Metrô



 

 

METRÔ

 

Maria Isabel acomodou-se melhor na cadeira estofada, de frente para o painel de controle - e consultou pela décima vez o relógio da estação, instalado bem atrás dela. 

Tinha quase certeza: aquele relógio estava maluco, desregulado; estava andando ao contrário; ou então, estava fazendo isso de propósito, de pirraça, contra ela, atrasando ainda mais o lento transcorrer das horas.

Um passageiro perguntou-lhe a hora certa e ela, mecanicamente, virou a cabeça para olhar novamente o quadrante, que acabara de consultar. Acontece com todos, não é?  Quando temos pressa, achamos que conferir seguidamente as horas ajuda a empurrar o tempo. 

Mas não é assim.

É o contrário: pare de olhar e o tempo passará mais depressa.

Experimente você mesmo e me diga...

Desde que começara a trabalhar no Metrô, Maria Isabel tinha uma idéia muito mais precisa do valor de uma hora, de um minuto, de um dia inteiro. 

Regulava-se pelos trens, como se cada um deles levasse embora, ao sair, todos os minutos fugidios acumulados desde o trem anterior.

 

Mas o relógio não era o seu único pensamento, naquela tarde.

Durante a folga do meio dia, enquanto tomava um cafezinho com pão de queijo no balcão da lanchonete, apareceu-lhe na frente o Geraldo, um antigo colega de escola, (e também uma antiga, secreta paixão).

Ele foi rápido: - “Precisamos conversar” – disse - “Espere-me aqui às seis”.

E sumiu; num piscar de olhos.

Ficou parada, surpresa, sem saber o que pensar.

Ou pior, pensando um monte de coisas, e nenhuma delas fazia sentido.

Sua cabeça rodopiava, tentando encontrar um motivo.

 

Primeiro pensou que o Geraldo quisesse namorar; ela havia sonhado noites e noites seguidas, durante mais de um ano, que isto acontecesse. Estava apaixonada, pela primeira vez na vida, mas nunca tinha confessado este sentimento a si mesma, ou a qualquer outra pessoa. 

Mas logo afastou esta hipótese improvável e maluca. Porque ele viria logo agora, dois anos depois, procurar reatar algo que nunca acontecera?

Não. O Gê queria algum tipo de favor.  Empregados do Metrô não dão passagem de graça nem para a própria mãe, imagina então, para um conhecido. Levaria um tal bofetão, que nunca mais o esqueceria!

Devia ser algum outro tipo de favor:  

- “Acho que ele precisa fazer um trabalho escolar sobre o metrô e quer informações, mapas, dados, fotos, sei eu lá o quê”! – Mas ele vai se dar mal.  Ele vai me escutar!

 

Depois veio a dúvida maior:

- O Gê quer namorar com alguma colega e vai me pedir que o apresente – dizia. –

Mas quem é bobo de fazer uma coisa dessas hoje em dia?

Eles chegam na menina, dão um apertão e soltam a bomba: - Quero ficar com você! 

E com este “ficar” eles dizem - e elas entendem - tantas coisas diferentes, que não precisa ser um gênio para entrar no clima.

Maria Isabel era apenas uma moça comportada, toda casa e trabalho, que nunca pensava em bobagens.  Mas é claro que sabia o que andava por aí. É claro que conhecia bem as armadilhas, que eles usavam para “pegá-las” e elas aplicavam para “conquistá-los” (e cada verbo indicava coisas diversas). 

- "Não, não pode ser isso – continuava – já não tem mais ingênuos, neste mundo”.

De todo jeito, vou dizer que não, que não quero ser uma alvicoteira... alvoquiteira.... sei lá! enfim, uma dessas que arranjam casamentos... - ainda se fosse para o meu, vá lá...

 

Vai ver que ele quer me pedir dinheiro emprestado; – ah, mas eu não dou, não! Não caio numa dessas, não senhor.   O Geraldo é simpático, mas simpatia é simpatia... negócios à parte.

 

Quem sabe, ele quer que lhe apresente meu irmão, professor substituto de matemática no Senai...

