Bachelard, pequenos espaços de sonho para mulheres amapoulenses *



(...) Mas intuitivamente, a ambivalência bem atada revela-se por seu caráter temporal: em lugar do tempo másculo e valente que se arroja e despedaça, em lugar do tempo doce e submisso que lamenta e chora, eis o instante andrógino. O mistério poético é uma androginia. (Bachelard, 1994, p.184-85)

Para Ligia

Toda ordem é um tempo? Bem, no final do texto gostaria de voltar a essa questão, ou melhor, uma tentativa de resposta. O fato é que dias atrás eu estava muito febril, então, sem força física precisei passar uma tarde – longa por sinal – encostado numa cama. Foi quando me dei conta dos textos de Gaston Bachelard (1884-1962), filósofo e poeta francês que estavam na minha escrivaninha. Pedaços avulsos de "O direito de sonhar". Não havia me embriagado afetivamente quanto a casa. Sim, a casa em que morei na Rua das Amapoulas, bairro Mirassol. Estava tudo ali. Eu estava (estive?) na parte mais íntima do "apê" (risos meus...) esse tempo todo! Um espaço que só havia pertencido às mulheres... Algumas choravam mais, outras menos. Alguma, talvez, eu penso, amou? (ou deveria dizer amando?). Repentinamente vi-me sentado à mesa lembrando das queridas Amapoulas. Elas marcaram época. É claro que convivi com seu habitat natural. Herdei algumas coisas daquele espaço e só notei quando a felicidade foi embora e as saudades no meu peito ainda moram cá e lá... Mas eu precisava falar daqui – pois o instante da febre no quarto não passou: eu estou lá e aqui. Deverei falar dos pequeninos cantos empoleirados não-limpos. É uma flor linda, o nome é lindo. Existe por lá (talvez não exista mais) um lindo e velho guarda-roupas. Não o toco, pode desabar. Tenho medo de encontrar uma fotografia antiga e passar noites olhando. Dias de sol que aquecem aquele peculiar cheiro de mofo estampado no segredo do espaço. Naturalmente percebi que não se tratava apenas de uma intriga entre a umidade e o calor. As paredes infiltradas com água deixavam cicatrizes no cal. Certo dia, tive a nítida impressão de ver um rosto. Às vezes rindo ou soluçando. Então entendi levemente a dinâmica dos templos: são lugares guardando lugares não guardados. Talvez sejam como emanações inconscientes inundando a limitada consciência. Na poeira do tempo, são essas frações, desejos, olhares perdidos não lidos a saltarem do cosmos. Do cosmos da alma. Por isso resolvi falar de mulheres tão grandiosas, como todas elas sabem ser, mas particularmente destas ao passar por aquela velha casa nova. Antiga casa que busquei abrigo inúmeras vezes. Nova agora, quando descortino seus móveis em mudança repentina e repouso recordações verdes na memória. Agora não sou mais espírito, sou alma. Sim, agora eu percebo dois princípios tecendo o fio da vida. São ambivalentes, duas forças imensas, selvagens, doces... E como é bom esse aroma de umidade! A casa e o sótão! Estava tão claro para aquele filósofo francês! Também pudera... Pelos lindo campos do interior de seu país, em uma era sem tantas químicas e odores ininterruptos, Bachelard sentia com mais vivacidade o instinto da casa (espírito) e do sótão (alma). O cheiro do vale degladiava com a penumbra da madeira, dos livros empilhados. Tal sutileza sublime demais para ser explicada em compêndios, resenhas científicas... Pequeninas casas de aranhas dialogavam no teto. Cumprimentavam-se. De certa forma eram as sentinelas daquele espaço. Como poderíamos esquecer tantas coisas boas...? Sempre tive a certeza secundária de ser um elemento ternário: na melodia, eu estava sempre que cabia no som da harmonia feita como encaixe, mas não pertencia ao ritmo geral. Durante os instantes de febre comecei a lembrar... Era como uma nota solta. Então dotando-me desta vulnerabilidade, era como as arainhas. Agora que eu mexia em sacolas, pastas e textos antigos, lembrava dos seminários sobre Bachelard na universidade.

- Está indo embora Paulinho?

- Sim, estou, provavelmente amanhã...

- Certo, nos vemos pelo campus...

Por direito sonhávamos... Então, lembrei como seria (é) importante remexer nas velhas gavetas.

- Amor, acho que você precisa falar sobre isso...

- Pode ser, eu falo...

Referência onírica...

BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.....

 * O leitor/a necessariamente, digamos assim, não precisa entender o título.


Autor: Paulo Milhomens


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