a assistência, propõe um novo modo de operar o trabalho em saúde. A alternativa pensada estrutura o trabalho assistencial a partir de equipes multiprofissionais hoje compostas por 1 médico, 1 enfermeiro, 1 auxiliar de enfermagem, 1 dentista, 1 auxiliar de saúde bucal e 5 ou 6 agentes comunitários de saúde.

Apesar das muitas dificuldades que o PSF enfrenta para a superação de obstáculos de modo a atingir seu pleno objetivo, não se pode negar sua expansão e os avanços obtidos na área. Maior prova disso é que à época da criação do PSF, em 1994, o País contava com 29 mil agentes comunitários de saúde, o que correspondia a 55 municípios e 328 equipes de Saúde da família em ação. Pelo último censo, estima-se a existência de 4.498 municípios do Brasil, totalizando-se 19.182 equipes de saúde da família e 184.934 agentes comunitários de saúde (Sistema de Informação da Atenção Básica-SIAB, janeiro de 2004).

3 ENTRAVES NA ESTRUTURAE ORGANIZAÇÃODOPSF

Dentre os diversos problemas verificados na proposta do PSF, enquanto "estratégia de mudança do modelo assistencial", pode-se demodo sistemático apontar o seguinte:

Sobre a organização e forma de trabalho da equipe, embora o trabalho esteja direcionado para práticas multiprofissionais, nada garante nas estratégias do PSF que haverá ruptura com a dinâmica medicocentrada, do modelo hegemônico atual.

As visitas domiciliares não devem ser vistas como novidade e exclusivas do PSF, porque é um recurso que deve ser utilizado por qualquer estabelecimento de saúde, desde que isto seja necessário, e já vem sendo uma prática de várias redes de serviços não organizados sob esta modalidade, inclusive mostrando bons resultados. É próprio da missão das Unidades de Saúde e deve ser considerado um expediente rotineiro em serviços assistenciais. O fato de realizá-las não significa que o médico tenha abandonado sua prática "procedimento centrada" nem mesmo que o trabalho dos outros profissionais deixem de ser estruturados pelos atos e saberes médicos. Estes são problemas de outras ordens, como se estátentando mostrar neste artigo.

Outra questão central diz respeito ao fato de os seus mentores considerarem que podem organizar e estruturar a demanda de serviços das UBS, a partir exclusivamente de usuários que devem ser referenciados pelas equipes do PSF. Desta forma, elimina a possibilidade de atendimento à demanda espontânea, o que se constitui em uma doce ilusão. A população continua recorrendo aos serviços de saúde em situações de sofrimentos e angústias, e não havendo um esquema para atendê-la e dar uma resposta satisfatória aos seus problemas agudos de saúde, vão desembocar nas Unidades de Pronto Atendimento e Prontos Socorros, como usualmente acontece. Este é um erro estratégico na implantação do PSF, o que enfraquece em demasia sua proposição, visto que a população acaba por forçar a organização de serviços com modelagens mais comprometidas com os projetos médico-hegemônicos, para responderem as suas necessidades imediatas.

As visitas domiciliares compulsórias indicam dois tipos de problemas muito graves, por sinal: um diz respeito à otimização dos recursos disponíveis para assistência à saúde, pelo Programa, principalmente de seus recursos humanos. Não deveria ser recomendado que profissionais façam visitas domiciliares, sem que haja uma indicação explícita para elas, à exceção dos trabalhadores que têm a função específica da vigilância à saúde, como, por exemplo, os agentes comunitários de saúde, que devem percorrer o território insistentemente. Mas, pode-se considerar uma diretriz pouco eficiente, a visitação de médicos e enfermeiros, por exemplo, sem que o mesmo nem mesmo saiba o que vai fazer em determinado domicílio.

Um outro aspecto da visita domiciliar compulsória diz respeito ao fato de que isto pode significar uma excessiva intromissão do Estado na vida das pessoas, limitando sobremaneira seu grau de privacidade e liberdade. O controle que o Estado pode exercer sobre cada cidadão, é reconhecido como problema e fica mais evidente, ao se pensar este tipo de diretriz sendo praticado em um país sob governo autoritário, o quanto não há um cunho trágico nisso.

