Da Onipotência à Violência: Consequências de uma Sociedade de Máquinas



INTRODUÇÃO

Há muito tempo a importância da interação entre seres humanos é estudada e cada vez mais percebida como fundamental. Nossa própria biologia nos impulsiona na promoção de interações sociais desde o nosso nascimento, constituindo, como bem sabemos, fator primordial à sobrevivência dos neonatos de nossa espécie; precisamos ser cuidados por outros humanos ou, muito provavelmente, pereceremos (BAUMEISTER, 1995). Entretanto, as interações entre seres humanos não são importantes apenas por nossa imaturidade biológica. É na interação com outros seres de nossa espécie que nos tornamos sujeitos, que nos definimos, que damos significados ao mundo, que vivenciamos as regras sociais, aprendemos nossas possibilidades e também nossas limitações, enfim, é nessa relação que nos constituímos como verdadeiramente humanos. Porém, muitas modificações têm ocorrido na quantidade e, sobretudo, na qualidade dessas interações nas sociedades modernas, claramente influenciadas pelas transformações culturais e tecnológicas.

O presente trabalho objetiva fazer uma discussão resumida acerca da atual conjectura das relações humanas da modernidade, visando primordialmente uma breve análise das conseqüências do esfacelamento destas para a sociedade de um modo geral; o foco é a relação entre grande redução de interações humanas, excesso de relações com máquinas e comportamento violento / intolerância. O texto fará uso de conceitos do pragmatismo e considerará sempre o indivíduo em uma perspectiva contingencial.

DISCUSSÃO

Ser um humano é ser um sujeito, e isso significa poder descrever-se a si próprio e a seus semelhantes com um vocabulário que não descreve marcas ou características físicas. Para descrever o sujeito é preciso fazer uso do vocabulário intencional, mental ou psicológico; falar de crenças, desejos, medos, expectativas, sonhos, ideais, vergonha, ódio, amor, cinismo, escrúpulos, audácia etc., coisas que só se constituem e são experimentadas por meio da linguagem, portanto da interação, da cultura, da história. (BEZERRA JÚNIOR, 1994, p.148).

Como nos mostra Costa no trecho acima, interação, cultura e história (elementos que se utilizam de uma linguagem-ação – não é vista como um meio de fazer ou expressar algo, é uma ação em si mesma (BEZERRA JÚNIOR, 1994)) não podem ser desconsiderados quando falamos no processo de tornar-se sujeito. Para nossa discussão enfatizaremos, sobretudo, os fatores interacionais e culturais. As interações que estabelecemos nos primeiros anos de vida são, obviamente, fundamentais por que garantem nossa sobrevivência, porém, essa interação deve se prolongar ao longo de nossas vivências, afinal, é por meio delas que regulamos nossos comportamentos no ambiente. O tempo todo estamos fazendo leituras dos comportamentos dos outros bem como de suas expectativas em relação aos nossos próprios comportamentos e é através dessa leitura que orientamos nossas condutas. Nesse sentido, não podemos deixar de perceber, por exemplo, o poder de comunicação das emoções humanas. Temos a capacidade de expressar com considerável destreza aquilo que sentimos (bem como de fazer essa leitura nas outras pessoas) e dessa forma dizemos qual o modo mais adequado para interagir conosco em determinadas situações e podemos fazer o mesmo com as outras pessoas e, claro está, essa capacidade determina, em grande parte, o sucesso de nossas relações (REEVE, 2006).

Não podemos esquecer que na perspectiva em que se dá nossa discussão, o homem é concebido como possuidor de uma individualidade contingente. Somos uma rede de crenças e desejos; uma rede que não se esgota em si mesma, mas que flui para trás e para diante em um processo de constante reformulação e respostas a novos estímulos, novas situações (RORTY, 1994). Nesse aspecto as interações sociais também desempenham um papel fundamental. Ora, embora sejamos contingentes, é imprescindível que haja um sistema minimamente estável para nos desenvolvermos e isso ocorre em nossas interações; em nossas relações somos sempre lembrados de como devem se dar nossa conduta independente de qual seja a "camada da teia de nossa individualidade" que esteja se manifestando. Assim, na dinâmica das relações sociais são estabelecidos "contratos" que nos dizem como devemos agir; garantem uma certa estabilidade comportamental.

