Negro Amanhecer



 Negro Amanhecer

Capítulo 1 Caminho

O sol em breve queimaria o chão como em todas as manhãs, a chuva não aparecia há meses, nem a mais leve nuvem se condensara naquela região. Apesar de faltarem algumas horas para o sol nascer,  ali  o calor era grande desde as primeiras horas do dia por isso não havia umidade nas folhas das plantas, nem o típico friozinho da madrugada, havia sim uma brisa morna que levantava levemente a poeira da estrada.

Não apenas a brisa levantava a poeira da estrada, um grupo de crianças como em todos os dias nas primeiras horas da manhã ali passava, elas não iam em direção à escola pois a escola era na direção contrária. As crianças não iam conversando, cada uma andava quieta, sem aquela expressão típica de alegria presente nas crianças, seus corpos eram magros, quase esqueléticos, algumas crianças tinham barrigas grandes e duras, estavam doentes, seus rostos tinham uma forte palidez que contrastava com a vermelhidão do corpo queimado pelo sol, e com as mãos queimadas pelo fogo do lugar para onde se dirigiam.

 Uma pessoa que passasse por aquela estrada e observasse as crianças acharia em quase todas um rosto sem expressão, olhos vazios, bocas rachadas, cabelos despenteados e uma roupa por cima da outra servindo como proteção improvisada, achariam estranho pelo calor uma criança usar uma roupa como essa. Dentre todas as crianças uma chamava mais a atenção, pois apesar de seguir esse caminho tinha olhos grandes e delicados, apesar da aspereza de suas mãos, seu nome era Anaísa, ela tinha 9 anos e desde os 5 seguia esse caminho todos os dias, no primeiro ano seu pai a trazia para ajudá-lo, no ano seguinte desde que a seca piorara , para ajudar seu pai no sustento da casa ela seguia esse caminho. Durante a caminhada Anaísa pensava em como sua vida mudara desde a morte de sua mãe, ela percebera que sua mãe estava doente, pois não mais cantava ao varrer a pequena varanda da casinha em que moravam,não mais cuidava da pequena horta que mantinham para seu sustento, nem esperava o marido toda perfumada como era de costume. A mãe adoecera rapidamente, em dois dias estava acamada e fraca, tossia muito e escarrava sangue, além da forte diarréia que causara desidratação, na madrugada do terceiro dia a mãe não acordara mais.   Enquanto a mãe ainda era viva a realidade de Anaísa era bem diferente.

 Antes da morte de sua mãe Anaísa tinha tempo de deitar na varanda e olhar o céu, para depois desenhá-lo, tinha tempo de tomar banho no ribeirão com as outras crianças, tinha tempo até de cochilar após o almoço. Com todos os acontecimentos que se seguiram Anaísa teve de amadurecer, teve de abrir mão de sua infância, de sua alegria, mas não de sua esperança, Anaísa ainda sonha...

 Continuando a observar, a pessoa notaria que uma das crianças tinha em uma das mãos um dedo a menos, seu nome era Julio , ele tinha 12 anos, seguia esse caminho desde os 9, antes de seguir esse caminho ele seguiu outro bem pior. Julio começou a trabalhar aos 6 anos ajudando o pai a moer cana, no começo ele trazia e empilhava a cana para o pai, aos 8 anos ele manobrava o moedor sozinho durante 12 horas seguidas. Um dia após 15 horas seguidas Julio adormeceu por um segundo, e seu dedo foi decepado pelo moedor. O dono do canavial mandou Julio e sua família embora pelo acidente ocorrido , pelo medo de ter de pagar uma indenização ou de ser preso por contratar menores. A busca pela sobrevivência trouxera Julio e sua família para esse caminho que todos trilhavam muitas horas antes do amanhecer. Apesar de não jogar mais bola, apesar de não mais cantar e de seus olhos não mais brilharem, no coração desta criança ainda há esperança, Julio ainda sonha...

 Após três horas de caminhada o sol começa a nascer, as crianças despertam de suas lembranças e observam o sol despertar e sentem dentro de si o coração bater um pouquinho mais rápido durante a prece silenciosa que fazem cada uma dentro de si, por uma vida melhor e força para suportar o que vem a seguir, mais um dia, mas uma vez o caminho chega ao fim, sejam bem-vindos ao "Inferno Cinza" como é mais conhecido.

Capitulo 2   Realidade

 A paisagem mudara drasticamente no fim do caminho, a terra vermelha e a brisa morna que levantava levemente a poeira da estrada foram substituídas pelo pó negro que formava uma pasta endurecida no chão e pela fumaça que intoxicava os pulmões se não se usasse ao menos uma camiseta amarrada ao pescoço como proteção, neste espaço haviam pequenos barracões feitos de barro com formato de iglus, destes barracões saía muita fumaça, havia pó negro e pedras negras em todo lugar, assim como crianças também e elas não brincavam. No fim do caminho havia uma carvoaria, e as crianças eram carvoeiros, todas usavam os mesmos uniformes negros, compostos de pó, suor, lágrimas e sonhos. Todas andavam com os olhos baixos, e eram vítimas de dois observadores. O primeiro era Marcos o dono da carvoaria, ele observava atentamente aquelas crianças, seus funcionários se assim pudesse chamá-los, pois eles ganhavam tão pouco, ele  se considerava um gênio por ter arranjado uma mão de obra tão barata ,sentia pena daquelas crianças e achava que até chegava a praticar a caridade dando emprego a elas. Essas crianças trabalhavam em condições subumanas e recebiam cerca de cinqüenta centavos por quilo de carvão incinerado, cada uma produzia em 12 horas de trabalho cerca de 7 quilos, ao fim do dia recebiam em media três reais e cinqüenta centavos, isso quando não faziam "hora extra" chegando a trabalhar até 20 horas sem parar para comer ou para ir ao banheiro, não que ali tivesse um para os "funcionários".

