Encontro com a morte



Nádia procurou em sua bolsa o dinheiro para pagar o lanche. Tinha comido com relativa pressa. Seus horários nas quintas feiras eram sempre apertados. Dirigiu-se ao caixa. Um homem estava de costas para o balcão e ela notou sua corpulência. Vestia um terno cinza meio surrado.

-Minha conta, por favor.

-Foi um cheeseburger e um suco, não é ?

-Isso mesmo.

A garota da caixa deu-lhe a notinha e o troco. Nádia virou-se para sair. Neste momento ouviu o primeiro estampido. Num instântea lanchonete transformou-se num verdadeiro inferno. O homem de terno cinza tinha sacado uma arma e estava atirando contra os fregueses. Instintivamente. Nádia contornou o balcão e abaixou-se atrás dele. Ouviram-se gritos.

A pontaria do homem de cinza era excelente. Já havia três corpos sem vida no piso de madeira e o sangue escorria da cabeça de uma mulher morena. O homem continuava a atirar. A garota da caixa tombou, morta, junto a Nádia. E então, um silêncio surpreendente envolveu a lanchonete. Nádia ouviu os passos pesados do criminoso. Viam em direção a ela. Como num sonho aterrador, os passos se detiveram.O homem olhou-a com uma expressão embrutecida no rosto de traços grossos.

-Não vou matar você.Saia ! Vá embora !

Incapaz de proferir uma única palavra ela ergueu-se cautelosa.

-Vamos ! Saia rápido ou posso mudar de ideia !

Ela obedeceu a ordem do assassino, esgueirou-se em direção à saída. O criminoso também saiu rapidamente.

No chão ensanguentado da lanchonete, oito pessoas jaziam mortas.

Quando a polícia chegou ao local, encontrou, parada junto à porta, uma mulher jovem em aparente estado de choque, face a uma pequena multidão de curiosos assombrados com o acontecido ali.

-Tudo bem, moça ? Não está ferida,está ?

-Não.

-Que carnificina, Jurandir !

-Quantos eram os bandidos, moça ?

-Um só.

-Um só ?

-Um só.

-Como era ele ?

-Acho que não sei dizer.

-Bom. Meu colega vai levá-la a delegacia. A senhora tem que prestar depoimento.

-Agora ? Tenho que voltar para a escola. Sou professora.

-Sinto muito. Mas vai ter que depor.

O delegado Gouveia observava Nádia com curiosidade. Para quem tinha acabado de passar por uma situação horrível, ela parecia bem controlada. Talvez ainda meio em choque, pensou.

-Então, professora, como está se sentindo ?

-Acho que ainda não acordei direito. Parece um pesadelo isso tudo.

-Bem, já me descreveu tudo o que se passou na lanchonete. Gostaria apenas que me respondesse a algumas perguntas.

-Tudo bem. Pode perguntar.

Lá fora, alguns repórteres esperavam conseguir entrevistara professora.

-Que coisa, rapaz. Essa moça deve ter passado por maus momentos.

-Pior que o delegado Gouveia está na delegacia...

-Por que ?

-Você não conhece o cara. Não vai nos deixar nem chegar perto dela.

-Não vai ? Com que direito ? Isso é impedir o trabalho da imprensa.

-Estou dizendo, você não conhece a fera.

-Só estive com ele uma vez. Na festa da posse do secretário de segurança. Me pareceu muito educado.

-Ouve só, Ernesto.Nosso repórter aqui acha o Gouveia muito educado.

-Uma dama ! Um primor de gentileza !

-Afinal...querem me esclarecer esses comentários ?

-Meu amigo, o delegado Jonas Gouveia é um caso a parte. Pergunte ao Ernesto que o conhece melhor e há mais tempo que eu. Diz a ele, Ernesto.

-Ah...o famoso delegado Gouveia...quando quer, um diplomata. Mas não lhe aconselho a tentar convencê-lo a fazer o que ele não quer. Posso lhe garantir o seguinte: Ele vai isolar essa testemunha de todo e qualquer contato com a mídia. Enquanto estiver tentando elucidar ocaso, nem rádios, nem jornais nem TV.

