INCONSTITUCIONALIDADE DAS CONDIÇÕES LEGAIS E JUDICIAIS DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO



SUMÁRIO: I. Introdução - II. Direito público subjetivo de liberdade - III. Condições, efeitos da condenação, ou penas acessórias? - IV. Requisitos do caput como condição genérica - V. Passado, presente e futuro.

RESUMO: As condições para a suspensão condicional do processo não podem ser idênticas às condições para a suspensão condicional da pena, nem mais gravosas, muito menos se revestir com a característica de pena restritiva de direito. Uma fórmula assim viola garantias individuais de liberdade e o princípio da legalidade, fulminando-a de inconstitucionalidade.

Palavras - chave: suspensão – condições – liberdade - restrições - ilegalidade

I – INTRODUÇÃO

São garantias constitucionais de liberdade e cidadania:

"Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal" (art. 5º, XXXIX).

"Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (art. 5º, LVII).

É antiga prescrição latina que não deve haver pena onde não há delito (poena nulla esse debet, ubi nullum delictum) e também que ninguém deve ser punido sem culpa (puniri nemo debet si nullam admisit culpam).

É certo que o legislador brasileiro tem abusado do direito de inovar e criar penas e institutos novos e indecifráveis, verdadeiros ETs dentro do sistema jurídico. São exemplos: Lei de Combate às Organizações Criminosas (nº 9.034/95), Lei de Tortura, Código de Trânsito, Lei dos Juizados Especiais Criminais, esta com seu famoso e inconstitucional art. 90, detectado de imediato pelos juristas.

Mas o ardil do legislador, ávido pela obtenção da chamada "função simbólica do Direito Penal" (cf. WILLIAM TERRA DE OLIVEIRA, "Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais" 61/5-6), às vezes anestesia o jurista e a sociedade.

Foi aí que vislumbramos e procuraremos demonstrar que as condições legais e judiciais estabelecidas nos incs. I a IV do § 1º, no § 2º e nos parágrafos 3º "in fine" (ou 2ª parte) e 4º (2.ª parte) do art. 89 da Lei nº 9.099/95, também são irremediavelmente inconstitucionais.

II - DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO DE LIBERDADE

Primeiramente, cumpre-nos concordar com o entendimento bastante claro de PAULO SÉRGIO CORNACCHIONE ("Boletim IBCCrim 59/10), no sentido de que, onde o legislador usa o verbo "poderá" (e não é uma só vez) este deve ser interpretado como poderá mesmo e não como "deverá", teimosia do jurista. De tal sorte, na leitura do art. 89 da Lei nº 9.099/95, o Ministério Público "poderá" propor a suspensão condicional do processo. Se não oferecer a proposta, certamente deverá fundamentar o entendimento, até para permitir ao interessado eventual impetração de Habeas Corpus (ou simples requerimento), se a discussão for quanto ao preenchimento dos requisitos objetivos e principalmente dos subjetivos (antecedentes, conduta, etc.).

Nestes casos em especial, DAMÁSIO DE JESUS prevê três hipóteses:

1ª) o juiz não pode aplicar a medida de ofício;

2ª) pode, desde que a defesa a requeira;

3ª) pode ser aplicada pelo juiz de ofício.

Esclarece ainda preferir a terceira posição, por igualar-se ao sursis penal que pode ser concedido de ofício ("Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada", Saraiva, 1995, pp. 92/93).

A propósito, DAMÁSIO DE JESUS admite a natureza punitiva e sancionatória do sursis penal e entende como forma de despenalização o sursis processual (idem, pp. 92/93). Neste ponto ousamos discordar do mestre DAMÁSIO porque, se as condições são as mesmas, restringindo a liberdade, então são todas de natureza punitiva, conforme explicaremos na seqüência. Afinal, se a proibição de ausentar-se da comarca tem natureza punitiva e sancionatória no instituto do sursis penal, então a mesma proibição não pode ser despenalizante no sursis processual, uma vez que se trata do mesmo contexto jurídico. Será então pena, digamos, uma pena processual, sem condenação. O acusado aceita uma pena para não ser processado. "Fiat Lux".

