MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS: NEM ROMÂNTICO NEM REALISTA



O presente trabalho propõe uma abordagem reflexiva do romance Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antônio de Almeida, visando suas convergências e divergências em relação ao Romantismo, movimento literário vigente no período da segunda metade do século XVIII e primeira metade do século XIX. O romance de Almeida segue algumas características românticas, como a busca do passado, mas contrariando outras construções da escola supracitada, apresenta um cenário que não era o da aristocracia, mas sim da classe media e baixa do Rio de Janeiro, o que o aproxima de outra escola literária, o Realismo. Memórias de um sargento de milícias apresenta características tanto do Romantismo como do Realismo, portanto, pressupõe-se que a obra de Almeida não seja um romance romântico nem realista, e sim de transição entre essas duas escolas literárias.
PALAVRAS-CHAVE: Memórias de um sargento de milícias, Romantismo, Realismo, Transição.

Considerações Iniciais

Manuel Antônio de Almeida nasceu no Rio de Janeiro em 1831, onde também morreu aos 30 anos em um trágico naufrágio. Formou-se em medicina, mas nunca exerceu a profissão. Dedicou-se aos romances, poemas e crônicas, além das criticas teatrais e das traduções, trabalhou como funcionário público e jornalista. Apesar de sua existência meteórica, escreveu uma obra que acabaria sendo sua única, porém singular na historia da literatura brasileira, obra prima intitulada Memórias de um sargento de milícias(1852-1853) publicado em folhetim e um ano depois em livros. Memórias de um sargento de milícias, inúmeras vezes é definido como um romance romântico, porém, o mesmo trais consigo características que convergem e divergem em relação à construção romântica da primeira metade do século XIX, o que caracteriza uma problemática, e justifica o interesse em fazer uma análise profunda do romance supracitado, objetivando estudar seu estilo.Há dois objetivos específicos que norteiam a produção deste trabalho, o primeiro é distinguir o estilo romântico de realista, e o segundo, analisar as características estilísticas de Memórias.

O presente artigo está dividido em três seções: a primeira intitulada, Do Romantismo ao Realismo, que apresenta características da escola romântica, e da escola que surgiu tempos depois, a contrapondo, a segunda seção, Memórias de um sargento de milícias e a Critica, trata de algumas considerações da critica sobre as Memórias a terceira seção é intitulada Memórias de um sargento de milícias: nem romântico nem realista, onde partindo de fragmentos do livro, levantar-se-á a hipótese que a obra de Almeida não é romântica ou realista, mas sim que está em um plano de transição entre essas duas escolas literárias.

I – Do Romantismo ao Realismo

O Romantismo é um movimento estético que surgiu na segunda metade do século XVIII e durou até a primeira metade do século seguinte, estilo que segundo Proença Filho "configura um estilo de vida e de arte" (2007 p. 211). O Romantismo não participava da tradição cultural brasileira. Seu surgimento no Brasil ocorre por volta de 1836, sucedendo a Inconfidência Mineira, a vinda da Família Real e a independência brasileira, graças à formação de um publico leitor que almejava ver-se retratado. Mesmo norteado pelo Romantismo europeu, teve características peculiares, já que o período da independência despertou na população o desejo de criar uma literatura nacional. O Brasil pós-independência utilizou o romance como instrumento de construção cultural, voltando-se para o espaço nacional, o que justifica diversos tipos de romances românticos que vieram a surgir.

Tivemos assim os Romances Urbanos, que ressaltavam os valores e problemas vividos pela sociedade carioca do século XIX. Podemos exemplificá-lo com o romance Senhora, de Jose de Alencar. O Romance Histórico, que revelava a busca da nacionalidade por meio de reconstituição de fatos históricos relacionados com o passado colonial, é o caso de As minas de prata, também do escritor cearense supracitado. O romance indianista que se empenhou no projeto nacionalista de reconhecer o espaço nacional e os aborígines, exemplo: O Índio Afonço, de Bernardo Guimarães. Tivemos ainda os romances regionalistas, cujo projeto pautava-se na redescobertos do País, nas suas variedades regionais e culturais, é o caso do romance Inocência de Visconde de Taunay.

