A Jurisprudência da Ordem — O dolo e o contradolo



Quando se pretende determinar o exato instante do surgimento da consciência coletiva de ordem, tende-se a examinar primeiro a relação entre a ordem e o indivíduo. Não é de todo uma técnica inútil, mas é no mínimo incoerente, visto que é exatamente essa "relação" a responsável pela anulação de relação, ou seja, é justamente nesse amálgama que consiste o esconderijo da relação. Pensando nisso, ocorreu-me verificar não mais essa relação, mas seu contorno, seu ajuste.

Há milênios, quando os guerreiros batalhavam, não havia, como hoje, uma "castidade" moral acentuada e, de certa forma, ordenada. Assim, o que para nós é crime, para eles nada mais era, senão força, coragem, vigor, audácia. Durante suas guerras, se um guerreiro fosse morto, essa sua morte era considerada uma derrota, derrota essa que se devia à sua fraqueza, do mesmo modo que o assassinato cometido por seu opositor era considerado uma vitória, que somente lhe foi possível devido à sua força. Não lhes passava pela cabeça apelar a uma autoridade superior a fim de buscar justiça, pois sequer lhes passava pela cabeça constituir uma autoridade superior a que pudessem apelar ou, ainda, fundamentar uma justiça em que essa autoridade superior se baseasse para determinar quem entre seus apelantes fosse culpado e quem fosse inocente. Aqui se constata não só que a noção de dolo desses guerreiros era outra, mas que ela era impetrada de outra forma e também aceita de outra forma. E principalmente: o dolo, para eles, tratava de outros assuntos. Hoje, na nossa comunidade, com as regras constituídas da forma como estão, é muito mais fácil determinar quem comete o dolo e, da mesma forma, quem sofre esse dolo. Entretanto, não seria essa noção do dolo, de fato, um não percebimento do dolo?

Naturalmente, não há como negar que a noção moderna de dolo é o resultado histórico de toda uma noção coletiva, ou seja, é uma noção "antepassada" aprendida e herdada, que vem desde o homem primitivo, passando pelas grandes revoluções da força (física e de autoridade), até chagar ao nosso tempo. Como tudo o que é passado adiante, não houve necessariamente uma reformulação dessa noção, mas apenas uma adequação, e como toda adequação, o cerne se manteve invariável, o que implicou uma adequação "imprópria" do percebimento do dolo. Vejamos: quando o homem da caverna caçava, ele o fazia porque tinha fome e porque precisava caçar seu alimento; então, se durante a caça, acidentalmente, ele ferisse um companheiro ou o matasse, esse ferimento e essa morte (ou a noção de tê-lo ferido ou matado) significavam um simples desvio de ação física, justamente por se tratar de um acidente. Já se esse homem da caverna ferisse ou matasse um companheiro deliberadamente, por problemas com o grupo, por exemplo, esse ferimento e essa morte eram um "ajuste em si", ou seja, o ato violento só seria motivado pela necessidade desse homem de impetrar ao outro um dolo qualitativo, um dolo que estivesse apenas no seu âmbito, um dolo de aplicação, de ensino, não importando aí se esse outro fosse mais forte ou mais fraco.

Em outra era, na época dos grandes guerreiros, esse dolo assume uma nova intenção: torna-se mecanismo de força, seja essa força apenas física ou mesmo de valor (uma forma de provar essa força física para o grupo, demonstrando aquilo que até então apenas se via na constituição física do guerreiro). Daí, se esse guerreiro fere ou mata seu inimigo, esse dolo impetrado (que antes era desvio de ação física ou um ajuste em si) passa a significar vigor (o guerreiro velho ou fraco não deixa de matar porque é crime, mas sim porque está velho ou porque é fraco). No caso do guerreiro forte, não há nada em si que deve ser ajustado em relação ao outro ou ao grupo, mas o contrário: esse outro é que deve se ajustar ao guerreiro, à sua força. Assim, constatando que o outro é fraco (mais fraco que ele, uma vez que sua consciência é de força, e não de poder), esse guerreiro poderá feri-lo ou matá-lo. O percebimento do dolo aí nada tem a ver com a instituição de uma ordem, antes fica no âmbito físico, constrói-se de acordo com a extensão desse âmbito físico, de forma que, se um guerreiro é forte, ele pode matar o fraco, pois tem a força que o fraco não tem. Entretanto, mesmo essa força já está domada (é em si uma "ordem"), já que não é a todo fraco que esse guerreiro forte pode matar, mas apenas aquele que de alguma maneira violou essa "ordem física". Por exemplo: um guerreiro fraco tem o direito de estuprar, visto que essa estuprada é mais fraca que ele — a fraqueza dela é o direito do guerreio. Mas se essa estuprada tiver alguém que possa guerrear por ela — alguém que seja forte —, o guerreiro estuprador terá de provar sua força (força que ele não tem) lutando com esse defensor. Com isso entende-se que a "honra" desses grandes guerreiros é também uma honra física, pois o que está em questão não é a mulher ou o estupro (ou, ainda, o fato dessa mulher ter sido estuprada), mas a oposição entre a força e a fraqueza, entre o impetrar e o resistir.