Direito Penal público subjetivo de liberdade é o que tem o acusado de não submeter-se às condições legais e judiciais, uma vez proposta e aceita a suspensão condicional do processo, que só poderá levar em conta os requisitos para a concessão, mas não poderá impor qualquer condição no período de prova, senão aquela de não reincidir em fato punível em tese (crime ou contravenção), na forma do § 3º, 1ª parte, e 4º, 1ª parte, do art. 89, ao nosso ver, dispositivos válidos apenas nestas partes.

III - CONDIÇÕES, EFEITOS DA CONDENAÇÃO, OU PENAS

ACESSÓRIAS?

São condições legais do sursis processual aquelas do § 2º, I a IV, do art. 89 da lei. Judiciais serão aquelas estabelecidas com fundamento no § 2º do mesmo artigo.

Mas qual a natureza jurídica das "condições" do sursis processual? Seriam mesmo condições, ou seriam efeitos da condenação, ou ainda penas acessórias?

Vamos analisar por etapas, comparando-as com as do sursis da execução penal (do CP) como segue:

1) Art. 78, § 1º do Código Penal (sursis penal): "No primeiro ano de prazo, deverá o condenado prestar serviços à comunidade (artigo 46) ou..."

O artigo trata das condições do sursis penal, logo após o artigo 77 tratar dos requisitos (e nos requisitos do sursis penal há exigências mais brandas para o condenado do que nos requisitos do sursis processual – art. 89, "caput", da Lei nº 9.099/95 - para o simples acusado, ainda inocente por reserva constitucional). E o dispositivo legal (art. 78) nos remete expressamente ao art. 46, que trata da primeira "das penas restritivas de direito".

2) Art. 78, § 2º, do mesmo código: "Se o condenado houver reparado o dano... o juiz poderá substituir a exigência... (exigência ou pena restritiva?) ... pelas seguintes condições, aplicadas cumulativamente:

a) proibição de freqüentar determinados lugares;

b) proibição de ausentar-se da comarca onde reside sem autorização do juiz;

c) comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades".

Em resumo, o parágrafo e as letras, mais o art. 79 do Código Penal, traduzem os incs. I a IV e § 2º do art. 89 da Lei nº 9.099/95. Portanto, aplica-se pena como condição de suspensão condicional do processo?

A conclusão é que a prestação de serviços à comunidade é pena restritiva de direitos que pode ser substituída por condições restritivas de liberdade (não tolhe a liberdade total, mas a restringe, impedindo de sair da comarca, por exemplo), sendo inapelável a dedução final de que as condições legais do art. 78, §§ 1º e 2º, letras a, b e c, e as judiciais do artigo 79, são todas penas restritivas de direito ou liberdade, por substituição legal, a que ousamos denominar como penas acessórias impróprias ou abstratas (porque o legislador pareceu não as querer definir como penas, embora não haja outra definição possível).

Tanto é verdade que nas remissões de CELSO DELMANTO ao art. 78 iremos encontrar: "As novas condições do sursis são mais severas do que as anteriores. Por isso, como regra, não podem ser aplicadas a fatos anteriores à reforma penal de 84" ("Código Penal Comentado", Renovar, 3ª ed., 1991).

Assim, concluímos que o legislador estabeleceu penas como condições para a suspensão condicional do processo. E permitiu ainda ao juiz estabelecer outras penas limitadoras da liberdade de ir e vir (sim, limita-se a vida livre, o que só seria possível mediante imposição de pena), inerentes ao cidadão, presumidamente um inocente constitucional.