Segundo Proença Filho (2007), o Romantismo é uma constelação de traços que dominavam um período da historia. Tal constelação caracteriza-se pelos seguintes pontos luminosos: cosmovisão marcada pelo choque com o cotidiano imediato; imaginação criadora; subjetividade; evasão ou escapismo; senso de mistério; consciência da solidão; reformismo; sonho; fé; ilogismo; culto da natureza; retorno ao passado; gosto pelo pitoresco; exagero; liberdade criadora; sentimentalismo; ânsia de gloria; importância da paisagem; gosto pela ruína; gosto pelo noturno; função sacralizadora da arte e idealização da mulher, etc.

Já na segunda metade do século XIX, novos princípios começaram a modificar e marcar a humanidade, e uma nova escola literária surge, contrariando o Romantismo:

 O Romantismo era a apoteose do sentimento: o Realismo é a anatomia do caráter. É a critica do homem. É a arte que nos pinta a nossos propios olhos - para nos conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que houver de mau na nossa sociedade. (QUEIRÓZ apud PROENÇA FILHO. 2007).

O Realismo reflete profundas transformações econômicas, políticas, sociais e culturais, aproximando-se das idéias européias ligadas ao Positivismo, ao Evolucionismo e, principalmente, a Filosofia alemã, idéias que encontraram ressonância no conturbado momento histórico que o Brasil vivia, com a intensificação das campanhas abolicionistas, a Guerra do Paraguai entres outros acontecimentos. O Realismo caracteriza-se por apresentar a verdade, buscando essa verdade através de retratos fieis dos personagens, os motivos humanos, dominam as ações numa relação com o Determinismo, o Realismo encara a vida (contemporânea) como ela é, caracteriza-se ainda com uma narrativa lenta, fruto de uma detalhada caracterização de cada ação, fazendo uso de uma linguagem próxima da realidade simples e natural, preocupando-se com analises psicológicas.

Memórias de um sargento de milícias apresenta características que transitam em ambas as escolas literárias apresentadas, assunto que aprofundaremos a seguir.

II – Memórias de um sargento de milícias e a critica

Memórias de um sargento de milícias, para Sodré (1976 p. 227) "é um dos romances mais divulgados e menos compreendidos da nossa historia". Pode ser considerado um desvio na historia dos romances românticos, apresentando aspectos composicionais que o diferem de qualquer outro da época. Para Sodré:

O que diferencia é a ausência de intenção. Ao escrever os capítulos das Memórias, Manuel Antonio de Almeida não tem nenhuma pretensão literária e, portanto, não se julga obrigado a submeter o seu processo de criação às regras literárias. (SODRÉ. 1976 p.229)

No que se refere à formação literária, para Bosi (1994.p.132), "a obra de Almeida seria uma crônica histórica, cujo autor se divertisse em resenhar as andanças do umo qualunquê". Segundo (MONTELLO, 2004. p.351), "se há na literatura brasileira exemplo de novela picaresca, identificá-lo-emos certamente nas Memórias de um sargento de milícias". Segundo ele, esta classificação não se dar apenas na comparação do herói de Almeida com atitudes de insubordinação social do pícaro espanhol, mas em tantas outras que o aproximam da novelíssima picaresca:

No primeiro capitulo do Estebanillo Gonzalez, em que se "da cuenta de su nacimiento, estudio y travessuras" o herói, depois de ter sido surrado pelo pai, é levado por este para a casa de um amigo, barbeiro de profissão. Na obra de Almeida, também o herói, depois de castigado pelo pai, encontra refúgio na casa de um barbeiro. (MONTELLO 2004.p.352).

Mario de Andrade (1976 p.312,313) considera que "as Memórias de um sargento de milícias não é um romance picaresco, mas sim um desses livros que de vez em quando aparecem, por assim dizer, à margem da literatura".

Veríssimo (1978: 297), por sua vez, analisa Memórias de um sargento de milícias, aproximando-o do Realismo:

A obra de Almeida é realista porque nos conta fatos reais e nos fala de coisas "res", verdadeiras, com verdades, é naturalista, porque na representação dessas coisas cinge-se estreitamente ao natural, sem exageros ou deturpar, por processo de estilo ou singularidade de concepção, a chata realidade das coisas.

O herói da obra caracteriza-se por suas relevantes travessuras e diabruras, filho de Leonardo Pataca, um meirinho português e velho "mal-apessoado e, sobretudo era maganão" (ALMEIDA, 1997p. 14), e Maria das Hortaliças, "Era quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitona" (idem, ibidem, p.14).

