Germinal: Exploração, Consciência e Luta



Waldemberg Oliveira de Lima[1]

"O operário não podia agüentar mais; a revolução só serviria para agravar-lhe as misérias; a partir de 89 os burgueses é que se enchiam, e tão forazmente que nem deixavam o resto no fundo do prato para o trabalhador lamber. Quem poderia demonstrar que os trabalhadores tinham tido um quinhão razoável no extraordinário aumento da riqueza e bem-estar dos últimos cem anos? Zombaram deles ao declará-los livres. Livres para morrerem de fome, isso sim, e do que, aliás, não se privavam. Não dava pão a ninguém a votar em malandros que, eleitos, só queriam locupletar-se, pensando tanto nos miseráveis como nos seus borzeguins acalcanhados. Era preciso terminar com isso, de uma maneira ou de outra (…). Se isso não fosse feito agora, pela atual geração, seus filhos, com certeza, o fariam, já que o século não podia terminar sem outra revolução, desta vez a dos operários, uma revolução devastadora que varreria a sociedade de alto a baixo para reconstruí-la a seguir mais decente e justa".[2]

Introdução

A possibilidade de análise do discurso histórico produzido através do cinema há tempos vem sendo alvo de pesquisas e reflexões pelos historiadores. Inúmeras perspectivas de abordagem envolvendo Cinema e História surgiram ao longo do século XX, e hoje ajudam a preencher este seleto grupo de estudos que cresce a cada ano. Da escola européia, representada principalmente por Marc Ferro[3], Pierre Sorlin[4] e Michèle Lagny[5] à escola estadunidense, cujos nomes mais conhecidos são Robert Rosenstone[6], Hayden White[7] e Marc Carnes[8], perpassam noções e maneiras praticamente antagônicas de análise do filme. Seja através do método, seja por conta da grande quantidade de material cinematográfico produzido, fato é que hoje esta área de pesquisa vem dando bons resultados por meio de artigos, dissertações e teses defendidos em vários países.

Assim como estas correntes historiográficas, nosso propósito neste artigo é também fazer uma reflexão sobre uma fonte fílmica, buscando compreender seus confrontos e suas contribuições para a pesquisa em História.

O filme que iremos trabalhar chama-se Germinal, de 1993, dirigido por Claude Berri e baseado no romance de mesmo nome escrito por Émile Zola no final do século XIX. A história refere-se ao cotidiano de exploração sofrido pelos trabalhadores de várias minas de carvão na região de Montsou, França. Baixos salários, exaustivas jornadas e péssimas condições de trabalho são alguns dos pontos apresentados na obra. Mesmo com todas essas privações, a vida continuava em "Deux–cen–quarante", a vila de trabalhadores das minas Voreux, Jean-Bart e adjacências. Contudo, aos poucos os ânimos foram se acirrando, os mineiros começaram a ter consciência que a forma de vida que levavam não era algo natural, que enquanto eles penavam por pão e água ao fim do dia, os burgueses comiam carnes e biscoitos. O momento chave desses trabalhadores foi uma súbita redução de seus salários, que por sinal já eram baixíssimos. A alegação dada pelos burgueses para o acontecimento era a crise que o mundo capitalista estava vivendo, marcada pela superprodução de mercadorias e pela falta de mercados consumidores. Entretanto, os já desgastados proletários não agüentavam mais aquela situação e resolveram ir à luta, reivindicar seus direitos, entrar em greve.

Diversas são as abordagens e as possibilidades de discussão a partir deste tipo de fonte. A temática sobre a luta do operariado contra a exploração e por melhores condições de vida e trabalho é algo mais recente do que nunca, sendo constantes as notícias nos meios de comunicação sobre greves dos trabalhadores. Levando em consideração essas questões e, principalmente, o contexto de produção do filme Germinal (início dos anos 1990, período marcado por uma série de greves operárias - 1992 servidores públicos na Alemanha, 1993, empregados do transporte aéreo na França e outras[9] - motivadas pelas reformas neoliberais promovidas pelos Estados nacionais europeus, que aos poucos iam extinguindo direitos sociais e vantagens tradicionais adquiridas pelos proletários através de anos de luta e reivindicação),poderíamos trabalhar com a perspectiva defendida por Marc Ferro, embora hoje vivamos no capitalismo pós-escassez, cujos trabalhadores não presenciam as mesmas condições do passado apresentado nas obras – exceto os mais explorados, os lumpem dos séculos XX e XXI. Segundo ele, o filme fala mais do período de sua produção do que propriamente do recorte histórico que está sendo abordado, sendo por isso um agente conscientizador ou denunciador de sua realidade temporal. Ou seja, "o filme é um agente da história, e não só um produto".[10]

