Contratos Administrativos e a ilegalidade da aplicação retroativa do Acórdão 327/2007



Contratos Administrativos e a ilegalidade da aplicação retroativa do Acórdão 327/2007, do TCU que fixou novos parâmetros para a verificação da composição do BDI/LDI, nas contratações para execução de obras e prestação de serviços pela Administração Pública

Resumo. Pretende o presente artigo analisar a pretensão pela Administração Pública em alterar contratos administrativos firmados anteriormente ao O Acórdão 327/2007 do Tribunal de Contas da União – TCU que teve como objetivo propor critérios/parâmetros de aceitabilidade para o LDI - Lucro e Despesas Indiretas, também denominado BDI - Bonificação e Despesas Indiretas ou Benefícios e Despesas Indiretas em obras de implantação de linhas de transmissão de energia elétrica. Desta forma serão verificadas questões do direito intertemporal, mais especificamente sobre a irretroatividade da lei e das interpretações administrativas bem como o princípio da segurança jurídica e a preservação da coisa julgada, do ato jurídico perfeito e do direito adquirido que dão sustentação à defesa da Sociedade Empresária para não aceitação da glosa de percentuais constantes na planilha de composição de preços apresentada na licitação, referentes aos insumos relativos ao IRPJ e à CSLL. Palavras-chave: Contrato Administrativo, irretroatividade da lei, interpretação administrativa, segurança jurídica

1. DO CONTEÚDO DO ACÓRDÃO 327/2007 DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO.

Recentemente, após a decisão proferida pelo acórdão em questão, vem às Sociedades Empresárias compelidas a aceitar alteração dos contratos firmados com a Administração Pública, que pretende glosar da composição do BDI/LDI, apresentada quando de sua participação na licitação, de verbas referentes aos percentuais do IRPJ e da CSLL. Acrescenta-se que em certos casos a Administração Pública tem pretendido inclusive a devolução de parcelas recebidas, cujas medições pagamentos foram efetuadas com base no BDI composto destes percentuais.

No acórdão 327/2007, que teve como objetivo propor critérios/parâmetros de aceitabilidade para o LDI - Lucro e Despesas Indiretas, também denominado BDI(1) - Bonificação e Despesas Indiretas ou Benefícios e Despesas Indiretas em obras de implantação de linhas de transmissão de energia elétrica no qual concluíram os Ministros do Tribunal de Contas da União especificamente sobre o tema em análise:

9.1. orientar as unidades técnicas do Tribunal que, quando dos trabalhos de fiscalização em obras públicas, passem a utilizar como referenciais as seguintes premissas acerca dos componentes de Lucros e Despesas Indiretas - LDI:

9.1.1. os tributos IRPJ e CSLL não devem integrar o cálculo do LDI, nem tampouco a planilha de custo direto, por se constituírem em tributos de natureza direta e personalística, que oneram pessoalmente o contratado, não devendo ser repassado à contratante;

É necessário recordar que o Acórdão é a manifestação de um órgão colegiado que externa um posicionamento argumentado sobre a aplicabilidade de determinado direito a uma situação fática específica.

2. DA IRRETROATIVIDADE DA LEI NO DIREITO PÁTRIO.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no seu art. 5º, XXXVI, preconiza: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada."

O ato jurídico perfeito e a coisa julgada, são elementos criadores de direito adquirido. Entende-se por direito adquirido aquele que já se incorporou ao patrimônio de seu titular, em face da ocorrência de fato idôneo que produziu a conseqüência da norma vigente ao tempo desse fato, de modo que nem lei nova, fato posterior ou nova interpretação diversa da anterior possam alterar tal situação jurídica.

Assim lecionou o jurista Francisco Campos:

O princípio da irretroatividade é indispensável à segurança das relações jurídicas, e, portanto, da sociedade, cuja organização se baseia no direito [...] Se a retroatividade fosse proclamada como regra, o direito deixaria de ser um fato de organização social, para tornar-se em um elemento de incerteza, confusão e anarquia. O mundo jurídico, que é essencialmente o mundo da segurança e da ordem, se baseia, além do postulado da justiça, nos dois postulados da certeza e da duração. [1] (Grifamos).