Os pais do nosso herói eram explicitamente irregulares, de temperamento imoral e irrequieto, logo, sua prole não poderia ser diferente, o que trais consigo a idéia do Naturalismo: o homem é fruto do meio. Logo para Veríssimo: "Almeida foi sim, realista ou até mesmo naturalista, muito antes do advento na Europa das doutrinas literárias que receberam tal denominação" (VERÍSIMO, apud MONTELLO, 2004 p.350).

Mario de Andrade não comunga da mesma opinião, segundo ele: "Nada existe, nesse livro, do Realismo e Naturalismo de escola, tais como eles se apresentam no século dezenove" (ANDRADE, 1978 p.322) Opinião seguida por Candido: "[...] Por isso Mario de Andrade estava certo ao dizer nas Memórias não há realismo em sentido moderno; o que nela se acha é algo mais vasto e intemporal, próprio da comicidade popularesca".

Antonio Candido, em Dialética da malandragem (1978), busca características em Memórias der um sargento de milícias que o aproximem e/ou distanciem do romance picaresco. Para começar, podemos focar no narrador das Memórias, que é heterodiegético, contrariando as narrativas picarescas, que sempre acontecem em primeira pessoa, numa narrativa autodiegética. Outro ponto a se observar seria o fato de o pícaro aprender com as experiências, ao passo que Leonardo, o herói das Memórias, nada aprende com elas, porém semelhantes há vários pícaros, Leonardo consegue ser espontâneo, amável, de origem humilde e como alguns destes, irregular.

Candido (1978 p.322) considera que Memórias de um sargento de milícias é: "Um romance malandro, digamos então que Leonardo não é pícaro, mas o grande malandro que entra na novelíssima brasileira". A firmação que pode ser sustentada na obra de Almeida, considerando o vocabulário malandro e vadio como sinônimos:

No capitulo dezoito, narra-se que Leonardo filho: "constitui-se um completo vadio, vadio-mestre, vadio-tipo" (ALMEIDA, 1997 p.66). Candido levanta ainda a hipótese de Memórias de um argento de milícias ser um romance documentário, já que reproduziu a sociedade de um época carioca, ou representativo "onde se encontram representações da vida capazes de estimular a imaginação de um universo mesmo dentro do ciclo:o brasileiro"(CANDIDO,1978 p.329).

Em suma, segundo Sodré (1976), o traço mais singular apresentado na obra de Almeida foi o sucesso que alcançou entre os leitores comuns da época e o desprezo com que foi recebido pelos escritores. Contemporaneamente, é alvo de muitas controvérsias dentro da academia, principalmente por seu caráter inovador que o distancia do romance romântico produzido em meados do século XIX.

III – Memórias de um sargento de milícias: nem romântico nem realista

Por volta de 1852, no folhetim Correio Mercantil, intitulado "Pacotinha", eis que começa a ser publicado o primeiro e único romance de autoria de um jovem fluminense chamado Manuel Antonio de Almeida: Memórias de um sargento de milícias, romance frequentemente classificado como romântico, certamente graças à época em que foi escrito e não, de fato por seu estilo. Esta classificação é precipitada, devido aos seus vários desencontros com a escola literária que predominava na primeira metade do século, "ao escrever os capítulos das memórias, Manuel Antonio de Almeida não tem nenhuma pretensão literária [...] não se julga obrigado a submeter seu processo de criação às regras literárias [...]" (SODRÉ, 1976 p.229), com essa atitude, Almeida acaba se aproximando de uma outra escola literária: o Realismo, o que justifica, por exemplo, a substituição do Romantismo por uma dose de humor, sempre presente nas Memórias, como no capitulo vinte e três, intitulado: "Declaração", onde Leonardo declara-se a Luisinha:

Luisinha estava no chão de uma janela a espiar para a rua pela rótula. Leonardo apaixonou-se tremendo, pé antepé, parou e ficou imóvel como uma estatua atrás dela que, estendida para fora, de nada tinha dado fé. Esteve assim por longo tempo, calculando se deveria falar em pé ou ajoelhar-se. Depois fez um movimento como se quisesse tocar no ombro de Luisinha, retirou depressa a mão [...] Veio-lhe também outro - ah! - Porém não lhe passou a garganta e conseguiu fazer apenas uma careta. (ALMEIDA. 1997, p.78)

O momento do "declara-se", no Romantismo é solene e sublime, porém isso não ocorre na declaração de Leonardo a Luisinha, que ganha um tom humorístico numa cena desajeitada e tosca.