Outra questão muito sentida, principalmente a partir de relatos de pequenos municípios, diz respeito aos custos/financiamento do programa. O PSF trabalha com a idéia de que altos salários garantem bons atendimentos, viabilizando o trabalho diferenciado do médico e permitindo a sua "interiorização". Sem desconsiderar a importância de remuneração satisfatória dos profissionais de saúde, é um equívoco pensar que isto por si só, como muitas vezes esta diretriz tem sido assimilada, garante um atendimento acolhedor, com compromisso dos profissionais na resolução dos problemas de saúde dos usuários. O modo de assistir as pessoas está mais ligado a uma determinada concepção de trabalho em saúde, a construção de uma nova subjetividade em cada profissional e usuário. Vincula-se inclusive a determinação de uma relação nova, que foge ao padrão tradicional em que um é sujeito no processo e o outro o objeto sobre o qual há uma intervenção para a melhora da sua saúde. A nova relação tem que se dar entre sujeitos, através da qual tanto o profissional quanto o usuário podem ser produtores de saúde.

O PSF mitifica o generalista, como se este profissional, ou melhor, esta "especialidade" médica conseguisse por si só promover novas práticas de saúde na população. De acordo com dados da pesquisa "Perfil dos Médicos do Brasil", realizada pela Fiocruz/FCM em 1995, de 183.052 médicos registrados nos Conselhos de Medicina, 2,6% são especializados em Medicina Geral e Comunitária, enquanto em pediatria - 13,4%; gineco-obstetrícia - 11,8% e em medicina interna - 8,0%. Seria mais adequado um modelo de assistência que absorvesse com mais naturalidade estes profissionais, inserindo-os em novas práticas, dando-lhes oportunidades de adquirir novos conhecimentos e operar novos fazeres. Isto seria a construção de sujeitos plenos, capazes de liberar sua energia criativa no trabalho vivo que cada um é capaz de operar em outra modelagem assistencial.

De acordo com Campos et al, a especialidade médica se circunscreve ao "núcleo de competência, que incluiria as atribuições exclusivas daquela especialidade", contudo o médico detém ainda uma certa tecnologia de trabalho que lhe dá maior amplitude de ação, a qual o autor denomina de "campo de competência, que incluiria os principais saberes da especialidade-raiz e que, portanto, teria um espaço de sobreposição de exercício profissional com outras especialidades, [...] seria um campo de interseção com outras áreas" (CAMPOS; CHAKKOUR, 1997, p. 143).

Quanto à gestão do PSF, o primeiro problema apresentado na sua organização diz respeito ao alto grau denormatividade na sua implantação. O formato da equipe, as funções de cada profissional, a estrutura, o cadastro das famílias, o levantamento dos problemas de saúde existentes no território e os diversos modos de fazer o programa são regulamentados centralmente pelo Ministério da Saúde. Estas normas deverão ser seguidas rigorosamente pelos municípios, sob pena daqueles que não se enquadrarem nas orientações ministeriais, ficando fora do sistema de financiamento das equipes de PSF.

Agindo assim, o Ministério da Saúde não só aborta a construção de modelos alternativas, mesmo que similares a proposta do PSF, como engessa o próprio Programa de Saúde da Família diante de realidades distintas vividas em diferentes comunidades em todo território nacional. O tradicional centralismo das políticas de saúde, que marcam a área governamental desde a Primeira República, se evidencia neste ato.

Em relação à escolha da família como espaço estratégico de atuação, também são necessários alguns comentários. É positivo apontar o foco de atenção de uma equipe de saúde, para um "indivíduo em relação", em oposição ao "indivíduo biológico". Com certeza, onde houver famílias na forma tradicional, a compreensão da dinâmica deste núcleo, através da presença da equipe no domicílio, é potencialmente enriquecedora do trabalho em saúde. No entanto nem sempre, este núcleo está presente. Nem sempre este é o espaço de relação predominante, ou mesmo o lugar de síntese das determinações do modo de andar a vida das pessoas em foco.