Chegando aos nossos dias, como já temos uma ordem estabelecida, se um homem fere ou mata, o dolo é mais facilmente definido, bastando para isso consultar os termos da ordem e verificar em que se enquadra aquela violação. Entretanto, uma das características desse fácil percebimento do dolo é não somente vitimização de quem sofre o dolo, mas também a criminalização de quem impetra esse dolo. Percebe-se nisso a necessidade de qualificação dos indivíduos na ordem, não sendo igualmente necessárias nem a repressão de quem comete o dolo, nem a reparação do dano causado. Vejamos: a ciência forense vem se desenvolvendo de maneira fantástica, sendo já possível identificar o DNA em pequeníssimas partículas de sangue, podendo-se coletar impressões digitais de superfícies onde antes era impossível etc. Em contrapartida, o funcionamento legislativo, judiciário e executivo não acompanha esse avanço — deficiência essa que causa uma contradição interessante: de um lado, a ciência forense indica cada vez mais rapidamente o responsável pelo cometimento do dolo (um assassino, por exemplo), de outro lado, o legislativo, o judiciário e o executivo não avançam no mesmo sentido, ainda se baseando em regras antiquadas para manter a ordem da comunidade e — principalmente — aplicando essas regras muito lentamente ou, em alguns casos, não aplicando. Eis um fato muito claro: as sociedades modernas se apressam em "qualificar" quem comete o dolo, em encontrá-lo, em mostrá-lo à sociedade, assim como se apressam em determinar o que é o dolo, porém já não têm a mesma pressa (e o mesmo rigor) para puni-lo, pois o que está em jogo não é o dolo em si (o percebimento desse dolo), mas a manutenção da jurisprudência da ordem.

Essa nova formação qualitativa, que é em tudo obsoleta quando se trata do dolo em si, indica que na sociedade moderna há uma supervalorização da ordem, fruto justamente dessa jurisprudência da ordem, que se formou a partir da invenção do dolo e do contradolo. O que quero dizer com isso é que quando, antes, um homem feria ou matava seu companheiro, não havia necessidade de determinar quem impetrara o dolo e quem fora vítima dele, pois a ordem da época não havia se estabelecido a partir de uma jurisprudência, mas sim a partir de mecanismos imediatos, sem precedentes, como no caso do homem da caverna, que nem tinha precedentes, e no do guerreiro forte, que carregava em si (em seu corpo físico) a possibilidade de impetração do dolo, e no do guerreiro fraco, que igualmente carregava em seu corpo a possibilidade de lhe ser impetrado o dolo, sem conhecer outro valor (anterior ou posterior) além daquele que fisicamente o formava.

Hoje, quando nos damos conta do dolo tão facilmente, estamos na verdade nos dando conta não dele, mas da ordem, de sua jurisprudência. Por exemplo: se uma mulher caminha sozinha por uma rua deserta, à noite, ela sabe (pois sua consciência de dolo é na verdade uma consciência de perigo) que pode ser assaltada, estuprada, morta. Porém, esse saber não se origina no fato de ela ser mulher e ser fraca (já que ela continuaria sentindo medo, mesmo se estivesse com uma arma na bolsa — ela continuaria sentindo a "iminência do dolo", do "perigo"), mas sim no fato de haver uma jurisprudência da ordem, o que significa que, da mesma forma que ela sabe que corre perigo caminhando por uma rua deserta, à noite, ela também sabe que está segura caminhando numa rua movimentada durante o dia. Outro exemplo: todos nós sabemos da facilidade com que um criminoso deixa a cadeia após cumprir um sexto da pena, o que significa que se um homem matar e for condenado a trinta anos de prisão, ele poderá ser libertado em cinco anos. Mesmo assim, essa facilidade se livrar do contradolo não incita ou suprime o cometimento do dolo, não é porque eu sei que sairia da prisão em apenas cinco anos que eu mato quem me desagrada, e eu não faço isso simplesmente porque foi inserida em mim a noção de dolo e contradolo, mas a noção de jurisprudência da ordem. Uma prova disso é a pena de morte, aplicada em vários países, ela não é capaz de impedir completamente o cometimento do dolo, ou seja, esse contradolo (que é condenar à morte quem matou alguém) não é suficiente para impedir o dolo criminoso. Essa característica indica que não importam nem o dolo, nem o contradolo (o importante não é proteger alguém do dolo ou punir quem impetra esse dolo), o que de fato vale é a ordem, o percebimento dela, sua jurisprudência.


Autor: Sodine Üe


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