Outra evasão ao estilo romântico presente na obra de Almeida é a desmistificação do herói, que contrariando o Romantismo, é apresentado com um anti-herói, cheio de defeitos, evidenciados frequentemente, desde o capitulo primeiro: "Formidável menino de quase três palmos de comprimento, gordo, vermelho, cabeludo, esperneador e chorão, o qual, logo depois que nasceu mamou duas horas seguidas sem largar o peito"( idem, ibidem, 1997 p.14,15)

O anti-heroismo do jovem Leonardo continua no capitulo seguinte, no qual se mostra um verdadeiro tormento:

Atormentava a vizinhança com um choro sempre em oitava alta; era; tinha verdadeira particular à madrinha [...] logo que pôde andar quebrava e rasgava tudo que lhe vinha à mão [...] era alem de traquina guloso, quando não traquinava comia. (idem, ibidem, p.16)

Outra característica presente nas Memórias é a falta de idealização na caracterização dos personagens, "isentas de qualquer traço idealizante e procuram despregar-se da matéria romanesca" (BOSI, 2006 p.132). Esta afirmação é facilmente comprovada no capitulo sete, onde se descreve sem idealizações a Comadre: "Era a Comadre, uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona, ingênua ou tola até certo ponto e finaria até outro". (ALMEIDA, 1997, p.32).

Outra característica interessante é a descrição de Vidinha, moça de comportamento bastante livre, e que se torna namorada de Leonardo: "Vidinha era uma rapariga que tinha tanto bonita como movediça e leve" (idem, ibidem, p.112). Esta caracterização diverge do Romantismo, uma vez que as mulheres românticas são idealizadas: "Aparece convertida em anjo, em figura poderosa, inatingível, capaz de mudar a vida do próprio homem" (PROENÇA FILHO, 2007, p. 224).

Nas produções românticas, principalmente nos romances urbanos a maioria dos personagens são retratados como representantes das classes dominantes, na obra de Almeida essa tendência não é seguida, aproximando-o do realismo; "procurou mostrar o povo como o povo era e continua a ser" (SODRÉ, 1976, p.230) retratando como cenário as ruas cheias de gente, onde desfilam meirinhos, parteiras, vadios, pessoas comuns de todos os tipos, e tinham muitas vezes seus nomes, suprimidos por suas profissões, dando assim a uma preocupação documental própia do realismo.

Na escola romântica, era comum falsear a realidade, demonstrando-a mais bela, porém, Almeida numa atitude inovadora "pinta os seus tipos e descreve as suas cenas sem as deformações românticas" (MONTELLO, 2004 p. 349).

Outro ponto divergente do romance de Almeida é o alto teor cômico, que aponta para a comedia ao invés da tragédia, uma das marcas do Realismo.A comicidade fica explicita no primeiro capitulo, onde é narrado o momento em que os pais de Leonardo se encontram. Leonardo Pataca e Maria das Hortaliças: "Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela e, com o ferrado sapatão, assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito" (ALMEIDA, 1997, p. 14).

Essa tendência aparece outra vez no mesmo capítulo, no episódio da festa de cerimônia de batizado de Leonardo filho:

Leonardo, instado pela senhora, decidiu-se romper a parte lírica do divertimento. Sentou-se num tamborete em lugar isolado da sala, e tomou uma viola. Fazia um belo efeito cômico vê-lo em tarjes do ofício, de casaca, calção e espadim, acompanhado com um monótono zumzum nas cordas do instrumento o garganteado de uma modinha pátria. (idem, ibidem, p.15)

Neste fragmento, percebe-se o efeito cômico, ate mesmo pela intrusão do narrador: "fazia um belo efeito cômico" [...] A intrusão demonstra outro desvio na obra de Almeida, essa técnica seria muito usada tempos depois por um grande autor realista: Machado de Assis.

A escola romântica caracteriza-se, entre outras coisas, pelo apego à religião, a fé sobre a razão: "É a fé que comanda o espírito romântico. Não é o pão somente que satisfaz o romântico; idealista, aspirando a outro mundo, acredita no espírito" (MONTELLO, 2004 p.9). Entretanto Almeida criou um protagonista que repudiava as questões relacionadas à religião:

Há porém uma coisa que o entristece no meio de tudo: O menino tem para a reza, e em geral para tudo quando diz respeito à religião, uma aversão decidida; não é capaz de fazer o belo-sinal da esquerda para a direita, fá-lo sempre da direita para a esquerda [...] Ir à missa ou ao sermão é para ele o maior de todos os suplícios. (ALMEIDA, 1997 p.43).