De outra maneira, por se tratar de uma adaptação de um romance produzido no final do século XIX, poderíamos também trabalhar com a perspectiva defendida por Robert Rosenstone, que busca analisar como o cinema se apropria do passado e o representa. Ou seja, diferentemente da abordagem anterior, que busca compreender as relações do filme com o seu presente, Rosenstone passa a analisar a forma como o próprio passado é apresentado no cinema e quais as implicações das mudanças e adaptações que são feitas nos fatos[11].

Apesar de apresentarmos algumas propostas possíveis de serem trabalhadas, nossa análise será outra. Não estamos afirmando que iremos trazer uma nova metodologia ou uma forma antagônica de discussão, mas, ao contrário, procuraremos selecionar, na medida do possível, os pontos essenciais que acharmos relevante de cada corrente historiográfica pesquisada.

Com isso, apresentamos nossos objetivos: a partir da análise do filme Germinal, de Claude Berri, compreender o discurso em defesa do proletariado levando em consideração a montagem, a disposição de imagens e a adaptação do livro; além disso, discutir as concepções de luta operária que são apresentadas através dos personagens Etienne, Suvarin e Rasseneur.

A exploração do proletariado: a construção de um discurso através de imagens.

Toda forma de expressão é uma construção. Seja qual for o meio de transmissão, um filme, um livro ou uma pintura, sempre haverá um sentido para sua criação, uma mensagem do autor para o espectador. É o que José Luiz Werneck chamou, em relação ao cinema, de manipulação ideológica prévia das imagens[12].

O cineasta russo Serguei Eisenstein havia percebido essa peculiaridade já no início do século XX, ao afirmar que "a montagem é o princípio vital que dá significação aos planos puros".[13]Essas mensagens podem aparecer ora de maneira implícita, ora explícita, ora de forma consciente, ora inconsciênte. Por conta disso, Marc Ferro, ao analisar os filmes produzidos durante a Primeira Guerra Mundial, concluiu que muitas das mensagens transmitidas pela película cinematográfica podem servir à doutrinação, à glorificação e/ou à conscientização[14].

Partindo do pressuposto que não existe documento politicamente neutro ou objetivo, analisaremos a adaptação do livro Germinal para o cinema.

De antemão, queremos esclarecer que neste tópico não iremos trabalhar com todo o filme e nem com todo o livro, mas com recortes de cenas e de trechos, de acordo com a temática proposta.

O primeiro ponto a se considerar nessa análise é a construção e o conteúdo das imagens. O autor do filme, Claude Berri, procurou seguir a risca a ordem dos capitulos apresentados no livro. Contudo, por se tratar de um romance muito longo, com aproximadamente 540 páginas, distribuídas em sete partes, é óbvio que ele não pôde ser abordado em sua totalidade num filme com pouco mais de duas horas. Com isso, encontramos os primeiros elementos da construção, ou seja, as escolhas, aquilo que é abordado em detrimento do que é excluído. A observação desse primeiro dado é essencial para a compreensão do discurso apresentado, pois será a partir dele que se desenvolverá toda a trama.

Os elementos escolhidos para o desenvolvimento da proposta apresentada por Berri foram: a exploração e a situação de miséria vivida pelos trabalhadores. Cenas como a chegada do jovem Etienne na cidade de Montsou em busca de emprego, a doença adquirida pelo velho "Boa Morte" depois de trabalhar 50 anos na mina de carvão, a fome e a falta de recursos vivida pelas famílias da vila, antes, durante e depois da greve, e a situação desumana de trabalho, envolvendo crianças, velhos, homens e mulheres para poderem completar os rendimentos mostram o cotidiano de milhares e milhares de pessoas vivendo nas condições mais degradantes possíveis. Em contrapartida, o dia a dia de personagens que não estavam diretamente vinculadas ao trabalho na Mina Voreux, além do romance envolvendo os personagens Etienne e Catherine, que transfiguram em muitas páginas do livro de Émile Zola, não são tratados ou pouco aparecem nas cenas do filme.

A construção dessas imagens aparece de forma agressiva e extremamente chocante, chegando, em certos momentos, a ir além do que é apresentado no livro.

O segundo objeto de análise para compreender o discurso que é apresentado no filme é a montagem, a ordem das imagens. Nisso o autor se serviu daquilo que Émile Zola já havia feito muito bem ao escrever Germinal, ou seja, a capacidade de confrontar elementos distintos numa mesma seqüência. Assim, se num primeiro momento ele aborda a situação de pobreza, degradação e falta de esperança dos trabalhadores, num segundo ele traz o conforto, a abundância e o cotidiano de brioches da burguesia. Cenas caracterizadas por residências impecáveis, refeições magníficas e bastante luxo fazem com que os espectadores do filme, assim como os leitores do livro, fiquem comovidos mais ainda e tomem partido a favor dos operários.

A cena na qual a mulher do personagem Maheu, uma senhora que tem sete filhos, sai a mendigar por ajuda na mansão de um dos burgueses e em seguida na loja de um dos comerciantes da região mostra o discurso ideológico apresentado pelo autor, o qual denuncia as relações que envolvem aquela (ou nossa) sociedade, marcadas pela exploração do homem pelo homem, pelas desigualdades sociais, pelo descaso das classes altas em relação aos problemas dos indivíduos mais pobres e pela falta de perspectivas por uma melhor situação de vida por parte daqueles que estão a sofrer. Nesse sentido, Claude Berri procura levar novos elementos à cena, incluir novas falas, transformar alguns gestos, tudo no propósito de dar um aspecto mais crítico e confrontador às imagens.

Consciência e luta: concepções do movimento operário através de três personagens de Germinal.

Outra questão a ser discutida a partir da observação do filme Germinal são as concepções de luta do proletariado. A própria produção da obra literária de Émile Zola coincide com o período de criação e estabelecimento da A.I.T. (Associação Internacional dos Trabalhadores), também conhecida como Primeira Internacional, organização de apoio ao proletariado fundada em 1864 na cidade de Londres.

Na medida em que os mineiros passam a protestar a situação de exploração e miséria vivenciadas, eles começam a se organizar e exigir melhores condições de trabalho e vida. É a partir desse momento, através de conversas, pequenas reuniões e grandes discussões que podemos perceber concepções distintas de luta, representadas principalmente pelas falas dos personagens Rasseneur, Etienne e Suvarin.

Para um melhor entendimento, reproduziremos alguns diálogos mostrados em diferentes momentos do filme envolvendo os personagens acima citados e em seguida faremos algumas considerações.

O primeiro deles ocorre na cena oito, no botequin do senhor Rasseneur, um ex-mineiro que deixou o serviço na Voreux e montou um pequeno bar. Nele encontramos além de Rasseneur, os personagens Etienne, um ex-maquinista que consegue emprego em Montsou, e Suvarin, um russo que também era empregado na Mina.

Enquanto Etienne e Rasseneur falam sobre a Associação Internacional dos Trabalhadores, o sonho de união dos proletários de todo o mundo para lutar de igual para igual contra os patrões, e a possibilidade de haver greve entre os mineiros, além de discutirem a idéia de se criar um fundo de reserva para se sustentarem em caso de conflito, Suvarin aproveita e faz algumas considerações:

— O vosso Karl Marx continua a acreditar na evolução das forças naturais querendo negociar cara a cara para obter aumento de salário. É preciso deitar fogo a todas as cidades, arrasar tudo, e quando já não restar nada neste mundo podre, talvez cresça outro melhor.

Logo em seguida Etienne responde:

— Não chegaremos a esse extremo. O operário sozinho não é ninguém, mas unido representa uma grande força. Temos que criar uma secção em Montsou. (...) É preciso reconstruir um mundo novo muito mais justo.

Suvarin rebate:

— Aumentar os salários numa economia capitalista é um sonho. Os operários só têm direito a comer pão duro e a ter filhos. É uma lei férrea que se baseia no equilíbrio dos ventres vazios. É uma condenação a prisão perpétua de fome e miséria. É preciso destruir tudo. Sim, a anarquia e mais nada. A terra lavada pelo sangue, purificada pelo fogo. Depois veremos.

Etienne conclui:

— É preciso evitar um derramamento de sangue.

Por fim, os personagens se calam e trocam olhares por alguns segundos.

O segundo diálogo ocorre entre as cenas nove e dez. Trata-se do esforço do jovem Etienne em convencer os mineiros à contribuírem para a caixa de resistência, a arma de luta contra os patrões em caso de greve. Assim, ele diz:

— Se todos os operários estão juntos, por que é que hão de ser escravos dos patrões que lhes pagam? Não necessitamos de deus nem do paraíso para sermos felizes. Depende de nós que este mundo podre mude, e que a paz reine sobre a terra. A igualdade.

A esposa de um dos personagens principais, Maheu, um dos mais experientes mineiros de Montsou, exclama:

— Ilusões! Por acaso os burgueses quererão trabalhar tanto como nós?

Etienne responde:

— Eles terão que encontrar a razão, cada um segundo seus méritos e sua fome.

Um dos mineiros, Chaval, rebate:

— Com a razão não iremos à parte nenhuma. Nem com as palavras. Será com o sangue. Para que as coisas mudem há que se derramar sangue.

Por fim, Etienne conclui:

A nossa força é o número. Diante da ira dos operários, os patrões claudicarão. Tardaremos mais, mas é preciso evitar juntar sangue ao sofrimento.

O terceiro diálogo ocorre na cena doze. Ele é marcado por mais um momento de crise entre patrões e empregados.

Após ter ocorrido um desmoronamento na Mina Voreux, por conta de escoras mal feitas, os patrões resolvem não mais aplicar multas aos trabalhadores, mas reduzir o preço da vagoneta de carvão e pagar as escoras à parte. Esta nova tarifa vai fazer com que os trabalhadores fiquem revoltados, pois percebem que esta medida não passa de pretexto para baixar os seus salários. Assim, reunidos mais uma vez no bar do Rasseneur eles discutem:

— Creio que quiseram nos incitar a greve!

Sem perder tempo Suvarin responde:

— Com certeza. É fácil de prever. Vão forçar-nos. A crise piora com todas as fábricas que estão a fechar, e cada vez falta menos carvão. A direção quer reduzir gastos, vão reduzir os salários, e serão os operários os que terão que apertar o cinto. Há dois meses que a hulha se amontoa na mina. Uma boa greve era uma maravilha para eles. Esgotam-se as reservas, mandam parar os mineiros, e os outros, uma vez domados, pagam-lhes menos. Além do mais, já sabem da caixa de resistência. Não dizem nada, mas afetam-os. Durante a greve se esvaziará, antes de estar demasiado cheia.

Rasseneur, em poucas palavras argumenta:

— Nem a companhia nem os operários têm interesse em que haja uma greve. É preciso chegar a um acordo. (...) Esta greve é uma asneira.

Etienne, um pouco confuso, indaga:

— Não te compreendo. Ontem querias queimar tudo e hoje estás contra?

Rasseneur explica:

— É demasiado rápido. Numa greve o operário sofre tanto como o patrão. (...) É preciso aproveitar o momento para filiar todos os mineiros da região na Associação Internacional dos Trabalhadores. (...) Agora é o momento. Quanto mais difícil for a situação, mais decididos estarão a seguir-nos, e quando os trabalhadores do mundo inteiro o compreender, quando todos dermos as mãos, então poderemos atuar, e não será necessária a greve.

Suvarin,após uma risada incontrolável, diz:

— Palermices! Ainda não chegou o dia em que os irmãos de todos os países nos possam ajudar.

Maheu pergunta:

— E se nos obrigam a ir para a greve?

Suvarin responde:

— Se os diverte. Arruinarão a uns e matarão os outros. Algo teremos conseguido. Contudo, dessa forma levareis mil anos a renovar o mundo. Seria melhor começar por destruir esta prisão. Se não...

O último diálogo entre os personagens ocorre quase no final do filme. Aí os trabalhadores já estão há dias em greve, acabados e famintos. Sem terem conseguido resultados satisfatórios, mas apenas fome e sofrimento, alguns passam a refletir sobre a continuação da greve. O primeiro deles é Etienne.