Outro aspecto de grande relevância, sobretudo para os objetivos do presente texto, é o aspecto de manutenção da ordem que está sempre presente nas interações humanas. Nossas possibilidades no mundo, como já foi dito, são limitadas e é na relação com o outro que isso fica claro para cada um de nós. Aprendemos, desde cedo, que não podemos ter do outro ou do meio tudo aquilo que desejamos e/ou da forma que desejamos. Aprendemos quais são as formas de gozo a que temos direito e, também, quais são as formas adequadas de se fazer uso do mesmo.

O "modelo" descrito acima imperou por muito tempo e, grosso modo, podemos dizer que cumpriu suas funções. Na atualidade, porém, muitas modificações tem acontecido. Não que o "modelo" tenha sido superado, mas graças às acentuadas mudanças culturais que temos enfrentado, ele tem se enfraquecido e muitas modificações já podem ser vistas.

Vivemos em uma cultura altamente tecnologicista, tudo é automatizado. Assim, cada vez mais, as interações entre seres humanos estão sendo substituídas por relações com máquinas. Muitos dos serviços que outrora solicitamos que outrem nos fizesse, hoje são facilmente realizáveis por intermédio da uma máquina. Pra que contratarei um jardineiro se posso, com certa facilidade e comodidade, usar uma máquina para aparar a grama? A comodidade, agilidade, eficiência, etc. que as máquinas modernas nos oferecem são, sem dúvida, muito positivas em muitos aspectos. Todavia, parece que tudo isso é oferecido em excesso.

Temos a tendência a cobrar sempre perfeição das pessoas com as quais nos relacionamos, mesmo sabendo que isso é impossível. Sim, para elas, mas não para as máquinas. O computador nos fornece tudo o que solicitamos. Ele não impõe regras de interação como as pessoas impõem. Ele não faz julgamento de valores como as pessoas fazem. Ele não estabelece punições para comportamentos indesejados como as pessoas estabelecem. Em suma, o computador não tolhe, não restringe, não pune, ou seja, ele permite. Então, claro está, ele é incapaz de cumprir as funções que são típicas das interações humanas.

Chegamos, assim, ao ponto central de nossa discussão. Quais são as conseqüências desse novo estilo de relações da modernidade? Ora, em nossa relação com a máquina somos onipotentes: ela deve me dar tudo o que desejo (promover meu gozo) e é isso o que ela faz.Entretanto, essa forma de relação só pode se estabelecida com máquinas. Seres humanos não devem (nem são capazes) de nos fornecer tudo o que queremos. Porém, isso parece não ficar muito claro para muitos sujeitos na modernidade. Nesse sentido, a intolerância e a violência parecem ser conseqüências diretas desse fenômeno.

Uma vez que não estabeleçamos relações suficientemente eficientes para nos impor limites, promover sentimentos de regulação social bem como a percepção da existência de mecanismos de sanção em casos de comportamentos desviantes, dificilmente nos relacionaremos com o mundo de forma pacífica e tolerante. Somos pacíficos e tolerantes por que assumimos esse compromisso em nossas interações; é nelas que aprendemos que não podemos ter tudo o que queremos, que precisamos fazer negociações com os outros para obtermos a melhor forma de gozar àquilo a que temos direito. Com máquinas não aprendemos jogos de posicionamentos nem a fazer negociações (afinal não precisamos fazê-los com elas), então de que forma poderemos aprender a utilizá-los em interações humanas, ou melhor, para quê utilizá-los? Esse elementos vão então, aos poucos, sendo deixados de lado, uma vez que já não fazem mais sentido nem nos oferecem, em muitos casos, benefícios imediatos ( que é o que buscamos boa parte do tempo).

Desde muito cedo, as crianças têm acesso a video-games nos quais tudo lhe é permitido, inclusive matar, roubar, etc. e, dado que essa relação com a máquina é, em alguns casos, mas intensa do que com pessoas que deveriam promover o entendimento das regras de conduta que norteiam a vivência em sociedade, certamente prevalecerá para esta criança o entendimento (de onipotência) que ela construiu em sua relação com os jogos e o resultado disso é o aumento da agressividade e da violência (ALVES, 2002). Esse é apenas um exemplo, existem muitos outros que evidenciam as conseqüências do fenômeno em questão.

Atualmente, já existem estudos que tratam dos males causados pela tecnologia, um exemplo é o artigo "A Normose Informacional" (WEIL, 2000) no qual ele discute, entre outras coisas, os conceitos de informatose, cibernose, neurose virtual etc., todos estes constituindo estados nocivos aos seres humanos (provocando desde o isolamento, desmembramento familiar e comportamentos violentos até o desequilíbrio dos hemisférios cerebrais e a perda do contato com a realidade), mas que passaram a ser vistos de forma natural, como se não causassem conseqüências para a sociedade, ou seja, são uma normose.

Parece-me que esses fatores, em conjunto com outros, apresentam-se como uma explicação possível para a atual banalização da violência bem como para a crescente desvalorização de "princípios éticos" que outrora nortearam a nossa sociedade. Assim, precisamos lançar um olhar de estranhamento a esse fenômeno e não seguir a atual tendência de naturalização do mesmo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como discutido acima, as sociedades modernas têm passado por modificações relevantes no que se refere aos processos interacionais entre os seres humanos e, por conseqüência, novas formas de comportamento têm sido eliciadas trazendo consigo diferentes conseqüências que, em boa parte, não podemos nomear de "positivas". Acredito que precisamos avaliar essa nova perspectiva que surge; precisamos "pesar" os benefícios e malefícios que derivam desses novos mecanismos e pensar em possíveis formas de "melhoramentos" com vistas a obter as melhores respostas das tecnologias típicas de nossa sociedade sem que para isso tenhamos que nos habituar às novas regras ditadas por ela: liberdade ilimitada e esfacelamento dos mecanismos de regulação que se dão na interação humano-humano tão importantes para a manutenção do bem-estar social.

Enquanto psicólogos é imprescindível que discutamos essa temática e, sobretudo, que atuemos de forma direta sobre ela. As modificações de que tratamos estão causando grandes transformações no meio social e consequentemente na subjetividade humana, e, como este último aspecto é objeto central da ciência psicológica não podemos nos abster desse debate.

BIBLIOGRAFIA

ALVES, L. R. G. Jogos Eletrônicos e Violência: Desvendando o Imaginário dos Screenagers. Salvador, v. 11, n.18, 2002. Disponível em: < http://www.revistadafaeeba.uneb.br/anteriores/numero18.pdf#page=194> . Acesso em: 15 junho 2009.

BAUMEISTER, R. F. & LEARY, M. R. The Need to Belong: Desire for interpersonal attachments as a fundamental human motivation. Psychological Bulletin, 117, 497-529.

BEZERRA JUNIOR, B. C. Descentramento e sujeito: versões da revolução copernicana de Freud. In: COSTA, J. F. (Org.). Redescrições da psicanálise: ensaios pragmáticos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, v., p. 119-169.

REEVE, J. Natureza da Emoção: Cinco Questões Permanentes. In: REEVE, J. Motivação e Emoção. Rio de Janeiro: LTC, 2006. p. 189-204.

RORTY , R., A Contingência da Linguagem. In: RORTY, R.  Contingência, Ironia e Solidariedade, trad. port. de Nuno Ferreira da Fonseca, Lisboa : Ed. Presença, 1994.

RORTY , R., A Contingência da Individualidade. In: RORTY, R.  Contingência, Ironia e Solidariedade, trad. port. de Nuno Ferreira da Fonseca, Lisboa : Ed. Presença, 1994.

WEIL, P. Normose Informacional. Brasilia, v.29, n.2, 2000. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-19652000000200008&script=sci_arttext>. Acesso em: 15 junho 2009.


Autor: Tiago Moura


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