4 O PSF NA PERSPECTIVA DO SISTEMAÚNICO DE SAÚDE(SUS)

O PSF foi criado no Brasil, em 1994, dentro do contexto do SUS e, partir daí, vem difundindo-se desde a sua criação.A despeito de ele ainda não atender plenamente às necessidades da população usuária por vários fatores, pode-se mesmo afirmar que é inegável a sua contribuição para o setor saúde por provocar, dentre outros aspectos, mudança do modelo de assistência, inclusive as percepções por parte dos profissionais sobre o conceito "doente" e "doenças", que ainda não se modificou totalmente nos discursos desses atores, mesmo depois da implantação do Programa.

Embora a filosofia e o objeto de atuação dos profissionais e serviços sejam hoje distintos dos serviços tradicionalmente oferecidos nas unidades básicas de saúde (UBS), o material simbólico que carregam os atores envolvidos na relação entre oferta e demanda não se distingue de seus conceitos e percepções sobre doença e saúde, ouseja, uma racionalidade médica centrada na categoria doença, com forte apelo às definições oriundas do campo da Biologia.

Apesar das contradições entre as percepções biologicistas do processo saúde e doença, por parte dos profissionais e usuários, e a humanização das práticas em saúde desenvolvidas pelo programa, os avanços na relação entre esses atores parecem dar sinais positivos para todos. Mais uma vez, confirma-se a correspondência entre aquilo que se oferece e o que se demanda, agora de uma maneira talvez mais totalizante. Essa visão mais totalizante se dá na busca da união da prática clínica com a prática sanitária, por meio da ênfase da saúde nos aspectos de promoção e prevenção, pelos quais são enaltecidos e transformados em falas e práticas, que buscam o reconhecimento da saúde como um direito de cidadania e que se traduz em qualidade de vida. Nada mais representativo desse reconhecimento do que a incorporação de membros da comunidade na decisão das prioridades em saúde no seu bairro, ou até mesmo sua participação direta na prestação do cuidado, como é o caso dos agentes comunitários.

Nesse sentido, acredita-se que a reflexão sobre as reais vantagens e desvantagens do tema seja uma contribuição e oportunidade para todos aqueles que se interessam pelo assunto PSF, ou que dele se utilizam, na medida em que se pretende humanizar as relações na área da saúde pública.

5 A ASSISTÊNCIA DO PSF DE ACORDO COM AS DIRETRIZES DA NORMA OPERACIONAL BÁSICA DA SAÚDE NOB/SUS 96

O PSF começou a ser implantado no País, no início dos anos 90, em cidades nordestinas, sendo hoje o principal componente das ações de atenção básica à saúde desenvolvidas no Brasil. Os pioneiros foram Sobral (CE), Quixadá (CE), Camaragibe (PE) e Campina Grande (PA). Quatro anos depois, expandiu-se para Belo Horizonte, com 2,2 milhões de habitantes, ocasião em que os 2.625 agentes de saúde cadastraram 1 milhão e 700 mil pessoas, ou cerca de 420 mil famílias. Capacitados em saúde da criança, da mulher e dengue, fizeram mais de um milhão de visitas domiciliares. Em Betim, foi contabilizada a redução de 13% no número de consultas de urgência de 1999 a 2000 e mais 20% de 2000 a 2001. O Ministério da Saúde não possui um ranking das cidades mais avançadas no PSF atualmente. Ele é realizado por meio de equipes multiprofissionais, hoje constituídas de médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, agentes comunitários, dentistas, auxiliares e técnicos de odontologia, que garantem à população, nos locais mais próximos das residências, a assistência básica e orientação sobre os cuidados com a saúde. Ele também mudou a lógica da atenção à saúde - antes baseada na cura, com foco nos hospitais - e instituiu uma estratégia mais voltada para a prevenção, promoção e recuperação da saúde.

O objetivo da estratégia foi implementar os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), de integralidade, universalidade, eqüidade e participação social.

Estruturado como uma estratégia para dar conta do processo de reorganização da rede de atenção básica ou primária, o PSF, por essa potencialidade, seria também uma estratégia de reorganização de todo o sistema.

Dos aspectos relevantes da estratégia, compreende-se a territorialização com a adscrição de clientela /criação de vínculo equipe-usuário e o aumento da oferta de serviços de saúde e de suas áreas de abrangência.