-Mas isso é absurdo. Delegado nenhum pode passar por cima da lei.

-Ele pode. Nem o presidente da república falará com essa mo-ça, enquanto ele não quiser.

No interior do distrito policial, o delegado perguntava à Nádia:

-No seu entender, professora, por que esse assassino resolveu poupá-la ? Resolveu fugir de repente? Sabe que ele não roubou nada da lanchonete, nem das pessoas que matou?

-Não faço a menor idéia. Eu estava tão aterrorizada...

-É mais que natural. A senhora estava de frente para a morte. Mas, insisto, não tem nenhum palpite ?

-Sinto muito, mas não tenho nenhum mesmo.

-Tudo bem. Agora me diga: Acha queestá em condições de ver o nosso fichário eletrônico e tentar identificá-lo ?

-Vou tentar.

-Ótimo. Agradeço muito sua cooperação nesse momento difícil que está vivendo. Por favor, vamos ao computador.

Ao cabo de uma hora, era visível que a tentativa de identificação fracassara. Restava a elaboração de um retrato falado. Um técnico já estava pronto para o trabalho.

-Bem, professora. Vou mandar levá-la em segurança à sua residência.Por favor, peço-lhe que não atenda a pedidos de repórteres para entrevista-la. A senhora mora com seus pais, segundo me disse. Deixe que eles atendam as chamadas telefônicas. E sobretudo, não comente esse assunto com ninguém, exceto seus pais. Vou manter um homem a paisana vigiando discretamente sua casa. Dia e noite nesses primeiros dias. As duas escolas em que trabalha serão informadas de que a sua presença só voltará a ser possível quando eu determinar. Estamos combinados ?

-Espere aí, delegado. Vou ficar sem poder sair ?

-Não, mas peço-lhe que saia o estritamente necessário. A imprensa vai persegui-la, tentar falar-lhe , tentar fotografá-la. Use óculos escuros, grandes, quando sair. Mas, volto a lhe pedir. Saia o mínimo possível.

-Vou ter que retomar meu trabalho, mais cedo ou mais tarde...

-Tudo bem. Mas, por enquanto, imagine que está com suas cor-das vocais em péssimo estado. Prometo que voltará a traba-lhar o mais cedo possível. Confie em mim. Vamos apanharesse desgraçado, ele não vai me escapar. Ah, me perdoa se eu fizer com que saia daqui encapuzada? Não quero fotos ou imagens suas na TV.

-Meu Deus ! Quanta coisa por causa dessa matança. Fico pensando, o que será das famílias desses inocentes mortos por um louco. Isso tudo poderia até parecer comum na Califórnia, ou em Nova Iorque, sei lá...mas aqui no Brasil...

-Lá, como aqui, poderia ser efeito de drogas. Vamos ter que levantar todas as hipóteses. Agradeço novamente sua colaboração, professora Nádia.

-Acho que não foi grande coisa. Estou louca para chegar em minha casa e tomar um chuveiro morno, bem demorado.

-Ótimo. Faça isso e coma alguma coisa. Depois repouse bastante. Manterei contato.

No final daquela tarde, o delegado Gouveia consentiu em falar com os repórteres. Parecia, como sempre, impassível diante da imprensa. Não permitira a entrada de fotógrafos ou câmeras de TV em seu gabinete de trabalho.

-Vou me adiantar à suas perguntas. O criminoso é um homem branco, de quarenta e oito anos. Não bebe nem fuma. Tem um tic nervoso, um piscar repetido do olho esquerdo. É canhoto e não usa tatuagens. Trabalha como escriturário numa empresa de transportes.

Os repórteres pareceram meio incrédulos, espantados com as declarações do delegado. Menos Ernesto, da Folha. Conhecia bem os truques e brincadeiras de Jonas Gouveia.

-Então, teremos uma prisão ainda hoje, não, doutor?

-Claro que não, Ernesto...

-Qual, o senhor não muda mesmo...