A respeito as seguintes manifestações do Ministro do STF José Carlos Moreira Alves, na Representação 1.451-DF (pub. In RTJ 127/789-809) e da ADIn nº 493-0-DF (pub. In RT 690/176-690), respectivamente:

Aliás, no Brasil, sendo o princípio do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada de natureza constitucional, sem qualquer exceção a qualquer espécie de legislação ordinária, não tem sentido a afirmação de muitos - apegados ao direito de países em que o preceito é de origem meramente legal – de que as leis de ordem pública se aplicam de imediato, alcançando os efeitos futuros do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada, e isso porque, se alteram os efeitos, é óbvio que se está introduzindo modificação na causa, o que é vedado constitucionalmente.

No direito brasileiro, o princípio do respeito ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido é de natureza constitucional, e não excepciona de sua observância por parte do legislador lei infraconstitucional de qualquer espécie, inclusive de ordem pública, ao contrário do que sucede em países como a França, em que esse princípio é estabelecido em lei ordinária, e, conseqüentemente, não obriga o legislador (que pode afastá-lo em lei ordinária posterior), mas apenas o juiz, que, no entanto, em se tratando de lei ordinária de ordem pública, pode aplicá-lo, no entender de muitos, retroativamente, ainda que ela silencie a esse respeito.

Destaca-se ainda o Informativo STF nº 57, que trouxe a seguinte decisão de nossa Corte Constitucional no que tange ao direito adquirido e à retroatividade:

Enquanto garantia do indivíduo contra o Estado, a regra que assegura a intangibilidade do direito adquirido e do ato jurídico perfeito (CF, art. 5º, XXXVI) não impede o Estado de dispor retroativamente, mediante lei ou simples decreto, em benefício do particular. Com base nesse entendimento, a (1ª) Turma confirmou acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que, fundado em decreto do Executivo local (Dec. 10.349/87), determinara a correção monetária do valor de contrato firmado com a Administração em dezembro de 1986, a despeito da inexistência de cláusula de reajuste. RE 184.099-DF, Rel. Min. Octávio Gallotti, 10.12.96.

O mesmo Tribunal também ementou:

EMENTA. [...] o dispositivo ora impugnado, ao declarar a ineficácia retroativa da criação do Conselho Estadual [...] também viola, diretamente, o inciso XXXVI do artigo 5º da mesma Carta Magna, o qual veda a retroatividade que alcance direito adquirido e ato jurídico perfeito, vedação a que estão sujeitas também as normas constitucionais estaduais. (STF, Tribunal Pleno, ADI n.º 596/RJ, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 07.05.1993)

Diante de um raciocínio lógico é fácil constatar-se que não é compatível com o Direito a possibilidade de vigência retroativa da lei. A lei espelha a vontade da sociedade, desta forma aplicam-se seus fundamentos enquanto vigente e quando é aprovada nova lei versando sobre a mesma matéria pode-se concluir que ouve alteração na vontade da sociedade e que somente a partir daquele momento poderá a nova lei ser aplicada.

E não poderia ser de outra forma, pois um dos objetivos do Direito é o de garantir a "segurança jurídica", posto que disciplina as relações de forma a possibilitar uma previsibilidade em relação a circunstâncias futuras, o que efetivamente não ocorreria caso pudesse uma norma retroagir.

3 DA IRRETROATIVIDADE DA NOVA INTERPETRATAÇÃO ADMINISTRATIVA.

A regra da irretroatividade de "critério jurídico", ou seja, de interpretação ou orientação no que tange a aplicação da lei material, se encontra expressa na Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que trata do processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal:

Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

[...]

XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.

Sobre a referida lei assim manifestou o Min. do STJ, Humberto Gomes de Barros:

certamente um dos mais importantes instrumentos de controle do relacionamento entre Administração e Cidadania. Seus dispositivos trouxeram para nosso Direito Administrativo o devido processo legal. Não é exagero dizer que a Lei nº 9.784/99 instaurou, no Brasil, o verdadeiro Estado de Direito. [2]

Os professores Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, ensinam:

Outro cuidado que se exige da decisão assenta-se no art. 2º, XIII, da Lei n.º 9.784, de 1999: nova interpretação administrativa da norma que baliza a relação subjacente ao litígio ou à postulação não pode ser aplicada retroativamente. Efetivamente, constituiria vulneração insuportável ao princípio da segurança jurídica (dentre outros) permitir, por exemplo, desconstituição, invalidação ou modificação coercitiva das relações jurídicas regularmente constituídas, ao sabor do vento das alterações de critério para entendimento do Direito implicado. [3] .