Em mais uma conversa com Rasseneur, ele diz:

— É preciso chegar a um acordo com a companhia.

Rasseneur responde:

— Eu tinha razão!

Etienne reafirma:

— Sei também como tu que a greve se acabou.

Rasseneur pergunta:

— Então, se acreditas que perdeste, por que não chamas a razão os teus companheiros?

Etienne explica:

— Cada um tem as suas idéias. Eu continuo a pensar que com um pouco mais de sacrifício, nossos corpos famintos servirão melhor a causa, mais do que toda a tua política de homem sábio.

Mais uma vez, com ironia, Suvarin interfere na conversa para dar uma notícia sobre dois operários de Marselhaque ganharam na loteria cem mil Francos e disseram que iam comprar ações e viver dos rendimentos. Com isso ele diz:

— Ora, aí está! É essa a idéia que tendes dos operários franceses? Desenterrar um tesouro para comer. Falta-vos valor para devolver aos pobres o dinheiro que a sorte os enviou. Nunca sereis dignos de ser feliz, a não ser que tenhais alguma coisa que vos pertença. Gritais contra os ricos, mas continuais pobres. Contudo, o ódio contra os burgueses vem somente da inveja de não ser burgueses como eles. Espero o dia em que estejais sem nada, pisados e atirados para o chiqueiro. Alguém virá para aniquilar a raça dos egoístas. Olhai, meus irmãos, se as minhas mãos pudessem, pegariam na terra assim, e a sacudiria para que ficásseis debaixo dos escombros.

Agora vamos aos comentários sobre as concepções de luta do proletariado apresentados através desses personagens.

A primeira delas é representada através dos discursos do jovem Etienne. Nele não encontramos uma definição clara de perspectiva de luta, mas uma mistura de concepções por vezes distintas. Encontramos em alguns momentos pontos de vista marxistas, principalmente quando ele fala sobre a necessidade de união do operariado e sobre a importância da consciência de classe e da organização dos trabalhadores contra as atitudes arbitrárias dos patrões, pontos de vista anarquistas, quando ele fala sobre a mobilização dos trabalhadores para dirigir seus próprios interesses, numa clara identificação, de maneira simplista, com o que os seguidores desta corrente chamam de ação direta, e quando ele fala sobre a necessidade de construir uma nova sociedade paltada no trabalho, cada um segundo suas aptidões e méritos (idéias defendidas por Bakunin – coletivismo), e pontos de vista reformistas, na medida em que o objetivo da greve defendido por ele não era reconstruir a sociedade estabelecida, mas apenas lutar por reaver os direitos perdidos e por melhores condições salariais.

A segunda concepção é representada através do personagem Rasseneur. Assim como Etienne, Rasseneur não tem uma perspectiva clara e definida de luta, mas atitudes ora marxistas, ora reformistas (social-democratas). No segundo caso, justifica-se por conta dos periódicos contatos que ele faz com os trabalhadores ingleses filiados a Associação Internacional dos Trabalhadores e com um homem chamado Pluchart, experiente fomentador de lutas entre patrões e empregados e também filiado a Internacional. Nesse sentido, os discursos de Rasseneur variam entre ações de interesse mais imediato, como a melhoria das condições de vida dos trabalhadores, e ações mais permanentes, com influências marxistas, como a importância da união dos operários (consciência de classe), da filiação dos trabalhadores à Associação, e "quando for o momento certo, quando os trabalhadores entenderem sua condição e posição, a Revolução, a tomada do poder".

Um ponto interessante a se discutir em relação às perspectivas descritas através dos personagens é sobre os sujeitos atuantes no processo de revolução. Assim como nos debates entre Marx e Bakunin, o primeiro, defensor do comunismo estatal, e o outro, do anarco-coletivismo, no seio da A.I.T. na segunda metade do século XIX, essa problemática também aparece ao longo do filme, prevalecendo a visão marxista, embora no livro de Émille Zola seja ressaltado o autoritarismo do marxismo e seu fracasso na figura de Etienne. Essa idéia pode ser percebida quando os personagens falam da necessidade de união da classe operária no processo de luta: "quando os trabalhadores do mundo inteiro o compreenderem, quando todos dermos as mãos, então poderemos atuar, e não será necessária a greve". Assim, diferente do que defendia Bakunin (união dos oprimidos contra a dominação burguesa), destaca-se nas idéias apresentadas por Etienne e Rasseneur a noção do exclusivismo operário no processo de revolução.