É tão extravagante a situação criada, que ao processado se exige muito mais do que ao condenado, até nos requisitos. O sursis processual não admite outro processo em andamento ou condenação culposa ou em multa, ao acusado, de acordo com interpretação literal da lei. Já no sursis penal é cabível (segundo DAMÁSIO DE JESUS, "Direito Penal, Parte Geral", Saraiva, 1990, p. 536), se a condenação anterior for por crime culposo ou doloso apenado com multa.

Portanto, o sursis penal é menos exigente ao condenado do que o processual ao acusado, grave incongruência do legislador.

Mas se tal incongruência é admissível nos requisitos não poderá ser admitida nas condições, porque estas têm natureza punitiva e sancionatória, portanto flagrante "inconstitucionalidade".

IV - REQUISITOS DO CAPUT COMO CONDIÇÃO GENÉRICA

Os requisitos de ausência de processo ou condenação, bons antecedentes, etc., são as exigências prévias, não se podendo admitir outras não nominadas ou tidas como condição, mas que são verdadeiras penas.

Ao criar o sursis processual o legislador quis cercar-se de garantias, temeroso, e acabou se enveredando pelos caminhos da inconstitucionalidade. Não pode haver pena sem condenação. E não há que se cogitar de que estaríamos diante de garantias processuais, como prisão preventiva ou flagrante delito, porque de modo algum se vislumbra tais características no instituto em exame.

Ao condicionar a suspensão à reparação do dano, o processado, mesmo inocente, se vê "obrigado" a prosseguir no processo, porque se aceitar reparar o dano, em certos casos, estaria admitindo a culpa. Melhor seria o legislador ter deixado a questão para o juízo cível. Ao aceitar não sair da comarca ou não freqüentar determinados lugares, o cidadão vê restringida sua liberdade e sua dignidade perante a família e a comunidade: afinal, ele não é culpado. O comparecimento a Juízo para justificar "atividades" é humilhação para o inocente.

Ora, se o cidadão tem bons antecedentes, etc., não precisaria se submeter a tudo isto. Foi preciosismo do legislador. "O exercício de um direito não pode ser interpretado em desfavor de quem o exercita" (Ap. nº 1.024.065/2, Boletim IBCCrim/Jurisprudência, 53/189). Ademais, "a aceitação do benefício, não tem outro intuito do que poupar o acusado inocente dos percalços e dissabores de um processo criminal em andamento, sem produzir qualquer mácula ou registro desabonador a seu respeito" (Ap. nº 1.027.151/0, "Boletim IBCCrim/Jurisprudência, 56/109). Ora, se não pode macular ou desabonar, por que, então, poderia restringir a liberdade e obrigar à reparação do dano?

V - PASSADO, PRESENTE E FUTURO

No passado, nas Regras de Justiniano, encontramos a Lei nº 20 de Pompônio: "Sempre que seja dúbia a interpretação referente à liberdade, a favor desta deve ser o pronunciamento: Quotiens dubia interpretatio libertatis est, secundum libertatem respondendum erit" ("Brocardos Jurídicos", R. LIMONGI FRANÇA, 4ª ed., 1984, Revista dos Tribunais).

No presente, o art. XI – l, da Declaração Universal dos Direitos Humanos: "Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até [...]" (assimilada pelo § 2º, do art. 5º, da Constituição Cidadã).

No futuro, os juristas certamente dirão que são inconstitucionais as condições da suspensão condicional do processo, por punir o cidadão com restrições à liberdade, mesmo sem condenação.

WAGNER ADILSON TONINI

Delegado de Polícia e Professor da ACADEPOL/SP


Autor: Wagner Adilson Tonini


Artigos Relacionados


Diferenças Entre Sursis E Livramento Condicional

A Posição De Parte No Processo Penal - Parte (no Sentido) Formal E Parte (no Sentido) Material - Qual é A Posição Do Ministério Público?

Partes E Relação Processual Penal

Livramento Condicional

A Viagem

Resumo Histórico Sobre Os Médicos Sem Fronteiras

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri