A Crise do Amor Romântico na Contemporaneidade



Karla Salgado Rolim Rodrigues*

Maria Inês Detsi de Andrade Santos – Dra.**

RESUMO

Pesquisa bibliográfica cujo objetivo tem como escopo uma reflexão sobre a crise do amor romântico na contemporaneidade. Para tal, adota uma perspectiva histórica juntamente com uma análise da problemática atual das relações amorosas. Discutem-se questões associadas às relações entre homens e mulheres, as quais são vistas numa nova versão social. Dividido em quatro seções, o artigo inicia-se pelo amor romântico, seguido do relacionamento na perspectiva de gênero, continua com a crise desse tipo de amor e as novas formas de amar e, enfim, ressalta as modernas formas de vínculo entre homens e mulheres e a ambigüidade desse fenômeno.

Palavras-chave: Reflexão. Contemporaneidade. Relações amorosas. Fenômeno.

ABSTRACT

Literal research whose purpose is to scope a reflection on the crisis in the contemporary romantic love. To this end, adopts a historical perspective along with an analysis of current problems of love relationships. It is a discussed issues related to relations between men and women, who are seen in a new version. Divided into four sections, the article starts by the romantic love, followed by the perspective of gender relations, the crisis continues with this kind of love and new forms of love and, finally, highlights the modern forms of relationship between men and women and the ambiguity of this phenomenon.

Key word: Reflection. Contemporary. Love relationships. Phenomenon.


A CRISE DO AMOR ROMÂNTICO NA CONTEMPORANEIDADE

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2.O amor romântico e sua especificidade histórica. 3.Relacionamento amoroso na perspectiva de gênero. 4. A crise do amor romântico e as novas formas de amar. 5. Considerações Finais. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O amor costuma ser visto como um sentimento natural, espontâneo e universal. Estudos, porém, nos esclarecem sobre sua condição histórica. Os seres humanos têm a capacidade de criar laços, demonstrar afeto, de amar. Mas o que chamamos de amor não existiu desde sempre, tampouco está presente em todos os contextos. Por ser histórico, o amor é uma construção social, e varia de forma, de significado e de valor. Assim como todas as culturas elegem suas formas de viver, de sofrer, de gozar, de morrer, também elegem suas formas de amar.

Neste artigo propõe-se a discutir questões associadas às relações entre homens e mulheres, a partir de uma pesquisa bibliográfica. Nossa análise adota uma perspectiva histórica, tomando a relação amorosa como um fenômeno social.

A pertinência dessa reflexão decorreu da observação, em nossa área profissional, e mesmo na vida cotidiana. Impulsionadas por esta experiência, permitimo-nos falar sobre a problemática das relações amorosas no contexto atual.

Por ordem metodológica, o artigo está dividido em quatro seções. Na primeira, intitulada de o amor romântico e sua especificidade histórica, discorremos sobre o modelo de amor que tem servido de referência às relações afetivas entre homens e mulheres, apontando suas raízes históricas, especificidades e implicações para a vida. Na segunda seção, relacionamento amoroso na perspectiva de gênero, procuramos refletir a respeito dos diferentes lugares e representações do masculino e do feminino no decorrer da história e sua relação com o contexto social. Na terceira, a crise do amor romântico e as novas formas de amar, tratamos dos acontecimentos ocorridos que produziram mudanças, e as novas necessidades no concernente aos papéis anteriormente inquestionáveis. Na quarta e última seção, considerações gerais, destacamos as novas formas de vínculo entre os homens e as mulheres e a ambigüidade existente nesse fenômeno da atualidade.

2O AMOR ROMÂNTICO E SUA ESPECIFICIDADE HISTÓRICA

Nas sociedades ocidentais, desde o século XVIII, o modelo de amor predominante na esfera das relações entre homens e mulheres é o "amor romântico". Antes, porém, de defini-lo falaremos brevemente sobre outras formas de amor que precederam o amor romântico, como o amor cortês e o amour passion.

Também chamado de amor de cavalaria, o amor cortês prevaleceu inicialmente no século XII, e se caracterizava por um jogo entre um homem e uma mulher. A mulher devia ser uma dama casada e o homem, um celibatário que se interessava por ela[1]. Nesta época, a mulher não dispunha livremente do seu corpo, o qual pertencia primeiramente ao seu pai e, depois, ao seu marido.

Os homens esperavam pelos favores advindos dessas damas, e tais favores eram concedidos em etapas: primeiro ela se deixava abraçar, depois se deixava beijar. Estes homens continham seus ímpetos, pois deveriam manter o controle sobre seu corpo. Desse modo, esta situação se arrastava indefinidamente. Então, o homem desejava e esperava. Seu prazer atingia o clímax neste desejo, tornando o amor cortês onírico, ou seja, um sonho. O amor cortês serviu, então, para a consolidação de uma moralidade, fundada em duas virtudes: moderação e amizade. Decididos a servir esta "amiga", os cavaleiros esqueciam de si próprios, eram fiéis, abnegados e mantinham-se a seu serviço; em síntese, tornavam-se seus vassalos.

Outro modelo de amor que precedeu o amor romântico foi o denominado amour passion. Este era caracterizado por uma urgência que colocava os amantes à parte das rotinas da vida cotidiana. O envolvimento emocional com o outro era invasivo, especificamente perturbador das relações pessoais e gerava uma propensão às opções radicais e aos sacrifícios. Por estas razões, encarado sob o ponto de vista da ordem e do dever sociais, ele era perigoso.

A qualidade do amour passion é que ele colocava à parte as instituições existentes, introduzindo nos laços emergentes a questão da liberdade e da auto-realização. Contudo, "o amor apaixonado tem sido sempre libertador, mas apenas no sentido de uma quebra da rotina e do dever" (GIDDENS,1993, p. 50).

Historicamente, o amor romântico começou a existir no século XVIII. Tal modelo de amor dá sustentação ideológica ao casamento monogâmico e à família nuclear burguesa. Ele possui pressupostos, a exemplo da complementaridade entre os gêneros, fidelidade mútua, atração sexual, reciprocidade e a intenção de constituir família e perpetuá-la.

O amor romântico utiliza-se de ideais cristãos como o altruísmo e a compaixão, e incorpora também elementos do amour passion. Apesar disso, tornou-se distinto deste. Segundo Giddens (1993), o amor romântico rompe com a sexualidade livre do amor apaixonado, embora a abarque; nele "a virtude" assume um novo sentido para ambos os sexos, não mais significando apenas inocência, mas qualidade de caráter que distingue a outra pessoa como "especial". Conforme se considera, o amor romântico gera atração instantânea ("amor à primeira vista"), um processo que torna a vida do sujeito "completa", e se coloca totalmente separado das compulsões sexuais/eróticas do amor apaixonado.

Ao longo do tempo, a idéia de uma narrativa para uma vida individual passou a ser introduzida com o estabelecimento do romance.[2] Este, cada vez mais, tornava-se individualizado com novas idéias associando amor com liberdade, considerando-os aspectos desejáveis. Nesse período, percebe-se forte cisão entre o ocorrido na esfera do privado, onde havia a experimentação e o trasbordamento dos desejos, e na esfera do público, onde o amor estava preso às regras da sociedade e ao bem do cidadão democrático e cristão.

O amor romântico quando se estabilizou como norma de conduta emocional na Europa, respondeu anseios de autonomia e felicidade pessoais inequivocamente criativos e enriquecedores. Sua íntima associação com a vida privada burguesa o transformou em um elemento de equilíbrio indispensável entre o desejo de felicidade individual e o compromisso com os ideais coletivos. (COSTA, 1998, p. 19).

De acordo com Giddens (1993), a idéia do amor romântico está relacionada a vários fatores: à criação do lar, à modificação nas relações entre pais e filhos, e à chamada "invenção da maternidade". Todos estes elementos foram integrantes do amor romântico, e afetaram as mulheres, modificando seu papel e status na família.

Ainda como afirma Giddens (1993), o período vitoriano, "repressivo" em relação à criação e interação entre pais e filhos, foi alterado e declinou o modelo patriarcal no meio doméstico, a partir do final do século XIX. Esse domínio direto do homem sobre a família, abrangente quando ele era o centro do sistema de produção, enfraqueceu com a separação entre o lar e o local de trabalho.

Da mesma forma, o controle das mulheres sobre a criação dos filhos aumentou à medida que o tamanho das famílias se reduzia, e as crianças passaram a ser identificadas como vulneráveis. Ante esta vulnerabilidade, elas precisavam de um treinamento emocional a longo prazo. Sobre o assunto, Mary Ryan (1981 apud GIDDENS, 1993, p. 53) declara que a família deslocou-se "da autoridade patriarcal para a afeição maternal".

O amor romântico era essencialmente um amor feminilizado. As idéias sobre esse amor estavam claramente associadas à subordinação da mulher ao lar e ao seu relativo isolamento do mundo exterior. Mas o desenvolvimento dessas idéias foi também uma expressão do poder das mulheres, uma asserção contraditória da autonomia diante da privação. (GIDDENS, 1993, p. 54).

Para os homens, as tensões do amor romântico eram tratadas separando-se o conforto do ambiente doméstico e da sexualidade asséptica da amante ou do sexo transgressor da prostituta. O cinismo masculino em relação ao amor romântico foi prontamente amparado por esta divisão, que não aceitava a feminilização do amor "respeitável".

Ao se referir à importância adquirida pelo amor nas sociedades ocidentais, a partir da instituição do amor romântico, Costa (1998) afirma que o amor se tornou fantasmagoricamente onipotente, onipresente e onisciente, deixando de ser um meio de acesso à felicidade para tornar-se seu atributo essencial. Segundo ele, determinados fatores podem explicar esse fenômeno, tal como a perda de interesse pela vida pública, praticamente reduzida a questões de mercado, voltando o sujeito para a vida privada, exaltando as expectativas amorosas.

Podemos também supor que a liberação e a emancipação das chamadas minorias sexuais trouxe, para muitos, a esperança de realização amorosa, aumentando, assim, o investimento afetivo do amor. Podemos, enfim, imaginar que sem a força dos meios tradicionais de doação de identidade – família, religião, pertencimento político, segurança de trabalho, apreço pela intimidade, pudor moral etc. – restou aos indivíduos a identidade amorosa, derradeiro abrigo num mundo pobre em ideais de Eu. (COSTA, 1998, p. 19-20).

Para este autor, o amor romântico não é apenas uma coleção de invenções sentimentais; é uma mistura de ilusão e realidade, de ganhos e perdas, de avanços, paradas e recuos no campo das relações humanas. E ainda como afirma, homens e mulheres se inclinam naturalmente uns para os outros tirando partido dessa inclinação para criar filhos, organizar a família e criar em seu interior o sentimento de cidadania, isto é, o casamento como modo de atenuar a lascívia que corrompia as almas; o que os poetas e pensadores do amor cortês desprezavam e julgavam desnecessário para a existência da experiência amorosa, do casamento e da família seria o lugar do apogeu do amor.

3RELACIONAMENTO AMOROSO NA PERSPECTIVA DE GÊNERO

O amor romântico tem sido o modelo mais adequado à estrutura do casamento e da família de moldes burgueses. Estas instituições, por sua vez, apresentam especificidades quanto aos papéis e atributos de gênero, definindo uma relação hierarquizada e lugares diferenciados para homens e mulheres, na família e na sociedade.

Para podermos refletir sobre o relacionamento amoroso sob a perspectiva de gênero, faremos uma breve incursão em autores que procuram explicar essa questão.

De acordo com Durham (1983 apud SANTOS, 2002, p.10),

todas as sociedades humanas conhecidas possuem uma divisão sexual do trabalho, uma diferenciação de papéis femininos e masculinos que encontram na família sua manifestação privilegiada.

Nessa divisão de tarefas ocorrem formas próprias do que deveriam ser atividades exercidas pelo masculino e pelo feminino, variando de uma sociedade para outra. Variam também concepções a respeito da maternidade e da paternidade, bem como a compreensão do público e do privado. Nas palavras de Durham (1983 apud SANTOS, 2002, p. 10),

Os mesmos aspectos universais da divisão sexual do trabalho podem estar associados a concepções que atribuem às mulheres em geral um grande apetite sexual, ou, ao contrário, uma tendência à frigidez; pode-se ver as mulheres como seres frágeis e irresponsáveis ou como confiáveis bestas de cargas; ao passo que uma sociedade as define incapazes para as atividades comerciais, outras lhes atribuem uma habilidade natural para os negócios; finalmente, varia enormemente o grau de autonomia, independência e iniciativa que lhes é permitido emsociedades diversas e atividades diferentes.

Conforme pode-se perceber, os diferentes lugares, atributos e representações do masculino e do feminino atestam a condição histórica de gênero e, portanto, sua relação com o contexto social.

Como consta em Pinheiro (1980), nas sociedades ocidentais nas quais predominava a ordem patriarcal, o que prevalecia era o mundo do homem por excelência. Crianças e mulheres não passavam de seres insignificantes e amedrontados, cuja maior aspiração eram as boas graças do patriarca. Nesse universo masculino, os filhos mais velhos também desfrutavam imensos privilégios, especialmente em relação a seus irmãos. E os homens em geral dispunham de infinitas regalias, a começar pela dupla moral vigente, que lhes permitia aventuras com criadas e ex-escravas, desde que fosse guardada certa discrição, enquanto às mulheres tudo era proibido, desde que não se destinassem à procriação. O homem que se prezasse também era bem-falante e sua oratória compunha a personalidade masculina assim como o fraque, o chapéu-coco, o cravo na lapela e o soberbo bigode. Tudo isso acompanhado de um título de doutor.

Apesar de todas as conquistas, segundo constata Santos (2002), nem mesmo as profundas mudanças sofridas pelas sociedades ocidentais, nos últimos séculos, foram capazes de modificar de forma mais radical as representações em torno do masculino e feminino. Este fato é atribuído ao papel socializador das diversas instituições sociais, por meio das práticas de normalização da conduta individual, e aos especialistas da produção simbólica, com sua definição e redefinição dos modelos e papéis de gênero.

Evidenciam-se diferenças entre o masculino e o feminino, sobretudo em termos da experiência, da criação e da educação. Estas diferenças entre as relações de gênero surgem logo no nascimento, desde a forma de educação para meninos e meninas na família, o modo de vestir, como agir, a proibição ou incentivo para jogos, brincadeiras, até as proibições quanto ao comportamento considerado inadequado a cada um dos sexos.

Entre as diferenças encontradas em relação ao masculino e ao feminino, os homens, assim como as mulheres, apaixonam-se e apaixonaram-se ao longo de todo o passado documentado de maneira distinta. Segundo Giddens (1993), os homens muito influenciados por idéias de amor foram isolados da maioria como sendo "românticos", em um sentido peculiar desse termo. Eles sucumbiram ao poder feminino e abandonaram, assim, a divisão entre mulheres imaculadas e impuras, tão central à sexualidade masculina.

Apesar disso, o romântico não tratava as mulheres como iguais. Ele era o escravo de uma mulher particular (ou de várias mulheres em seqüência) e construía sua vida em torno dela; mas sua submissão não era uma atitude de igualdade. Embora as ligações entre o amor romântico e a intimidade tenham sido suprimidas, o apaixonar-se permaneceu intimamente vinculado à idéia de acesso a mulheres cuja virtude ou reputação era protegida até que pelo menos uma união fosse santificada pelo casamento.

Vários estudiosos discutiram as relações de gênero no casamento. Ao se referir ao assunto, Luz (1982) assim se pronuncia: a imagem do modelo de casal que se estrutura no século XIX é formada pela ideologia romântica da "paixão", do amor "eterno", "verdadeiro", e se possível, "único": o casamento é para sempre, e sua sede é o lar. O casamento é um lugar de poder e hierarquia; o papel do homem provedor que tem o controle de tudo que acontece e no concernente à mulher, o "sacrifício" e a "renúncia" são virtudes associadas ao casamento, as quais, a partir de então, se desenvolvem.

Porém, como segue afirmando Luz (1982), a mulher casada vai se apropriando do seu poder por meio do papel de esposa, mãe, da gestão da casa, dos filhos (dos seus comportamentos, atitudes e mesmo sentimentos) e da afetividade.

Esse poder apropriado pela mulher somente com o casamento foi fortalecido com o ingresso dela no mercado de trabalho. Em relação às necessidades de produção, foi preciso acontecer as duas guerras mundiais para a convocação das mulheres à entrada no mercado de trabalho, antes reservado somente às proletárias. Também foi fundamental a passagem do capitalismo a uma fase monopolista marcante, quando passaram a ter mais importância a habilidade e a eficácia em oposição à força ou sexo. Além disso, o trabalho feminino possui vantagem adicional em relação ao masculino, pois mesmo com tanta ou mais produtividade que o trabalho masculino sempre foi mais barato, por ser mais desqualificado. Desqualificação essa considerada política por servir às políticas de gestão do trabalho industrial pelo capital desde o início do século XIX.(LUZ, 1982).

Luz (1982) afirma ainda o seguinte: após a guerra houve um movimento de "não retorno aos lares", levando as mulheres de todas as classes a invadir o domínio público, antes reservado exclusivamente aos homens. Com a penetração da mulher no domínio público, ocorreram repercussões políticas, tanto no lar (privado), como no Estado (público). Desse modo, houve o desequilíbrio da situação anterior, pois antes o homem "comandava" o lar porque o sustentava, embora não tivesse a gestão deste. A mulher passou a sustentar o lar, também no intuito de dividir o comando.

Não apenas as questões econômicas provocaram essa situação, mas mudaram as condições políticas do final do século XIX em diante. Os direitos da cidadania se ampliaram, as lutas operárias levaram a um conjunto de conquistas a nível das relações de produção e representação partidária, na maioria dos países capitalistas. (LUZ, 1982, p. 8).

4 A CRISE DO AMOR ROMÂNTICO E AS NOVAS FORMAS DE AMAR

No final do século XIX, início do século XX, as mulheres começaram a questionar seus próprios direitos, como o direito de cidadania e a questão da igualdade no trabalho/salário. Aqui surge o movimento feminista e sua luta pelo direito a voto, instrução, regulamentação do trabalho feminino, pela fundação de creches, etc. (LUZ, 1982).

Até então, não havia questionamento no referente ao lar, à maternidade, ao casamento e às relações homem-mulher. Somente no início dos anos cinqüenta é que as mulheres começaram a rever as instituições do "lar" e da "maternidade" nas sociedades capitalistas. Elas passaram a exigir o divórcio, a legalização do aborto, a utilização de contraceptivos e a liberdade para ter relações independentemente do casamento (LUZ, 1982).

Nos últimos trinta anos, com esses novos acontecimentos, as mulheres passaram a estudar nas universidades, a trabalhar. Portanto, não dependem mais exclusivamente do homem para sobreviver. Elas começaram a ter um comportamento de desafio e de competição diante do homem, contraditoriamente mesclado com a submissão. Diante desta nova realidade, as relações entre homem e mulher começaram a entrar em crise, gerando um tipo de "implosão" no lar.

Perdendo funções econômicas e políticas reais, o lar, a família, o casamento e a maternidade passam a ter funções mais ideológicas: de "imagens" de homem e de mulher, e de suas relações, que não mais se sustentam no nível da estrutura social. As relações entre homem e mulher entram em crise. Surgem novas formas de relações, tentativas de se romper este impasse. (LUZ, 1982, p. 10).

Em reforço a estas palavras, segundo a autora, neste período, o surgimento dessas novas características no comportamento e nas atitudes das mulheres, freqüentemente naquelas que trabalhavam fora, ocasionou uma mudança significativa na vida, no referente ao casamento, à maternidade, incluindo as relações homem - mulher. A justificativa seria o fato de essas mulheres estarem inseridas no mercado, saindo de casa para "complementar" a renda da família, ajudando no sustento dos filhos, irmãos, pais e maridos, sobretudo quando estes, se encontravam desempregados.

Desse modo, as mulheres assumem dupla jornada de trabalho (na produção e no lar), acrescida com os estudos, a "terceira jornada". Ante tais mudanças, os homens se sentem ameaçados, particularmente com tamanha gana dessas mulheres diante da nova realidade.

Essas mulheres, então, começam a buscar no companheiro o apoio do qual necessitam para continuar seu desenvolvimento. Elas querem encontrar na relação a amizade, a divisão de algumas tarefas, pois agora já sabem, até pelos meios de comunicação de massa, que podem fazer parte da sociedade de consumo, que o marido pode também ser o amante. Portanto, elas buscam o prazer e querem ser apreciadas, valorizadas e respeitadas.

Nesta nova realidade, o papel de mãe dos filhos e do marido não é mais suficiente e satisfatório. Como não encontram a reciprocidade e o apoio pretendidos, começam a buscar outros pares fora do lar. Com o aumento da insatisfação, vem o divórcio, o desquite, a separação. Muitas vezes, como adverte Luz (1982), o próprio homem procura nos "casos" uma satisfação para a situação de inferioridade vivida no lar.

Prossegue a autora: assim como as mulheres, os homens também passaram por um casamento de "amor de juventude", se encaminhando para o propósito de construção de um lar e de uma família. Apesar de aceitarem a modernização, na maioria das vezes acabam cobrando da mulher uma supereficiência: esta, ao mesmo tempo em que deve responder aos novos papéis, deve também preencher satisfatoriamente os antigos (mãe, dona de casa, "esposa", administradora do lar, etc.).

Em relação às novas tarefas desempenhadas pelas mulheres na vida pública, os homens acabam tendo uma atitude competitiva com suas companheiras, como se fossem ameaçados no seu campo há muito tempo dominado somente por eles. E também adotam racionalmente uma atitude de "liberação de costumes", pois pensam estarem prontos para admitir novas experiências sexuais de suas companheiras. Com esses elementos contraditórios num mesmo casal, percebe-se a fragilidade da situação (LUZ, 1982).

Diante de todas essas contradições, como Luz (1982) declara, as mulheres se sentem sufocadas, impedidas de desenvolver suas potencialidades de ser e atuar, e quando não conseguem mais sustentar a situação explodem. Tal reação é imprevista para os homens e definitiva para as mulheres, que questionam não só a estrutura do lar, mas a própria existência do homem como macho e ser humano. E no momento da dissolução do casamento, da perda da posse dos filhos (quando os tem), da mulher e de todos os projetos em termos afetivos, este homem, às vezes, começa a pensar, a rever sua vida.

Com o tempo, esses homens que passaram a morar sozinhos, que aprenderam a bastar-se a si mesmos, a cuidar da própria roupa, a decorar sua casa, relutam em assumir um relacionamento estável com outra mulher, embora não tenham perdido a esperança de constituir um novo lar. Agora buscam não apenas a companheira-mãe, mas a companheira-amiga-amante.

Ao conceituar o termo "relacionamento", Giddens (1993) o define como um vínculo emocional próximo e continuado com outra pessoa. Conforme afirma, esse termo somente chegou ao uso geral em uma época relativamente recente. Ele utiliza, então, o termo "relacionamento puro" para referir-se a uma situação na qual se entra em uma relação social apenas pela própria relação, pelo que pode ser derivado por cada pessoa da manutenção de uma associação com outra, e que só continua enquanto ambas as partes considerarem que extraem dela satisfações suficientes para permanecerem.

E diz que para a maior parte da população sexualmente "normal", o casamento costumava ser desvinculado da sexualidade. Mas, atualmente, estes dois elementos estão cada vez mais vinculados, por meio do relacionamento puro. Esse novo tipo de relacionamento é parte de uma reestruturação genérica da intimidade. Como ressalta o autor, a idéia do amor romântico ajudou a abrir um caminho para a formação de relacionamentos puros no domínio da sexualidade. A citação a seguir confirma estas palavras:

O relacionamento puro tende a ser, nos dias de hoje, a forma predominante de convívio humano, na qual se entra "pelo que cada um pode ganhar" e se continua apenas enquanto ambas as partes imaginem que estão proporcionando a cada uma, satisfações suficientes para permanecerem na relação. (BAUMAN, 2004, p. 111).

De acordo com Giddens (1993), atualmente, os ideais de amor romântico tendem a fragmentar-se sob a pressão da emancipação e da autonomia sexual feminina. O conflito entre a idéia do amor romântico e o relacionamento puro assume várias formas, cada uma delas tendendo a tornar-se cada vez mais revelada à visão geral como resultado da crescente reflexividade institucional[3]. O amor romântico depende da identificação projetiva[4] do amour passion, como o processo pelo qual os parceiros potenciais tornam-se atraídos, e então unem-se. Essa projeção cria uma totalidade com o outro, intensificada pela diferença entre o masculino e o feminino. Ao mesmo tempo, a identificação projetiva vai contra o desenvolvimento de um relacionamento cuja continuação depende da intimidade.

Mas a abertura de um parceiro em relação ao outro é a condição para o exercício de um novo modelo de amor, denominado por Giddens (1993) de amor confluente, considerado, de algum modo, o oposto da identificação projetiva, mesmo que tal identificação, algumas vezes, estabeleça um caminho até ele. Como o amor confluente é um amor ativo, contingente, entra em choque com as categorias "para sempre" e "único", presentes na idéia do amor romântico.

A "sociedade separada e divorciada" dos dias de hoje, aparece aqui mais como um efeito da emergência do amor confluente do que como sua causa. Quanto mais o amor confluente constitui-se em uma possibilidade real, mais se afasta da busca da "pessoa especial" e o que mais conta é o "relacionamento especial" (GIDDENS, 1993).

O amor confluente presume igualdade na doação e no recebimento emocionais, e quanto mais for assim, o laço amoroso mais se aproxima do modelo do relacionamento puro. Desse modo, o amor somente se desenvolve até o ponto em que se desenvolve a intimidade, até o ponto em que cada parceiro está preparado para manifestar preocupações e necessidades em relação ao outro e está vulnerável a esse outro.

Conforme percebe-se, a dependência emocional, mascarada, dos homens tem aumentado sua propensão e sua capacidade para se tornarem vulneráveis, resquícios sustentados pelo ethos do amor romântico. Porém, com o surgimento do amor confluente, é imprescindível a dissolução dessas características masculinas.

Como ressalta Giddens (1993), o reconhecimento da vulnerabilidade emocional masculina tornou-se evidente a partir do momento em que a proposta dessa nova forma de amar passou a exigir uma manifestação clara das necessidades do homem e da mulher, na relação, vindo à tona o que antes não era explicitado.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao discutirmos a crise do amor na contemporaneidade, percorremos um caminho histórico, desde o amor romântico ao relacionamento amoroso na perspectiva de gênero; passamos pela crise do amor romântico, com suas variadas versões, até chegarmos às novas formas de vínculo entre os homens e as mulheres e a ambigüidade hoje existente nesse fenômeno.

Nestas considerações gerais, discutiremos sinteticamente estas novas formas de vínculo entre homens e mulheres como expressão atual do fenômeno. Para isto nos valeremos de Salem (1987), o qual, em sua pesquisa sobre as novas formas de se relacionar, destaca uma modalidade ideal de relação conjugal que começa a adquirir forma na atualidade, por ela designada de casal igualitário. A idéia é de uma parceria composta de duas unidades fundadas em elos subjetivos e não de injunções sociais ou laços sociológicos. Tal qualidade manifesta-se, primeiramente, na crença segundo a qual o casal não deriva sua realidade dos grupos a que cada cônjuge pertence. Ao invés, esta é instituída pelo desejo dos sujeitos.

Neste caso, o laço conjugal é entendido como suficientemente forte e auto-referido a ponto de isolar a parceria no campo das relações familiares, remetendo para a pressuposição de que essa parceria deve estar dotada de uma identidade interna mais forte do que aquela que vincula cada um dos seus membros aos respectivos núcleos de origem. O casal percebe-se como fundado em um vínculo afetivo e psicológico. Tudo se passa como se os parceiros, como unidade, transpusessem o reino do parentesco e ingressassem em um domínio onde só prevalecessem relações de escolha.

Complementarmente Salem (1987) afirma ser o vínculo marital tido como mais fundamental e estreito que qualquer outro. Num universo onde o dispositivo da escolha ou do desejo desponta como chave, o valor imputado aos laços conjugais suplanta os de sangue. Esse vínculo afetivo também pressupõe algo mais que relações de amizade: o companheirismo é qualidade necessária, mas não suficiente para a constituição do casal, o qual ainda prescreve exclusividade em algum plano.

O sentido de completude atribuído à união marital impregna os casais ditos modernos, e sua maior propensão a desfazer casamentos (e a buscar outros, note-se bem) não contradita, mas, pelo contrário, reitera a incessante busca da completude. Como sugere o autor, é precisamente na incansável perseguição desse ideal que se fundamenta sua vulnerabilidade: o casal converte-se em uma unidade tão sobrecarregada de sentidos e de expectativas que não é de todo surpreendente estar nele a alta probabilidade de implosão.

Além disso, de acordo com Salem (1987), o estreitamento das fronteiras entre o feminino e o masculino anuncia-se, ainda, na maneira coincidente como ambos os gêneros lidam com a questão dos sentimentos. E prossegue: se consentirmos que o feminino está usualmente associado à emoção e à expressão desta, a conclusão por uma "feminização do masculino" não é improcedente. Efetivamente, a externalização dos sentimentos por parte dos homens, mais do que legítima, tem ultimamente se constituído em um dever moral, e uma tendência a vasculhar-se mostra-se tão intensa neles quanto em suas parceiras.

Ao transpormos essas idéias para o plano da questão de gênero, devemos ter em mente que o valor da igualdade não postula serem homem e mulher substancialmente iguais. Ele postula, antes, uma ambigüidade dos seus atributos, bem como dos seus respectivos domínios. Decorre exatamente dessa indiferenciação valorativa do feminino e do masculino o encorajamento para que cada gênero ingresse e experimente, concreta ou simbolicamente, o universo, e até mesmo, eventualmente, a identidade do outro (SALEM,1987).

Ressalta este autor a existência de um movimento de simbiose e de individualização na relação. Neste ponto reside o grande dilema, senão paradoxo, do casal igualitário. As mazelas da simbiose ou da paixão tematizam a questão de como garantir a formação de uma unidade sem que os sujeitos se diluam na fusão total. Se houver a capacidade de desfazer a "simbiose", ou seja, a unidade dada e "natural", o casal igualitário enfrenta o desafio de instaurar uma configuração na qual o preceito da "individualização" é inclusive afirmado como requisitopara a preservação da unidade como tal.

Mais ainda: a expectativa de um máximo de fragmentação convive, no limite, com a expectativa de um máximo de junção.Não obstante, reside aí o maior embaraço desse projeto: o limite entre, de um lado, respeitar o movimento do outro, suas diferenças e singularidades e, de outro, continuar a concebê-lo como par é, por vezes, demasiadamente tênue.

O principal dilema do casal igualitário já dessimbiotizado consiste, em suma, em sondar a magnífica medida dos movimentos de individualização dos parceiros de tal modo que eles não redundem na fragmentação da unidade. Isto é, o indivíduo deve ver saciado seu anseio de singularização e de não englobamento pelo outro e, ao mesmo tempo, deve continuar a se reconhecer na exigência de uma vida compartilhada e de uma existência comum. Em uma palavra, o desafio é o de, como casal, ser dois e simultaneamente um só. Essa questão parece constituir seu grande tema e seu maior dilema. Ainda como afirma Salem (1987), o maior desafio sobre essa modalidade de parceria é o de construir uma "unidade com dois".

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade das relações humanas.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

BÉDIER, Joseph. O romance de Tristão e Isolda. Tradução de Luís Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

COSTA, Jurandir Freire, Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico.Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas.São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.

GRUPO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA FFC.Modernidade e reflexividade:uma leitura da obra de Anthony Giddens. Revista de Iniciação Científica da FFC (Faculdade de Filosofia e Ciências), Marília - SP, v.4, n.1, 2004.

LUZ, Madel Therezinha. O lar e a maternidade: instituições políticas. In: ______. O lugar da mulher. Rio de Janeiro: Gral, 1982.

PINHEIRO, Paulo Sérgio. Coleção nosso século. São Paulo: Abril Cultural, v. 1, 1980.

ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

SALEM, Tânia. O casal igualitário:princípios e impasses. Revista Brasileira de Ciência Sociais. Rio de Janeiro. V. 9, nº 3, 1987.

SANTOS, Maria Inês Detsi de Andrade. O pensar e o agir como possibilidades de desconstrução dos sujeitos "gendrados". Revista de Humanidades, v. 17, n. 1, p. 1-73, jan./jul. 2002.




Autor: Karla Rolim


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