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, comenta a introdução do dispositivo em comento na referida norma legal:

Como participante da Comissão de juristas que elaborou o anteprojeto de que resultou essa lei, permito-me afirmar que o objetivo da inclusão desse dispositivo foi o de vedar a aplicação retroativa de nova interpretação de lei no âmbito da Administração Pública. Essa idéia ficou expressa no parágrafo único, inciso XIII, do artigo 2º, quando impõe, entre os critérios a serem observados, "interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação".

O princípio se justifica pelo fato de ser comum, na esfera administrativa, haver mudança de interpretação de determinadas normas legais, com a conseqüente mudança de orientação, em caráter normativo, afetando situações já reconhecidas e consolidadas na vigência de orientação anterior. Essa possibilidade de mudança de orientação é inevitável, porém gera insegurança jurídica, pois os interessados nunca sabem quando a sua situação será passível de contestação pela própria Administração Pública. Daí a regra que veda a aplicação retroativa.

 

[...]

Isto não significa que a interpretação da lei não possa mudar; ela freqüentemente muda como decorrência e imposição da própria evolução do direito. O que não é possível é fazê-la retroagir a casos já decididos com base em interpretação anterior, considerada válida diante das circunstâncias do momento em que foi adotada.[4]

Em síntese, a nova interpretação administrativa não pode prescrever condutas obrigacionais pretéritas, em homenagem ao interesse maior protegido, necessitando que uma vez fixados os direitos e os deveres da relação que criou obrigações recíprocas, as partes possam regular sua conduta patrimonial em função do vínculo estabelecido, não podendo ficar expostas às surpresas de novas interpretações.

Se a proposta da então licitante foi verificada, analisada e aceita pela Administração, dela originando o contrato, naquelas condições inclusive quanto ao preço, não cabe neste momento, sob pena de subversão aos princípios da irretroatividade da lei e das interpretações administrativas, bem como ao que se refere à segurança jurídica, vir a Administração alterar a forma de remuneração do contrato, sob pena de causar prejuízo, ou diminuir o lucro que a contratada, vencedora da licitação, vislumbrou e que com certeza assumiu compromissos dentro de sua margem de segurança e risco.

Ainda na vigência do DL 2.300/86 Hely Lopes Meirelles destacou a primazia dada à melhor proposta, à proposta de melhor preço, à proposta mais vantajosa:

Classificação das propostas – Satisfazendo as exigências formais do edital, e sendo exeqüíveis, as propostas serão julgadas e classificadas pelo seu mérito, segundo as vantagens que apresentem para o serviço público. Esse julgamento há que ser feito por critérios técnicos e objetivos previamente estabelecidos pela Administração no edital ou convite, de modo a conduzir os julgadores a uma escolha honesta e imparcial da proposta mais vantajosa (Estatuto, art. 37).

Proposta mais vantajosa é a que melhor atende ao interesse do serviço público. Nem sempre será a de menor preço, pois este fator, que já fora decisivo no sistema anterior, cedeu lugar para as vantagens da qualidade e rendimento no regime do Decreto-Lei 200/67, mantido pelo atual do Decreto-Lei 2.300/86 (art. 36). A proposta mais vantajosa será, portanto, aquela que melhor servir aos objetivos da Administração, dentro do critério de julgamento preestabelecido no edital.[5]

4. DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA

A consideração da presunção de legitimidade e veracidade de que gozam os atos administrativos geram uma aparência de regularidade, na qual os administrados confiam e pela qual orientam seus atos. Do contrário, restaria uma constante relação de desconfiança acerca das diretrizes traçadas pela Administração por meio de seus atos, o que ocasionaria uma situação de insegurança e incerteza que vai de encontro ao princípio da segurança jurídica. Um dos interesses fundamentais do direito é a estabilidade das relações constituídas, é a pacificação dos vínculos estabelecidos a fim de que seja preservada a ordem pública.

