A Menina Azul



 

 

A MENINA AZUL

 

 

Algum tempo atrás estive a ponto de encerrar minha curta carreira de escritor.

Achei que já tinha usado todas as palavras, todas as cores, todas as notas musicais de que se precisa para esboçar uma crônica, pintar suas luzes e sombras, fazê-la dançar e flutuar diante dos sentidos atentos do leitor.

Em algumas ocasiões, usando minha mente, tinha cedido uma alma aos objetos, fazendo-os falar e agir como se fossem pessoas.

Mas durante o conto, eles se apossavam da alma emprestada e começavam a andar por conta própria, obrigando-me a correr atrás deles, tentando traze-los de volta à realidade.

Outras vezes, eram pessoas conhecidas de minha vida anterior, com as quais convivo desde sempre; e então era através de suas almas que eu contava minhas histórias (ou as deles, às vezes).

Nos ambientes, nos panoramas, na descrição minuciosa dos lugares – meus e delas – gastei todos os lápis de cor que tinha.

E tudo foi assumindo tons carregados, estranhos, inverossímeis, porque eram as poucas cores de poucos tocos de lápis que haviam sobrado na caixa.

Foi assim que desenhei a menina azul.

Teria, talvez, uns doze anos.

Magrinha, bracinhos tão finos que ao circundá-los com a mão, a ponta do meu polegar podia tocar o indicador;

Eram azuis, tal como o rosto, as mãos e as perninhas, porque o azul era a única cor que estava realmente sobrando; por sorte era um azul celeste, desmaiado. Um pouco tétrico, talvez; mas melhor que verde bílis ou amarelo hepatite.

A roupa que desenhei tornava-a parecida com uma boneca de pano, feita de retalhos de lã, de algodão, de seda, com cores apenas esboçadas, esmaecidas.

A falta de ferramentas ajuda a construir imagens mais modestas, mais suaves.

Os olhos eram apenas duas continhas, esboçadas com a ponta solta de um lápis verde escuro e ressaltavam no rosto redondo, emoldurado por um cabelinho rebelde e duas tranças ruivas, de um tom bem mais escuro que cenoura, um pouco mais escuro que cobre, quase um Tiziano assanhado, volumoso e rebelde.

Foi a cor dessas tranças, que complicou a minha vida.

Quando fui pentear os cabelinhos, dando o acabamento, a menina começou a reclamar; fiquei um pouco aborrecido, mas não me preocupei.

Há tempos, venho conversando com meus personagens, sejam desenhos, palavras ou músicas.

As figuras femininas são sempre as que mais reclamam. Encrencam com qualquer coisa, por qualquer motivo.

A menina disse só: - Não gosto da cor destes cabelos!

Eu retruquei: - Só dessa cor, ou azuis; escolha.

Ela bufou, reclamou,

- Pretos, não tem?

- Não, já disse.

- E castanho claro?

- Não.

- Então, loiros.

- Não, não! E não me aborreça, senão vou apagá-la!

- E ai, com quem você vai escrever a história?

Uma lógica que não admitia réplica; mas eu não desisti.

- Escrevo com uma esfinge, com duas pirâmides, com três bonecas mudas!

- Está bem, está bem . Não falo mais nada.

- Ainda bem.

- Mas, tinha que ser mesmo ruivo?

- Sim, ruivo. E ponto final.

- Mas...

Peguei na borracha – uma borracha enorme, que mais parecia um pneu – e ameacei

Ela calou a boca, amedrontada, mas não vencida.

Assim a menina azul ficou com os cabelos da cor que eu tinha pintado.

Depois de uma semana, estávamos ambos acostumados.

A partir desse momento, achei que seria fácil; mas a gente sabe que meninas de cabelos ruivos são geniosas, sempre sabem o que querem e não cedem facilmente.

Outra semana passou, ante de ela dar finalmente o bote.

Perguntou, de repente: -Posso ter algum amigo?

- Por quê? Perguntei, já sabendo a resposta

- Porque sozinha me aborreço

- Está bem; quem você quer? Uma mãe?

- Ah, tio. Você deve estar brincando, neh? Mãe? O que faço com uma mãe?

- Vê como fala, menina. Mãe é a coisa mais preciosa do mundo. Além de ser a pessoa que mais gosta de você, que mais se preocupa com você, que mais trabalha para você...

- Ah; você está falando de mães do antigo, que ficavam sempre em casa; e era um atrapalho, porque estava o dia inteiro com a vassoura e o pano na mão, ou com as panelas e as comidas, ou arrumando a cama, e lavando e passando roupa; e mandavam a gente fazer serviços o tempo todo. Menina, descasca as batatas; menina, passa um pano na cozinha; menina, troca as toalhas ....  Oh, chateado!

Não quis nem perder tempo para corrigir estes termos estranhos que ela usava: “do antigo”, “um atrapalho”, “que chateado”; afinal era uma boneca pintada, feita de lápis de cor, e eu não tinha pensado em mandá-la para uma escola.

- Você é uma menina impertinente, mal agradecida e malvada.

- Sei, mas eu quero uma companhia.

