A formação das almas



Para o historiador que deseja conhecer a história do Brasil republicano, mais precisamente os aspectos condizentes com a sua consolidação, não pode deixar de consultar o excelente José Murilo de Carvalho.

Em uma de suas principais obras – A formação das Almas – o autor passeia por uma das áreas mais fascinantes da História: o imaginário.

Questões sobre as mentalidades sempre me encantaram. Confesso aqui que um dos desejos que tinha quando entrei para a faculdade era estudar o imaginário popular em torno da figura paternal de Getúlio Vargas. Acabei enveredando por outros caminhos, apesar de ter pesquisado um objeto dentro do contexto varguista.

Voltando ao cenário do início da república, José Murilo continua uma inquietação que remonta uma outra obra sua – Os bestializados. Nela, o autor mostrou como a população esteve afastada do novo regime. E daí vem uma indagação: sem o apoio popular, como se deu a consolidação da república? Como o povo, de uma hora para outra, passou a aceitar o novo regime?

Para responder estas perguntas, Carvalho investiga as disputas pela legitimação do regime republicano por três correntes ideológicas: liberais (à americana; defendiam a não interferência do estado; tinha o apoio dos proprietários rurais e federalistas), jacobinos (à francesa; defendiam a participação política direta dos cidadãos; apoio frágil) e positivistas (defendiam um executivo forte e intervencionista, uma espécie de paternalismo governamental; era o grupo mais ativo; boa aceitação em camadas médias urbanas e setores militares).

O título já nos dá uma dica do que encontraremos. Símbolos, heróis, hinos, bandeiras e mitos são vistos como elementos que pretendiam formar almas, construir seres moldados de acordo com os interesses do grupo que o divulgava.

Apesar dos esforços, veremos que a quantidade de elementos ideológicos não foi suficientes para formar uma identidade republicana no Brasil. E o autor parte do princípio de que o melhor, mais eficiente e mais usado instrumento de legitimação de um regime político é a ideologia.

Os elementos utilizados (símbolos, heróis, hinos, bandeiras e mitos) vem da necessidade dos republicanos de conquistar a legitimação de uma população com baixa escolaridade, cuja criticidade não suportaria um entendimento mais elaborado das ideias, se difundidas em livros ou discursos rebuscados. Era preciso algo de fácil assimilação.

A busca por uma identidade coletiva para o país, de uma base para a construção da nação, passou pelo mito de origem (que são encontrados no nascimento não só de regimes políticos, mas de nações, povos, tribos etc). Este mito é uma versão real ou imaginada que tem o objetivo de dar sentido e/ou enaltecer o grupo vencedor/dominante.

Quanto a esta parte, a grande luta ficou em torno do papel que cada personagem desempenhou na proclamação. Os concorrentes eram: Deodoro da Fonseca, o proclamador da república. Com ele, o 15 de novembro se transforma no ato final da Questão Militar. Sua liderança teria sido fundamental para a vitória republicana; Benjamim Constant, o fundador da república. Sem ele, o teórico da proclamação, o 15 de novembro não passaria de uma quartelada; e Quintino Bocaiúva, cuja característica – propagandista civil – foi exatamente a sua limitação.

Que nações também não tem um herói cívico?

Diante das dificuldades em promover os protagonistas da proclamação ao status heroico, foi necessário recorrer a uma figura longínqua, que se mostrou, aos poucos, um bom personagem para o papel – Tiradentes.

As comparações com a figura de Jesus Cristo e suas lembranças como um mártir que morreu por um triplo sonho – independência, abolição e república -, fizeram dele o principal herói republicano.

Os concorrentes diretos desta figura – os líderes da república farroupilha e da Confederação do Equador (Bento Gonçalves e outros/ Frei Caneca) não chegaram a fazer frente o alferes. Quanto a isso, parece que o fator geográfico ajudou Tiradentes. A localização periférica dos demais, frente à importância de Minas Gerais, também pesou na escolha.

Quando nos referimos aos símbolos e alegorias utilizados, lembramos sempre da imagem feminina da república. Baseando-se nos exemplos da Roma antiga e da Fiança revolucionária, a figura da república-mulher obteve um certo fracasso em sua missão. José Murilo argumenta que faltou a ela a chamada comunidade de sentido. A imagem feminina muitas das vezes foi transformada em prostituta, ou denegrida de outra forma. Ajudou este malogro, o fato de que a mulher era renegada politicamente na sociedade brasileira e, portanto, sua imagem cívica não encontrava sentido na população masculina.

Por fim, Carvalho também aborda as chamadas simbologias obrigatórias – as bandeiras e hinos.

A primeira teve evidente vitória dos positivistas, expressos na frase “ordem e progresso”. Apesar da resistência à divisa positivista, a aceitação da bandeira oficial da república foi boa.

A segunda talvez seja a única vitória popular. Falou mais alto o peso da tradição na escolha do hino republicano.

Os esforços para se criar um imaginário popular republicano falharam. Os pontos que tiveram sucesso se deveu muito mais ao peso da tradição, imperial ou religiosa. Uma das grandes barreiras foi a falta de envolvimento do povo na implantação do novo regime. As simbologias republicanas não encontraram raízes no povo.

 


Autor: Luiz Eduardo Farias


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