O Lápis Quer Ser Caneta



O lápis queria, do fundo de seu grafite, ser uma caneta. Se cansara de tanto escrever, rabiscar, riscar, para que depois viesse a implacável borracha e lhe apagasse. Queria que todas suas anotações fossem tidas como sérias e que uma vez escritas, nunca seriam reformuladas. Nem borradas!

Toda vez que se colocava de lado para que a caneta, toda prepotente, fizesse uma rubrica ou passasse a limpo tudo o que ele, o lápis, tinha feito, sentia-se nada mais do que isso: uma coisa que ao tornar-se inapagável teria de abandonar sua escrita original. Não tinha outro jeito, o lápis tinha que se tornar caneta.

Estava saturado de gastar seu grafite em poemas apaixonados e fórmulas exatas. Todas as palavras que tinha delineado para dar forma literária ao amor só tinham validade quando caneta passava-lhe sobre. Tudo o que conseguia calcular precisamente, de nada valia se não fosse em azul ou preto; o cinza, perecível a borracha, de nada valia. Quando retirava-se para dormir em seu modesto penal de colegial, perguntava-se por que de tamanha má sorte, por que de ter sido fabricado como um lápis e não como uma caneta.

Não gostava de escrever isso, mas sentia inveja da caneta; ela estava sempre pronta para o que desse e viesse, vivia mais, servia mais, vendia mais, era forte em várias superfícies e mais forte que o lápis justamente nas superfícies na qual eram sua especialidade. Um caderno em branco sempre daria mais notoriedade para uma caneta; até o sistema favorecia a caneta.

E não era só isso. Olhar-se num espelho perdido na mochila era sentir ainda mais inútil por ser um lápis; não vivia sem um apontador por perto, e quando estava sendo utilizado por uma das mãos, a outra sempre segurava uma borracha. Uma condição de existência estressante, além do que, a caneta vive muito bem sem qualquer apontador, ela é independente e inapagável.

A pior crise que o lápis teve, e que foi também a primeira vez que quis ser uma caneta, foi quando sobre uma folha em branco, a serviço de um apaixonado errante, escreveu numa linha coisas sobre o amor, a paixão, o futuro brilhante e a felicidade prometida, mas um ou dois dias depois, escreveram por cima dele com caneta, sem dó nem piedade, coisas sobre ódio, desilusão, passado frustrante e uma infelicidade constante. Só depois lhe apagaram e lá ficou, forte como sempre, as letras da caneta.

Por fim, o lápis cansara-se de seu ser-objeto. No fim daquele bimestre, quando chegara o seu fim e não lhe restavam mais do que alguns poucos centímetros de vida, olhou para todas as páginas que escrevera e que foram viradas displicentemente. O que seriam de todos seus verbos passados? Estava esgotado e sem ânimo para mais nada, estava para perder a ponta.

Como ultimo ato, quis fazer as pazes com a borracha. Falou-lhe de seus dramas existenciais, e a borracha, flexível como sempre, pediu desculpas sinceras e, tentando confortar o lápis, disse-lhe que deveria estar feliz por que de tudo o que fazia, pelo menos algo era visível -ou poderia ser-, ao contrario da borracha que só fazia apagar e nunca teria notoriedade nenhuma, nunca deixaria algo 'escrito' no caderno.

Ficou pensativo. Resolveu falar com o seu próprio coveiro, o apontador. Explicou-lhe dos seus problemas e queixou-se da condição de lápis. O apontador, frio em seu misto de plastico e lâmina, só disse que o lápis era um bobo, pois todos sabiam que se queixava de boca cheia; quem era aquele que dava os primeiros passos para a construção final, mesmo que ela fosse feita pela caneta? O lápis! O apontador finalizou dizendo que ele sim tinha motivos mais verdadeiros para se queixar, pois tudo o que fazia era uma pequena participação, e rara, em qualquer texto que fosse.

O lápis ficou confuso com o que ouvira, mas ainda estava certo de sua condição. Se a borracha era triste por não deixar nada escrito, o lápis achou-se mais triste por que tudo o que deixaria escrito um dia se apagaria ou seria ofuscado por uma caneta. Se o apontador achava-se triste por deixar uma pequena atuação na obra geral, o lápis sabia que sua participação seria sempre o meio termo, o chove não molha, o escreve e apaga.

Não adiantava, o lápis cansara-se de seu grafite e de sua sempre cinzenta presença. Antes de seguir para seus centímetros finais, imaginou por aulas inteiras realizando uma escrita colorida, inapagável, última, essencialmente com o pé na eternidade e fugindo da triste história de tudo que é efêmero perante uma borracha.


Autor: César Bueno Franco


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