A terceira concepção de luta mostrada no filme é representada pelo personagem Suvarin. Nela percebemos uma visão de anarquismo estereotipada e pouco discutida. Ele aparece como um revolucionário desiludido, sem perspectiva, que acha que o melhor caminho para a transformação da sociedade é a sua total destruição. Além disso, é mostrada também outra acusação que comumente é feita ao anarquismo: o de não saber o que fazer depois de derrubar o capitalismo. Esses pontos são apresentados sempre ao final dos longos discursos feitos pelo personagem: "É preciso deitar fogo a todas as cidades, arrasar tudo, e quando já não restar nada neste mundo podre, talvez cresça outro melhor"; ou, "é preciso destruir tudo. Sim, a anarquia e mais nada. A terra lavada pelo sangue, purificada pelo fogo. Depois veremos".

Uma última questão envolvendo Suvarin e sua concepção de luta diz respeito à velha discussão feita entre socialistas e anarquistas sobre o andamento da Revolução. Mais uma noção que procurava acusar os socialistas de quererem a revolução e a derrubada do Estado de forma lenta e gradual, enquanto os anarquistas a queriam de forma imediata (segundo Suvarin, quando discutia sobre o processo de greve: "dessa forma levareis mil anos a renovar o mundo. Seria melhor começar por destruir esta prisão"). Ou seja, mais uma idéia estereotipada, pois em ambas as concepções a noção sobre momento da revolução varia.

Conclusão

A partir da análise do filme Germinal, procuramos compreender o discurso ideológico apresentado por Claude Berri em defesa do proletariado. Seja através das escolhas dos elementos apresentados, exploração e situação de miséria dos trabalhadores, seja por meio da montagem das imagens, confrontação de elementos distintos e antagônicos, percebemos que mesmo se tratando de uma adaptação de uma obra literária produzida na segunda metade do século XIX, o filme traz algo a mais, um ponto de vista próprio, elementos que são destacados com o intuito de levar uma mensagem ao espectador. Assim, concluímos que as transformações e adaptações de imagens e falas dos personagens ao longo do filme não são feitas de forma inocente, e têm o propósito de afirmar um discurso ideológico apresentado pelo autor.

Além disso, tentamos mostrar as concepções de luta do proletariado presentes nas falas dos personagens Etienne, Rasseneur e Suvarin contidas no filme.

Por conta da proximidade temporal entre a criação da obra de Émile Zola e o surgimento da Associação Internacional dos Trabalhadores, percebemos que muitas das idéias, projetos e propostas de luta do proletariado que estavam sendo debatidas dentro desta instituição aparecem no livro Germinal, mas que aparecem, no caso do anarquismo, de forma estereotipada na produção de Claude Berri.

Temos ciência que muitos pontos deixaram de ser abordados neste breve trabalho. O próprio filme traz inúmeras outras formas de análise. Só para termos uma idéia, poderíamos pesquisar como é representado o papel das mulheres na lutas diárias dos mineiros, estudar a constituição dos espaços nas vilas dos trabalhadores, discutir sobre as relações trabalhistas, a readaptação do corpo para a atividade e a participação de crianças dentro das minas de carvão naquele contexto histórico e etc.

Assim como na obra de Émile Zola, esperamos que algumas dessas idéias ajudem a germinar novas oportunidades de pesquisa.

Bibliografia:

KORNIS, Mônica Almeida. História e Cinema: um debate metodológico. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.10, 1992.

MALATESTA, Errico. Autoritarismo e Anarquismo. Instituto de Estudos Libertários. Editora Imaginário. 2004.

NORTE, Sérgio Queiroz. Bakunin: sangue, suor e barriadas. Campinas. Papirus, 1988.

ROSSINI, Miriam de Souza. Cinema e História: uma abordagem historiográfica. In: História Unisinos, Número especial, 2001.

WOODCOCK, George. Os grandes escritos anarquistas. Porto Alegre. L & PM, 1981.




Autor: Waldemberg Oliveira de Lima


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