- Uma garota como você , então, para brincar, fazer a lição junto, aprender letras de música, experimentar roupas, xales, sapatos de salto alto, batons, penteados?

- Não. Quero um garoto!

- O quê??!! Um garoto??!!

- Sim. E tem que ser bem gato! Alto, de cabelo ruivo como o meu, (assim não me aborrece) com músculos de academia, e balanço de disk jóquei.

- Menina, você me assusta. Não pensei de ter criado uma frankensteinzinha...

- Franque o que?  Você criou uma menina normal, tio; todas as meninas normais são assim; agora agüenta, tio!

Se há uma coisa que me aborrece, é este “tio” de que os adolescentes abusam; Tio, dito por eles, é xingação; quer dizer ruína, matusalém, demente, velho caduco, e outros tantos, que nem me atrevo a repetir..

Pensando bem, posso até ser tudo isso, mas não admito que eles adivinhem minhas fraquezas. E que as comentem, descaradamente.

Resolvi ficar no jogo.

- E teu príncipe pode ser azul celeste, como você? Ou terá que ser cor-de-rosa?

Ela ficou parada, colhida de surpresa e não soube o que responder.

Aproveitei a vantagem e sugeri: vamos falar disso amanhã, está bem?

Assim terminou o primeiro round de uma luta livre, que se desenvolveria nas semanas seguintes.

De manhã, nem bem abri os olhos, a menina me chamou com sua vozinha clara.

Eu tinha esquecido aberto o caderno e ela acordou bem cedo.

- Bom dia, Tio!

- Bom dia, menina azul.

- Já pensou no meu namorado?

- Namorado? Que namorado? Está louca? Você tinha falado de um garoto, um amigo para brincar! Não disse nada de namorado!

- Ah, Tio, quanta chateza! Todos sabem que amiguinho de menina não fica amiguinho nem dois dias, se um dos dois for um pouquinho esperto!

-Ah! É assim? Então vamos fazer um arranjo. Vou lhe conseguir um belo namorado, mas eu faço também uma mãe, para ficar junto; está bem?

A menina quase chorou.

E juraria que, se os seus cabelos fossem de uma outra cor qualquer, ela teria caído na choradeira. Mas eram ruivos. Por isso se conteve, segurou as lágrimas e não moveu um único músculo.  Mas faltou pouco.

- Minha ou dele? – perguntou enfim, de supetão, depois de pensar bastante.

- Como?

- Eu perguntei: Minha, ou dele?

- O que?

- A mãe, tio. Você vai fazer minha mãe, ou a mãe dele?

Outra vez a danadinha me ameaçava com um xeque mate; peguei o rebote e me fiz de tonto.

- Por quê?

- Porque a minha mãe cuidaria só de mim, o tempo todo; mas a dele cuidaria primeiro dele e depois de mim.  E assim eu teria um pouco de folga.

- E desde quando sogra é melhor que mãe? Você é impossível, menina. Só vê o seu lado, a sua vantagem em todas as coisas.   Quer saber de uma coisa? Não quero mais falar com você, hoje. Até amanhã!.

E bati o caderno, fechando-o bem na cara dela.

Naquela mesma tarde, porém, fiquei com remorso.

Afinal, a pequena podia ser um pouco travessa, um pouco avançadinha para a sua idade, mas não falava por mal.

Não era uma dessas pestinhas, que encontramos no nosso caminho, quase todos os dias, colocadas de propósito para nos fazer tropeçar.

Assim, voltei ao quarto de estudos, abri devagar o caderno e olhei para ela. Estava dormindo, claro; como poderia estar acordada, presa num caderno fechado, no escuro, sem poder falar com ninguém?  

Pensei que deveria pintar pelo menos uma lâmpada e uma estante com alguns livros no fundo da página em que ela estava; assim, quando ela quisesse, poderia se distrair.

Ela acordou.

- Boa tarde, tio! – disse com aquela voz doce. – Vamos continuar a conversar, ou ainda está zangado comigo?

Agora, nem o tratamento de “tio” chegava a me aborrecer.

E os seus modos eram sinceros, mostravam que, mesmo não querendo demonstrar, estava arrependida do que tinha dito.

Claro que, devido aos cabelos ruivos, nunca pediria desculpas de uma forma, digamos assim, oficial.

Mas tudo indicava que ela percebera muito bem que estava errada.

E era só o que eu queria.

- Vamos conversar, menina azul; vamos bater um longo papo, porque tanto eu quanto você precisamos nos conhecer melhor.

Decidimos ambos mudar de assunto, deixando cair num esquecimento provisório  a questão da companhia, do menino, do namorado, da sogra.

Assuntos quentes, esses...

Conversamos longamente, sobre tudo o que nos vinha à cabeça; ela era insaciável; uma curiosidade sem limites, um desejo imenso de saber.

Por fim, acabou vencida pelo cansaço; deitou numa caminha tosca que eu tinha desenhado no primeiro dia; para que ficasse mais cômoda, desenhei na hora um travesseiro fofo e branco, sobre o qual apoiou a cabecinha, dando-me um último sorriso. 

