Escondências



Preciso de alguma palavra forte, de impacto, que simbolize sonhos, medos e fúrias. "Diligência". Não prenda-se ao significado. Preciso de sílabas mais do que pretensões.
Vivo remexendo a velha bolsa atrás de bilhetes de metrô. Ali, sabia, guardei um pra volta. Sempre há mais um pra volta. Como disse certa vez a uma querida amiga, sentada no balcão de um bar desses em que pessoas do bem se misturam com pessoas quase do bem, "o importante não é ter dinheiro pra cerveja - basta ter o bilhete para a volta". Diversões são sempre garantidas, uma cama quente é sempre um risco. Mas sim, pulo a parte da filosofia barata.
Baldeação, os "baldes em ação", e a exposição no Paraíso havia sido recolhida. É diversão minha essas exposições no metrô que abrigam cadernos em branco para assinaturas e comentários. Lembro-me claramente do dia em que permaneci minutos ou horas lendo histórias de uma suicida que contava sobre o seu dia no caderno de uma exposição babaca de reciclagem de plástico. Mas essa fica pra outra hora. Procurei em vão o rosto amigo que me acompanhou por tantas baldeações, e voltei à realidade. Tucuruvi, linha azul. "Você pega o trem azul", maldita música que não me sai da cabeça. Uma, apito, "Estação Veeergueiro". Tenho ainda uma hora pra não fazer nada até meu amigo chegar. Centro Cultural, sempre uma boa pedida.
Nostalgia.
Postei-me diante da grande rampa que leva ao vão vertiginoso, onde pessoas são pessoas e mesas de xadrez são mesas de xadrez, e subi buscando na mochila velha aquele gelzinho com álcool que ganhara na véspera.
Gripe suína. Eu evito. Mas isso também, deixa pra outra hora.
Imagens de um outro dia, uma outra vida ou um outro pensamento, voaram livres diante de minha testa. Caminhei. Pé, pé, pé, tédio. Ainda tenho aquele velho Hermann Hesse perdido na mochila rasgada. Ouço uma música ao fundo. Péssima, diga-se de passagem. No entanto, o vocalista era um pitel. Casava, lá mesmo. Sei lá, tô sem o mínimo senso de humor hoje. Mas também não tô querendo fazer graça.
Crônica narrativa - assim que chamava no cursinho? Sentei-me naqueles banquinhos para fora da redoma de vidro onde há uma escultura bizarra, sem sentido e feia, que parece um grande tronco oco. Sentou uma japonesa ao meu lado. Tive, sim, um daqueles pensamentos frios, calculistas e de cabrita sorta: mas nem pra sentar um homem minimamente interessante? Tinha que ser uma tiazona japonesa antipática?
Tirei então um papel da velha mochila, onde antes enrolava o dinheiro que precisava para pagar uma nota que precisei. O dinheiro rolou livre pelo pequeno bolso, e meus dedos buscaram uma caneta.
Rascunhei, despretenciosamente.

Passo ante passo, passo
pelos caminhos de antes, caminho
já foram sonhos, já foram tantos
registros surdos de um grito preso...
Ouvi ao longe acordes soltos
Segui o rumo que meus pés traçaram
Vi rostos antes nunca vistos
Vi num vão o espaço oco
Vi os arames que entrecortavam
do solo aos céus, o vidro e o pó.
Vi a imagem digna de retrato
enquanto voltava pro lugar de origem.
Era o fim em cor de inverno
dos primeiros raios de verão,
eram os rostos que nunca vira
fitando o espaço vazio em vão,
eram os arames rasgando o céu
sem o toque de sua mão
sem o leve pulsar das veias
sem o olhar confuso e sincero.
Mais um mês, uma nova estação
um novo adeus
um gosto de fim de tarde.
As novas cores que pintam a cidade
cores dignas de um retrato
de cenário feito com arame torto,
como se pudesse fotografar minha saudade.

Guardei o rabisco na mochila surrada. Abri aquele velho Hesse que me esperou por anos, até ser o que se propôs de início - um libertador. Coxinha. Caía bem uma coxinha agora.

- Me dá uma coxinha... vou pegar esse chocolate aqui também.

Pago com o cartão já nas últimas e sento novamente com o rosto voltado para o sul. Um gordinho metaleiro percebe minha presença. Eu, achando tudo isso divertido, vejo sua inquietação. Parecia que algo se movia, algo que não deveria estar se movendo. O gordinho fitando. Abri de novo o Hesse, enquanto devorava a coxinha. Vale a ressalva: uma das melhores da região, sem sombra de dúvida. E olha que de coxinha eu entendo.
Leio as 25 páginas que faltavam para o fim, e quando termino percebo o tédio aliado ao prazer que só a solidão programada pode nos dar. Lembrei-me do chocolate. Pequenas e suaves mordidas, e se passaram 124 minutos! Quanto tempo usamos, sem perceber, na busca do que ser além do que se é! A banda já parou faz tempo, a cantina está quase fechando, meu amigo não surgia.
Fui para o banco do jardim. E lá sentei-me e olhei próximo a mim o homem que sorriu. Aquele sorriso tímido, que retribuí com um olhar baixo. Começo a construir meu tsuru. Uso aquele papel da divulgação do sarau astronômico. Na última dobra, porém, ele foi embora. Daria a ele a pequena gaivota.
Mas ele foi embora.
E eu, fui para onde? Perdi-me nos prazeres do deus cervejeiro enquanto mandava aos céus o fumo de um cigarro. Joguei fora o tsuru pela metade assim que meu amigo chegou. Solidão programada arrancada de meu planejamento por um sorriso confuso e sincero, aquela animação pueril que só ele tem. Carregou minha carcaça véia pra onde havia mais pessoas e cervejas, e lá fiquei com todos os "eus" e todos os "seus".
Feliz é quem sabe quebrar-se em mil e manter-se único.

Autor: Vanessa Del Negri


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