Este princípio como ensinam os doutrinadores é uma das vigas mestras do Estado de Direito ao lado do princípio da legalidade. Neste sentido leciona o professor português José Joaquim Gomes Canotilho:

Os princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica podem formular-se assim: o cidadão deve poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre seus direitos, posições jurídicas e relações, praticados de acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligam os efeitos jurídicos duradouros, previstos ou calculados com base nessas normas. [6]

Assim, ganham relevo aqui as palavras de Hely Lopes Meirelles, quando disse:

a mudança de interpretação da norma ou da orientação administrativa não autoriza a anulação dos atos anteriores praticados, pois tal circunstância não caracteriza ilegalidade, mas simples alteração de critério da Administração, incapaz de invalidar situações jurídicas regularmente constituídas.[7]

Como a lei deve respeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, por decorrência da aplicação cogente do princípio da segurança jurídica não se afigura admissível que o administrado tenha seus direitos flutuando ao sabor de interpretações jurídicas variáveis no tempo.

Nessa esteira o seguinte aresto, da lavra do Desembargador Sérgio Pitombo:

De fato o ordenamento jurídico impõe limites à prerrogativa da Administração Pública rever e modificar ou invalidar seus atos. Um desses limites, fundado no princípio da boa-fé e da segurança jurídica, reside na mudança da orientação normativa interna ou jurisprudencial. Assim é que a alteração da orientação da Administração, no âmbito interno ou em decorrência de jurisprudência, não autoriza a revisão e invalidação dos atos que, de boa-fé, tenham sido praticados sob a égide de orientação então vigente, os quais, por assim dizer, geram direitos adquiridos. [8] (Grifos do original).

Portanto pretender alterar situação jurídica consolidada e observada reciprocamente pelas partes durante a execução parcial do contrato, tendo as obrigações adimplidas naqueles termos, não se deve temerariamente, passar a inobservá-las em virtude de novas interpretações jurídicas, administrativas ou jurisprudenciais, quando estas à época julgaram perfeita a assinatura do ajuste naquelas condições.

5. CONCLUSÃO

Conclui-se que se por um lado a Administração, para o devido atendimento a suas finalidades precípuas, é revestida de poderes e prerrogativas próprias e se relaciona com o administrado em posição de exercer seu ius imperium, e fixar cláusulas exorbitantes, que lhe oferecem privilégios, por outro lado é igualmente verdade que tal poder deve ser mitigado pelos direitos fundamentais dos administrados, que ela não pode desrespeitar, sob pena nulidade insanável de sua atuação. Dentre os princípios garantidores do Estado Democrático de Direito que necessariamente informam os atos da Administração Pública, o princípio da segurança jurídica ocupa lugar destacado na necessidade de estabilidade nas relações sociais.

Assim, a decadência, que no seio do processo administrativo atua como freio do poder de autotutela da Administração é de aplicação cogente mormente se conjugada à boa-fé do administrado.

Desta forma é imperioso que a Administração Pública preserve os atos praticados, nos termos da interpretação que se tinha quando do julgamento das propostas, quando todos os licitantes estavam em pé de igualdade, quanto à interpretação de suas propostas e das composições de seus preços e do BDI, momento no qual a Administração escolheu aquela que melhor atendia ao interesse público.

Não é diferente e sem sombra de dúvida, mais gravoso, ilegal e desarrazoado que venha a Administração impor a devolução de parcelas pagas, cujas medições foram conferidas e aprovadas, nos termos da proposta oferecida, que repetimos, competiu com todas as outras ofertadas no certame, e que se sagrou vencedora por ter sido aquela de menor preço e a mais vantajosa à Administração Pública.

Por fim devemos concluir que não pode a Administração agir de forma a alterar proposta de preços apresentadas pelas contratadas quando da licitação, suprimindo percentuais dos itens referentes ao IRPJ e a CSLL, sob pena de ferir de morte os princípios da Irretroatividade da Lei ou de nova interpretação administrativa, bem como o que se refere à Segurança Jurídica previstos e consolidados na Constituição Federal, pilares do Estado Democrático de Direito e consubstanciados na legislação, doutrina e jurisprudência pátria e nos princípios gerais do direito.




Autor: ramon alves de melo


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