Ah!  também vou dizer que não! Ele que se vire!

 

E as horas demorando para passar, e ela aflita, inventando três novas explicações a cada trem que saia da estação.

Por fim, ocupada com os relatórios, deixou de olhar o relógio por cinco minutos, e quando viu, já tinha passado meia hora. (Eu não disse? É assim mesmo, gente!)

 

Bem, ela se arrumou como pôde, um pentinho no cabelo, um batonzinho barato, um sorriso simples, e foi para o balcão da lanchonete, mais preparada do que para a prova bimestral da escola noturna.  Olhou o relógio: 18:52 – atrasada, puxa!

Geraldo esperava inquieto. Escondia alguma coisa nas costas.

– Livros de escola – imaginou Maria Isabel. Mas ele não disse nada e ela ficou esperando, de boca aberta.

- Bem? – perguntou secamente. – o que você queria de mim?

- Olha, Mabel (era o nome de batalha, no fundamental – e ela não gostava que a chamassem assim)

- Mabel, não, Geraldo: Maria Isabel; está bem?

- Certo, Maria Isabel. Eu queria .... eu queria.... e mudando subitamente o tom de voz: “como vai o seu irmão?”

- “Ora, Geraldo – pergunte para ele! Se quiser lhe dou o telefone; você o chama, informa-se, pede-lhe todos os detalhes, altura, peso, temperatura, pressão, namoradas, trabalho, etcétera! Que é que tenho eu com isso?”

De repente percebeu o que estava fazendo; tinha sido áspera demais, mal educada, grossa.

Sem motivo. Ele não merecia tal tratamento de choque.

Mas ela estava nervosa e só agora percebia quanto.

Decidiu esfriar e desculpou-se, num tom suave e aveludado – assim pareceu a ele – e sorriu carinhosamente – esta também impressão dele – perguntando, logo em seguida, o que podia fazer por ele, qual era afinal, a razão desse encontro.

 

Estavam empoleirados naqueles fantásticos banquinhos de bar, inventados para deixar as pessoas pouco a vontade e faze-las desistir em dez minutos no máximo. Geraldo continuava com uma das mãos nas costas, mas numa posição incômoda e ele acabou por revelar um pequeno buquê com três rosas, que tinha levado para ela.

Ela ficou surpresa, quase comovida, mas logo seu caráter impetuoso retomou o controle.

- “Obrigado, Geraldo” – disse mansamente.

E continuou:- “Mas se pensa que com essas florzinhas pode me comprar, para fazer o que você está pensando – qualquer coisa que esteja pensando - engana-se redondamente. Então diga logo: o que é ?”

E ficou lá, com a cara mais dura que sabia fazer, herança das suas brigas com os meninos do primário.

Geraldo não se impressionou. Desceu finalmente do banquinho, ficando quase na altura de seu rosto.

Respirou fundo, disse, quase com violência, um “Eu te amo!” e – “Smack!” estampou-lhe nos lábios o beijo mais curto – e mais saboroso - que tinha dado em toda a sua curta vida.

Alias, era o primeiro beijo que dava a alguém nos lábios; os outros, milhares deles, os dava nas faces da irmã, das tias, da mãe, da avó.  

 

Ele estava agitado, enrubescido – e saiu correndo, gritando um “tchau” longo e apaixonado – assim pareceu a ela. 

 

Maria Isabel ainda com o rosto pegando fogo, desceu lentamente do banquinho, olhou as rosas com tanto carinho como se fossem o próprio Geraldo – e se encaminhou para a saída. 

 

A vida dela tinha dado uma virada sensacional. Ela sentia. Ela adivinhava. Ela sabia.

 

O grande relógio da estação marcava 18:56 .  

 

Imaginem: em quatro minutos, uma vida pode desabrochar.

 

É por isso que estamos sempre empurrando o relógio, tentando forçar seus ponteiros: para que o próximo trem leve os minutos acumulados desde o último, que nada mais significam; e nos traga uma braçada de minutos novos em folha, reservando-nos, sem dúvida, alguma grande surpresa.

 

 


Autor: Romano Dazzi


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