  Nosso segundo observador, ou melhor, observadora era uma pessoa que poderia mudar e muito a vida das crianças que trabalhavam naquele local. Ninguém percebera a sua presença ali, o disfarce estava dando certo, deixemos que ela buscasse as respostas que precisava...

 Assim que chegaram o grupo de crianças se separara, pois cada um ocupava uma função na carvoaria, uns quebravam o carvão, outros transportavam para os fornos gigantes, outros ficavam junto aos fornos para  reabastecê-los com carvão e uns ainda transportavam o pó negro puro incinerado.

 Anaísa alimentava o forno número três da carvoaria, o forno ficava dentro de um dos mini barracões de barro , lá dentro era muito quente, ela não se importava com o calor, pois gostava muito de ver a dança das chamas ao se lançar carvão , a forma como ela crescia, o domínio do vermelho sobre o laranja por poucos segundos, preciosos segundos. Anaísa pensava muito, neste dia principalmente pois era aniversário de sua mãe, ela lembrava muito da mãe de como ela cantava, do seu cheiro de flor e do seu jeito de ler... Sua mãe fora uma das poucas pessoas que sabiam ler naquela região, todos trabalhavam ou na colheita de laranja ou na carvoaria, e as crianças começavam a trabalhar muito cedo, chegando a nunca freqüentar uma escola. Anaísa sonhava em aprender a ler, sua mãe lhe deixara apenas uma coisa: o livro, não era um livro qualquer, era "O livro", o livro que sua mãe lia todas as noites até ela fechar os olhos e sonhar. Seu sonho era aprender a ler, para embarcar na fantasia dos livros, onde os sonhos se realizavam, onde o dinheiro não vale nada, onde se pode ser feliz, onde se pode ser criança...

 Julio quebrava as pedras de pó negro para serem incineradas mais facilmente, o trabalho braçal o cansava muito mas ao menos ele não tinha que  alimentar os fornos o que era bom, pois o calor perto dos fornos era insuportável.

Ele gostava muito de música, principalmente de música clássica. Marcos o dono da carvoaria ouvia música clássica o dia todo e num volume altíssimo. Julio conseguia ouvir os toques do piano, leves nos primeiros compassos da música, conforme os toques se intensificam no decorrer da valsa cigana os batimentos do coração do menino se fortalecem, se aceleram, se apaixonam... Julio sonha em ser pianista...

 A nossa segunda observadora já achara respostas o suficiente,e essas respostas mudariam a vida de todos naquela carvoaria para sempre.   

Capítulo 3 Esperança

 Em poucos instantes a tarde chegaria ao fim, o céu estava tingido em diferentes tons de vermelho e laranja, a brisa morna e leve brincava com o pó negro que dominava o ambiente pela última vez.

 A polícia chegara a pouco e prendera o dono da carvoaria em flagrante sobre a acusação de abuso do trabalho infantil, lavagem de dinheiro e tráfico de drogas, ele não sairia da prisão por um bom tempo. Os trabalhadores da carvoaria estavam prestando depoimento um a um, inclusive as crianças sobre as condições subumanas do lugar.

A nossa segunda observadora, ou melhor dizendo a detetive Noemi Santiago viera a carvoaria averiguar uma acusação de abuso do trabalho infantil, a qual constatou ser verdadeira e ativou reforços para prisão em flagrante. Tomou medidas para que as crianças e adultos tivessem uma escolha a fazer,os adultos teriam a chance de aprender novas formas de sustento, como artesanato, cultivo de alimentos, manufaturas, entre muitos outros. As crianças teriam escola , cursos de música, artes, acesso a biblioteca, esportes e lazer. Todos teriam a chance, aqueles que quisessem melhorar de vida seguindo esse caminho teriam a oportunidade.

 O pôr-do-sol era mais especial do que nunca, pois com ele iria embora também a tristeza existente no coração daquelas crianças, o brilho retornava ao olhar, o uniforme seria de outra cor, os sonhos começavam a se realizar, era a última vez que seguiam aquele caminho...

 Chovera a poucos dias, o sol já havia nascido e a brisa era morna e, como sempre levantava levemente a poeira da estrada, juntos trilhavam lado a lado uma futura escritora e um futuro pianista que com corações esperançosos e persistentes com certeza um dia o seriam, mais por enquanto, eram só crianças... a caminho : da escola. 


Autor: Marcella Sants


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