No Brasil, a implantação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) surge em 1991 com trabalhos de pessoas da comunidade treinadas, capacitadas e supervisionadas por profissionais de saúde.O PACS foi criado baseado em experiências anteriores bem sucedidas, constituindo-se em uma estratégia que agrega idéias de proporcionar à população o acesso e a universalização do atendimento à saúde, descentralizando as ações.

Por fim, a implantação do PSF e do PACS ocorre por adesão espontânea dos estados e municípios, que cumprem os seguintes requisitos:

Estar habilitado na Norma Operacional Básica do SUS/NOB-SUS/96;

Elaborar projeto de implantação do PSF/PACS de acordo com as diretrizes do programa;

Ter aprovação de sua implantação do PSF/PACS pelo Conselho Municipal de Saúde/CMS;

Garantir a inclusão da proposta de trabalho do PSF/PACS no Plano Municipal de Saúde;

Garantir a infra-estrutura de funcionamento da Unidade de Saúde do PSF;

Garantir a integração do PSF à rede de serviços de saúde complementares , de forma a assegurar a referência e contra-referência quando os problemas exigirem maior grau de complexidade para sua resolução;

Manter a organização de uma equipe composta por (01) profissional médico, (01) profissional enfermeiro, (01) profissional auxiliar e/ou técnico de enfermagem, (01) profissional dentista, (01) profissional auxiliar ou técnico de saúde bucal, podendo ser acrescido ou não de Agente Comunitário de Saúde (ACS);

Garantir a integração do ACS na rede básica dentro da área de abrangência do PACS;

Garantir o programa de educação continuada para a equipe do PACS;

Ter 01 enfermeiro supervisor para cada 30 ACS, em plena parceria entre a União, estados e municípios, co-responsáveis na proteção da saúde da população brasileira.

6 OS DESAFIOS DO PSF NAS GRANDES CIDADES BRASILEIRAS

Na consecução de suas metas de universalização do acesso da população a um sistema de saúde em nível descentralizado, o Ministério da Saúde tem enfatizado a necessidade de transformação dos modelos assistenciais vigentes, elegendo o Programa Saúde da Família (PSF) como a estratégia reestruturante do modelo de atenção à saúde vigente (Brasil, 1997).

O pressuposto é de que o PSF seria capaz de imprimir uma nova dinâmica na forma de organização dos serviços e ações de saúde, possibilitando maior racionalidade na utilização dos níveis de maior complexidade assistencial e produzindo resultados favoráveis nos indicadores de saúde da população assistida. Ao mesmo tempo, o princípio operacional do Programa de adscrição de clientela permitiria estabelecer um vínculo das unidades básicas de saúde da família com a população, possibilitando o resgate da relação de compromisso e de co-responsabilidade entre profissionais de saúde e usuários dos serviços.

Introduzido a partir de 1994, o PSF apresentou uma significativa expansão do número de Equipes de Saúde da Família com a transferência de recursos federais do Piso de Atenção Básica Fixo e Variável para os municípios a partir de 1998. Esta expansão ocorreu mais intensamente nos pequenos municípios (mais carentes de recursos sociais e sanitários) e em cidades de até 100.000 habitantes. Este processo decorreu, em parte, pela intenção de ampliar a cobertura em áreas desassistidas e de maior pobreza, e pela maior capacidade de indução dos incentivos financeiros federais para os municípios menores.

Entretanto, apesar do elevado percentual de municípios que já implantaram equipes de PSF, a cobertura populacional pelo Programa se situa em torno a um terço dos habitantes do país, o que pode ser atribuído, pelo menos em parte, a maior dificuldade de sua implantação nos grandes centros urbanos, que concentram um maior contingente populacional. Na maioria das cidades de médio e grande porte, o PSF persiste com as características de uma estratégia de expansão dos cuidados básicos de saúde voltada a grupos populacionais sob maior risco social e expostos a precárias condições sanitárias.

Entre as justificativas para este quadro, podem ser destacados os elevados investimentos em recursos financeiros, humanos e materiais necessários para introdução ou ampliação da cobertura do PSF nas cidades de maior porte, bem como as resistências corporativas em alterar o processo de trabalho consagrado na lógica de intervenção médica vigente e a dificuldade em superar ou integrar as dimensões de promoção e prevenção às ações de assistência médica.