Ela foi relaxando aos poucos,  afundando na caminha e adormeceu com o rostinho liso, tranqüilo, descansado; eu percebi quanta diferença há entre aqueles que foram simplesmente desenhados com um risco de lápis, e nós, esculpidos a força, no barro mágico que nos torna vivos – e sofredores.

Enquanto eles adormecem calmamente, sem pensamentos,  nós revelamos mesmo  no sono mais profundo, como pesam os fardos que nos amarguram  a vida. 

 

Peguei um lápis preto e desenhei uma lâmpada de leitura.

Dessas grandes, sabe, com pedestal e uma linda cúpula clara, quase branca.  Fácil, fazer o efeito de luz, usando só a sombra do lápis preto.

Ficou quase bonito.

Depois, fiz a estante: apenas duas prateleiras, com alguns livros inclinados, como deve ser.

Quando a menina acordou, encontrou-se diante da novidade, do meu presente e ficou radiante.

Logo quis saber os títulos dos livros, mas você sabe, nos desenhos não se chega aos pormenores.

Apenas se cria a idéia; o resto é por conta dos personagens. 

Poderiam ser contos de fadas, histórias de piratas, não sei.

A menina azul escolheu o que queria ler e assim todos os livros lhe serviram perfeitamente.

Todas as noites, daí em diante, ela escolhia um assunto e logo tinha nas mãos o livro ideal. Simples, não?

A cada dia que passava, ela aprendia um pouco mais, crescia um pouco mais, ficava um pouco mais bonita e mais alegre.

Esqueceu completamente das nossas conversas iniciais e tornou-se em breve mais madura e responsável.

Batíamos longuíssimos papos; tudo queria saber,  tudo queria conhecer.

Eu a adorava; era como uma neta; travessa e capaz, decidida e orgulhosa, com aquele caráter especial que a cabeleira ruiva lhe emprestava.

Mas o tempo passava; semanas transformaram-se em meses; e estes, em anos. Ela não poderia ficar presa naquele livro pelo resto de sua vida. 

Se fosse assim, ficaria enrugada, encolhida, seca como uma folha de outono;  e  em pouco tempo morreria.

Eu não poderia deixá-la morrer.

Era uma criaturinha que eu inventara e  uma companheira agradável, da qual, sem que ela mesma soubesse, eu aprendera muito.

Mas se eu conseguisse algum meio secreto de tirá-la daquela página, que já estava amarelando e envelhecendo, eu a perderia para sempre.

Nunca estamos prontos para perder as coisas, as pessoas, as idéias que criamos, às quais estamos presos pelos fios invisíveis do carinho, pela delicada corrente do afeto, pelo laço pesado e ainda assim agradável, do amor.

Travei comigo mesmo um longo combate, do qual sempre sairia derrotado.

Por fim, tomei coragem e fui até o fim da floresta, além do lago misterioso e dos canteiros secretos, em que florescem milhares de roseiras.

Atravessei uma parede de perfume inebriante, um chafariz de águas puras, um arco-íris de cores profundas. 

Uma grande porta de mogno abriu-se 

Só quem sofre o pesadelo de uma profunda dúvida, passa por esse portal. 

Ajoelhado, pedi uma orientação, um conselho.

Recebi o conselho, uma caixa de lápis de cor  e um mapa, para não me perder no longo caminho de volta.

Ao chegar, estava com os joelhos feridos, as mãos sangrando, espinhos profundamente enfiados na pele; mas estava feliz e pude dormir tranqüilo.

 

Na manhã seguinte, antes que a menina azul acordasse, desenhei uma rosa, na cabeceira da caminha dela. Foi a primeira coisa que ela viu.  Entendeu tudo.

Contei o que eu devia fazer e ela gostou.

Estendeu os braços, as pernas e eu fui pintando tudo com uma cor de carne, um rosado bonito, jovem, como de um modelo de Tintoretto.; depois aproximou o rosto e nele usei um tom mais quente, e um matiz rosa carregado nos lábios.

Ao soprar um fio de borracha, aproximei os lábios ao rosto dela e não pude deixar de lhe dar um beijo; apenas um beijinho insignificante; mas o rosto dela se  acendeu  como o céu ao amanhecer.

Depois, timidamente, eu quis mudar a cor dos cabelos.  Mas ela não deixou.

- Os cabelos, não, Tio! – reclamou – deixa da cor que estão! Gosto deles assim!

É assim que me sinto bem! Tenho orgulho dessa cor!

 Alegre por sentir-se livre, mas triste por me deixar, deu-me um último sorriso e saiu da página em que eu a pintara. A última coisa que vi, foi uma mecha dos seus cabelos ruivos, esvoaçando ao ar morno da primavera, virando a esquina.

Senti-me velho, cansado. Mais “tio” que nunca.

É verdade: nunca estamos prontos para deixar as “nossas” coisas; mesmo quando são apenas uns simples riscos de lápis, esboçados num velho caderno escolar.

O resto, é apenas vã fantasia.

 

 

 


Autor: Romano Dazzi


Artigos Relacionados


ReflexÃo Dos Macacos

Como Ganhar Almas

E-ducação

A Sina De Ser Mulher

Avis Rara

Planos

Amanhã Pode Ser Tarde