O sentimento anti-religioso e também anticlerical tem presença forte no livro, marcado pelo acentuado horror aos padres e as beatas. No capítulo quinze, onde Leonardo prepara uma armadilha para desmascarar o reverendíssimo Mestre-de-cerimônias, juntamente com seu amigo Chico-Juca, como vingança por ter sido preso:

O Leonardo disse então o que queria: tratava-se nada menos do que de ir o Chico-Juca nessa mesma noite, fosse como fosse, à função da Cigana, e de armar ali por alta noite uma grande desordem: preveniu-o logo que o Vidigal havia de estar por perto, e assim, apenas estivesse armada a historia, era pôr-se ao fresco. (idem, ibidem, p.57)

O plano foi bem-sucedido:

A cigana deu um grito: o granadeiro obedeceu e entrou no quarto; ouviu-se então um pequeno rumor, e o Vidigal disse logo cá de fora:

- Trás pra cá quem estiver lá dentro.

No mesmo instante viu aparecer o granadeiro trazendo pelo braço o reverendíssimo mestre-de-cerimônias em ceroulas curtas e largas, de meias pretas, sapatos de fivela e solidéu à cabeça.( idem, ibidem, p.59)

Neste episódio da narrativa, o autor mais uma vez aproxima-se do Realismo com uma aversão ao clero e também pelo seu tom cômico: "apesar dos apuros em que se achavam todos desataram a rir: só ele e a cigana choravam de envergonhados" (idem, ibidem, p. 59).

Outra característica em Memórias de um sargento de milícias que ganhou contornos realistas é a presença do adultério na obra, uma vez que o Romantismo pregava a ética e a moral. No capítulo dois, intitulado "Primeiros infortúnios", Leonardo Pataca começa a arrepender-se de tudo que fizera por Maria das Hortaliças. Há nesse momento a intromissão do narrador heterodiegetico: "e tinha razão, porque, digamos depressa e sem mais cerimônias, havia ele desde certo tempo, concebidas fundadas suspeitas de que era atraiçoado" (idem, ibidem, 1997p. 16). No decorrer da narrativa, a suspeita se confirma:

Um dia de manhã entrou sem ser esperado pela porta adentro; alguém que estava na sala abriu precipitadamente a janela, saltou por ela pala rua e desapareceu. Avista disto, nada havia a duvidar: o pobre homem perdeu, como se costuma dizer, as estribeiras; ficou cego de ciúmes. Largou apressado sobre um banco uns altos que trazia embaixo do braço, e endireitou para Maria com os punhos cerrados.( idem, ibidem, p.17)

Ao relatar um adultério, Memórias de um sargento de milícias aproxima-se de grandes clássicos realistas, como O Primo Basílio de Eça de Queiros e Dom Casmurro de Machado de Assis. Por outro lado, notam-se na obra de Almeida, aspectos românticos, como uma dose de Regionalismo presente em sua linguagem. Há aproveitamento da fala e de expressões populares que mostram uma tendência para a liberalização de expressões populares, tendência romântica: "Depois do minueto foi desaparecendo a cerimônia, e a brincadeira aferventou como se dizia naquele tempo" (idem, ibidem, 1997p. 15, grifo nosso), "avista disso nada havia de duvidar: o pobre homem perdeu, como se costuma dizer, as estribeiras." (idem, ibidem, p. 17 grifo nosso). As expressões: aferventou e estribeiras expressam o liberalismo da época.

Há ainda despreocupação com a correção gramatical e a linguagem utilizada: "Manuel Antonio de Almeida conseguiu o que pretendia, divertir. Não quis outra coisa -e daí talvez o desleixo em sua linguagem"(SODRÉ, 1976 p.230),

Procurou aproximar-se da linguagem coloquial, usou e abusou da caricatura, provocou o riso, esforçou-se por apresentar figuras de rua, pintou o quadro de costumes e, para disfarçar frisou que a época não era a dos leitores, mas aquela do rei.

"Era no tempo do rei" (ALMEIDA 1997p. 13). A frase que inicia a obra de Almeida demonstra outra característica romântica: o retorno ao passado.