-Pois é. Seus colegas de imprensa parecem nunca ter lido Agatha Christie. Apenas tentei imitar seu detetive de ficção, É uma das brincadeiras favoritas de Poirot, lançar uma declara-ção minuciosa e totalmente falsa sobre um suspeito.

-Tudo bem. Mas, e as pistas? Já tem alguma ?

-Nenhuma, por enquanto, meu amigo. Os peritos examinaram o local e, como era de se esperar, tratando-se de uma lanchonete, temos impressões digitais de umas cinquenta pessoas ou mais. Nosso trabalho vai ser difícil.

Passaram-se dez dias. A professora Nádia voltara a trabalhar. No início, foi difícil ter que responder as perguntas das colegas, das duas diretoras, dos funcionários em geral. Aos poucos, o assunto foi se esvaziando. A própria mídia deixara praticamente de lado o caso.

A tarde de sexta-feira estava quente, úmida. Nádia entrou na lanchonete. Não frequentava mais a mesma, por razões óbvias. A morbidez das pessoas era algo de inquietante. O proprietário do local onde o crime, horrendo, acontecera, estava feliz. A procura pelo seu estabelecimento crescera. Pessoasfaziam perguntas aos empregados, sondavam a nova moça da caixa. Queriam detalhes do ocorrido.

Nádia estava pagando sua despesa quando viu num dos espelhos que decoravam a lanchonete, afigura do homem corpulento de terno cinza. Deteve-se horrorizada. O homem piscara para ela através do espelho. Entreabrira mesmo o paletó do terno meio surrado para que ela visse a coronha da pistola que carregava.

-Moça ! Aqui está o seu troco.

-Meu troco ? Não ! Não quero meu troco !

-Não quer ? Mas são trinta e dois reais !

-A polícia ! Ligue para a polícia !

-Polícia ?

-Não discuta comigo ! Ligue !

O homem empunhara a arma, olhou-a fixamente, ia atirar contra ela. Nádia gritou ! Sentiu que tudo se tornava escuro a sua volta.

-Minha filha , acorde ! Você teve um pesadelo ?

-Era ele de novo, mamãe. E esta vez ia me matar.

-Que coisa ! O doutor Gouveia está ao telefone. Quer lhe contar como prendeu esse assassino miserável.

-Alô, doutor Gouveia ?

-Como vai, professora ? Queria lhe contar que prendemos o homem. É um maníaco homicida. E que o retrato falado feito com sua excelente capacidade descritiva, foi o fator decisivo para a identificação e a captura. Parabéns !

-Não vai me dizer que vou ter que ir aí identifica-lo de novo, não é ?

-Não, professora. O homem confessou tudo. Em detalhes. Só não sei se irá a julgamento. Provavelmente será considerado insano pela junta médica. Imagine que ele matou o próprio pai quando era adolescente e simulou um acidente. Super inteligente. O crime nunca foi descoberto, até ele confessa-lo agora. Não quer saber por que ele não lhe matou, professora Nádia? Pois vou lhe dizer: ele teve uma irmã. A única pessoa a quem realmente amou, e que morreu ainda jovem. Pois bem. Quando ele olhou para o seu rosto, no momento em que a senhora se dirigiu à caixa para pagar sua conta, ele viu, em seu rosto, a própria irmã. Parece que a senhora tem uma grande semelhança com ela. Naquele instante, ele já tinha decidido não lhe matar.

-Nossa ! Que coincidência incrível ! E que sorte a minha !

-Pois é. Não se esqueça de nós aqui da delegacia. A senhora conta com nossa gratidãoe simpatia.

-Obrigada, doutor Gouveia. O senhor é um homem muito gentil e educado.

-Não é exatamente a opinião da mídia. Em todo caso, agradeço sua boa impressão a meu respeito e lhe desejo um ótimo dia.

A professora Nádia não passou mais por experiências terríveis. Mas passou a tomar o cuidado de levar sempre consigo, seus lanches num recipiente térmico dos mais modernos. Lanchonetes, nunca mais !


Autor: George Luiz Paredes


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