No plano financeiro, os critérios vigentes de repasses de recursos a título de incentivo ao PSF configuram um círculo vicioso de insuficiência de receita e de dificuldade de superação dos padrões anteriores, impedindo a redução do duplo gasto em vertentes diversas da atenção básica e das dicotomias no processo de transição entre a rede do PSF e a rede tradicional preexistente.

Apesar de o PSF ser considerado por gestores como um modelo melhor de atenção sanitária, o Programa sofre grandes resistências, pois implicaria o aumento inicial de demandas médicas, em um gasto maior com o sistema, e dificuldades na captação de profissionais capacitados e a precariedade dos contratos de trabalho.

O modelo inaugural da Atenção Básica corresponde a situações em que o PSF vem inaugurar uma estruturação política, administrativa e técnica de organização da atenção básica no âmbito do SUS. É proposto com o objetivo de ser um elemento para estruturar e integrar a cadeia de produção de serviços de saúde em um sistema local ou regional. Tem como principal objetivo a expansão do acesso aos serviços de saúde e a inversão da base assistencial oferecida, de modo a reverter a fragmentação existente nas intervenções em saúde, a forte presença da prestação de serviços básicos pelo setor privado e/ou o fluxo migratório de pacientes para outros municípios em busca de assistência à saúde.

Já o modelo de reforço da Atenção Básica refere-se à situação de um sistema local onde a atenção básica encontra-se relativamente estruturada obedecendo a orientação do modelo de atenção tradicional. O PSF é proposto como estratégia de universalização da atenção básica, aproveitando-se das especificidades deste modo de organizar a atenção, e é dirigido para promover a cobertura assistencial em áreas e para populações que vivem sobre exclusão social e sanitária. O PSF, nesses casos, teria uma vantagem sob outros modelos que seria a integração rápida de ações simplificadas de prevenção, promoção e curativas, de modo a proporcionar uma resposta rápida sobre os baixos indicadores sociais e epidemiológicos prevalentes e a efetivação de uma expansão da cobertura assistencial. Nessa situação, o Programa conviveria com outras modalidades de organização da atenção que, por sua vez, incorporariam paulatinamente elementos técnico-operacionais previstos para o PSF como a territorialização, a adscrição de clientela, a Vigilância em Saúde, e a articulação com o PACS.

Por fim, no modelo de reestruturação da assistência à saúde, o PSF já é uma realidade e convive com outras modalidades de atenção. O sistema local já conta com uma significativa infra-estrutura e coberturas assistenciais a todas as áreas da cidade (inclusive as áreas mais pobres e de difícil acesso aos recursos sanitários). A universalização do PSF e sua proposição como um modelo reestruturante da atenção à saúde encontra motivação em alguns aspectos como: (1) a busca de uma maior capacidade resolutiva da atenção básica, assim como tornar esta atenção o direcionador e regulador dos outros níveis de atenção existentes; (2) o aprofundamento da perspectiva de integrar as ações de prevenção e promoção à saúde ao trabalho médico-curativo; (3) a necessidade de implementar reformas nos mecanismos de gerência e gestão do sistema, capazes de tornar esses mecanismos de tomada de decisão mais ágeis e mais adequados às necessidades de saúde da população e à organização dos serviços; (4) de pensar a atenção à saúde dentro de uma perspectiva de ação intersetorial, desencadeada a partir de sub-regiões que congregam demandas específicas a serem atendidas pela política social ou pelos organismos governamentais e não governamentais. Assim, o PSF passa a ser proposto como uma política de governo para a reestruturação das políticas sociais; logo, torna-se não apenas um modelo para organizar o acesso aos recursos sanitários mas um vetor de orientação e estruturação do sistema de saúde, integrado a mudanças nos mecanismos de gestão das políticas sociais.