Também como é comum no Romantismo, algumas situações são criadas artificialmente. Na obra de Almeida, Leonardo filho é transformado em granadeiro e posteriormente em sargento de milícias sem se explicar detalhadamente como isso ocorreu. "Todos os batalhões que havia na cidade tinham companhia de granadeiro e havendo uma vaga na companhia do regimento novo, fora Leonardo escolhido para preenchê-la" (idem, ibidem, p.136).

Outra marca romântica nas Memórias é a ocultação do negro, sobre isso falou Mário de Andrade:

Ora, é Veríssimo notar que num livro tão rico de documentação de costumes nacionais como estas Memórias, haja ausência quase total de contribuição negra. Entre os personagens não há um só que seja preto, nem descreve costumes e casos de preto. Sabemos que são geralmente negros os barbeiros de então, negras as baianas dançarinas da profissão dos ouvires e o mais são referências desatentas a escravos e crias de dona Maria, (ANDRADE, 1978 p. 309).

Dessa forma, constatam-se, em Memórias de Um Sargento de Milícias, traços da produção romântica da primeira metade do século XIX, e também, traços pertencentes à outra escola literária: o Realismo, o que nos permite situá-la como uma obra de "transição" do Romantismo para o Realismo.

Considerações Finais

Memórias de um sargento de milícias tem se perpetuado como uma grande obra da literatura brasileira. "Esta obra está em nossas letras como algo definitivo, senão como obra-prima pelo menos como obra viva, não envelhecida pelo tempo" (MONTELO, 2004 p. 349). Memórias de um sargento de milícias, por ser uma obra deslocada de seu tempo, despertou, e ainda desperta o interesse de inúmeros críticos, que se divergem em suas análises.Veríssimo classifica a obra de Almeida como sendo realista, já Candido como um romance malandro, Montello, uma novela picaresca, Andrade como um romance marginal e Bosi, uma crônica histórica.

Memórias foge de algumas características românticas como o sentimentalismo e a exaltação do herói (idealizado), das descrições dos personagens e falseamento da realidade. A falta dessas características aproxima-o da escola literária que surgiu no Brasil na segunda metade do século XVIII para negar o Romantismo: o Realismo. Porém há ainda na obra de Almeida, elementos que convergem para a construção literária romântica com: a busca do passado, o regionalismo no aproveitamento das falas e expressões populares, ocultação do negro e situações criadas artificialmente.

As convergências e divergências, presentes em Memórias de um sargento de milícias, o tornaram um romance singular na literatura brasileira, sendo assim, não um romance romântico ou romance realista, mas sim um romance de transição entre essas duas escolas. E que – mais importante – superando as exigências desse critico chamado tempo, ainda hoje suporta releituras.

Bibliografia

ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de Um Sargento de Milícias. s/ed. Santiago (Chile): O Globo / Klich Editora, 1997.

ANDRADE, Mario de. "Introdução", in: Memórias de Um Sargento de Milícias. Edição critica de Cecília de Lara. Rio de Janeiro: Livro Técnico, 1978 p.295 – 315.

BOSI, Alfredo. "Memórias de um Sargento de Milícias", in: História Concisa da Literatura Brasileira. 43 ed. Cultrix: São Paulo, 2006.

CANDIDO, Antonio. "Dialética da Malandragem", in: Memórias de Um sargento de Milícias. Edição critica de Cecília de Lara. Rio de Janeiro: Livro Técnico, 1978 p.317 – 342.

MONTELLO, Josué. "Manuel Antonio de Almeida, in: COUTINHO, Afrânio (org.), A Literatura no Brasil. 7 ed.: São Paulo: Global, 2004, vol.3, p.347 - 353

PROENÇA FILHO, Domício. Estilo de Época na Literatura, 15 ed. Ática: São Paulo, 2007.

SODRÉ, Nelson Werneck. "Bases do Romantismo Brasileiro", in: Historia da Literatura Brasileira. 6 ed. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1976 p.227 – 230.

VERISSÍMO, José, "Um Velho Romance brasileiro", in: Memórias de um Sargento de Milícias. Edição critica de Cecília de Lara. Rio de Janeiro: Livro Técnico, 1978 p. 291 – 302.

Algumas palavras despencam de nos despercebidas, caladas, somem no vazio. Outras nos saltam a alma numa tentativa de resplandecere o mundo.


Autor: Ana Maria Santos


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