Para tanto, é preciso levar em conta, além de tudo, a especificidade de cada região/ município (entre as quais se inclui o processo histórico de constituição daquela rede e suas particularidades próprias de organização), a divisão público-privado, a oferta de serviços (próprios ou conveniados) de média e alta complexidade do SUS, bem como as determinações oriundas do próprio espaço urbano, entre as quais se destacam os fluxos de transporte, as expectativas assistenciais e características médico-culturais da população, os vínculos preestabelecidos dos usuários com unidades e equipes do modelo tradicional, e seus padrões prévios de acesso e consumo de serviços médicos.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há um caráter prescritivo, bastante exacerbado, neste Programa. São definidos a priori os locais de atendimento: unidade básica para pacientes vulneráveis, visitas domiciliares para outros atendimentos e grupos na comunidade. Da mesma forma existe uma lista das atividades que devem ser realizadas pela equipe. Pode-se dizer, portanto, que no PSF existe uma confusão entre o que é ferramenta para diagnóstico e intervenção, e o que é resultado em saúde. Os resultados desejados são anunciados (85% dos problemas de saúde resolvidos, vínculo dos profissionais com a comunidade, etc.) e infere-se que, seguindo-se a prescrição altamente detalhada, obter-se-á o resultado anunciado. Não é muito diferente do modelo atual que infere que consultas e exames são equivalentes a soluções para os problemas de saúde.

Diante disso, na vida real dos serviços que aderem ao PSF, cabem três tipos de ações dos profissionais da equipe: ignorar as prescrições e manter a lógica atual (as diversas planilhas podem ser preenchidas de forma "criativa"); aceitar as prescrições, recapitulando os objetivos, mas mantendo o compromisso principal do serviço de saúde, não com os usuários, mas sim com novos procedimentos; e, finalmente, a equipe pode ignorar parcialmente as prescrições e dedicar-se criativamente a intervir na vida da comunidade em direção à melhoria de suas condições de vida. Esta possibilidade é mais remota, porque significa trabalhar com a consciência de que nenhuma ferramenta (apesar das promessas do PSF) pode dar conta de tudo, embora todas sejam necessárias.

Reconhecer a insuficiência das prescrições e das receitas não é tarefa simples. Um processo de trabalho, prescritivo no nível central, não contribui para este movimento dentro da equipe. A solidariedade interna da equipe, a sinergia das diversas competências, pré-requisitos para o desafio desta equipe, fica desestimulada pelo detalhamento das funções de cada profissional. Trabalhar com este limite e com a necessidade de inventar abordagens a cada caso, exige um 'luto' da onipotência de cada profissional, para que seja possível o trabalho em equipe e somem-se as competências e a criatividade de cada membro da equipe. O PSF, com seu caráter prescritivo, não contribui para a superação deste problema e pode propiciar aos profissionais assumirem a atitude que predominantemente assumem hoje: isolar-se em seus núcleos de competência.

Para remodelar a assistência à saúde, o PSF deve modificar os processos de trabalho, fazendo-os operar de forma "tecnologias leves dependentes", mesmo que para a produção do cuidado sejam necessários o uso das outras tecnologias. Portanto, pode-se concluir que a implantação do PSF por si só não significa que o modelo assistencial esteja sendo modificado. Pode haver PSFs médicos centrados, assim como outros usuários centrados. Isso vai depender de conseguir reciclar a forma de produzir o cuidado em saúde, as quais foram discutidas neste trabalho e dizem respeito aos diversos modos de agir dos profissionais em relação entre si e com os usuários.

A adesão ou a rejeição ao Programa de Saúde da Família, deve considerar que da forma como o PSF está estruturado pelo Ministério da Saúde, não lhe dá a possibilidade de se tornar de fato um dispositivo para a mudança, como é o objetivo do PSF, de acordo com o MS. Toda a discussão realizada aqui, indica que o Programa precisa se reciclar para incorporar potência transformadora, ou melhor, assumir uma configuração diferente.

REFERÊNCIAS

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____. A perda da dimensão cuidadora na produção da saúde - Uma discussão do modelo assistencial e da intervenção no seu modo de trabalhar a assistência. In Sistema Único de Saúde em Belo Horizonte - reescrevendo o público. Belo Horizonte: Xamã VMED, 1998.

Enfermeira do PSF da Prefeitura Municipal de Entre Rios-BA

Assistente Social de Saúde Pública da Prefeitura Municipal de Entre Rios-BA

Professora de Metodologia de Pesquisa do IBPEX

Passados quase doze anos desde seu início, nas 226 cidades com 100 mil habitantes ou mais, a cobertura total de população pelo PSF é incipiente -18,7%. O atendimento nas capitais é um pouco menor -17,8% (Ministério da Saúde, 2002)


Autor: Shirlei Alves


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